quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Sobre o que é descoser

Ante o fato de que, enquanto uma garrafa pequena de Sprite possui 300 ml, uma garrafa de Fanta possui apenas 290ml, nós podemos tirar três conclusões principais:
  1. As empresas de refrigerante sabem que o sabor de laranja é mais doce e por isso mais enjoativo, o que necessariamente forçaria a produzir refrigerantes de laranja em uma quantidade inferior aos de limão, haja vista que para cada sabor há uma quantidade limite ideal, minuciosamente estudada e prevista, de modo que, a partir do momento em que é superada, torna-se menos agradável para o consumidor;
  2. Os refrigerantes de laranja exigem matéria-prima mais cara ou processos de fabricação mais custosos que os de limão, de modo que, embora os refrigerantes de laranja sejam vendidos em menor quantidade, os preços entre ambos sejam exatamente os mesmos para uma garrafa pequena;
  3. Trata-se, na verdade, de uma prova de que vivemos inseridos em uma realidade simulada, não passando esse fato senão de um erro de computador causado por processos randômicos e ainda não solucionáveis pela tecnologia atualmente disponível.
Embora as três conclusões sejam igualmente possíveis, e embora as três possuam o mesmo grau de verificabilidade, seja lógica ou empiricamente, nosso contexto sentimental induz-nos a raciocinar de tal forma que apenas uma resposta seja verdadeira, ou seja, apenas uma possui existência em nosso universo. Tal seleção não é absolutamente aleatória, e podemos igualmente postular pelo menos três princípios não excludentes entre si, os quais nos permitirão um maior esclarecimento a respeito da conclusão que deverá ser imediatamente sobreposta às demais:
  1. Entre 0 e -1, temos que este último ainda possui existência, e, portanto, será necessariamente preterido em relação ao que é nulo;
  2. Entre -1 e 1, temos que este último é que possui existência real, de modo que será preferido em relação ao que possui existência meramente abstrata;
  3. Contudo, se -1 significar dimensão realizável atrás da linha e logo abaixo ou acima do horizonte de expectativas do sujeito, então -1 será preferível a 1, ainda que este seja o único possível.
Tendo isso em conta, conclui-se que: o refrigerante de laranja por mim consumido, embora fosse esperado que tivesse a mesma quantidade de 300ml que o de limão, possuía no mundo existente 290ml. Entretanto, o desejo de que o refrigerante de laranja possuísse a mesma quantidade que o refrigerante de limão levou meu universo sentimental a construir uma dimensão realizável atrás da linha e logo abaixo ou acima do meu horizonte de expectativas, de modo que o refrigerante passou a existir duplamente: o primeiro como uma garrafa de 290ml, e outra como uma garrafa de 300ml. Aquele é consumível e sujeita-se a processos causais e necessários que inevitavelmente levarão à sua destruição e transformação. A segunda é perene e autônoma ao próprio refrigerante, de modo que bebê-la não é bebê-la, pois que intangível ao meu corpo físico.

Assim, nós podemos dizer que cindimos necessariamente os objetos em duas realidades: a que nós sentimos, concebemos e compartilhamos com os demais, de modo que aquilo que eu vejo, outros necessariamente o vêem; e a que nunca existe, não importa o quanto se deseje - não é possível sequer dizer se morre, e mesmo a sua origem é bastante nebulosa, pois que surgida no íntimo. Contudo, se processos randômicos são capazes de causá-la, da mesma maneira podem encontrar seu fim. Se eu bebo meu refrigerante de laranja 300ml, não estou fazendo outra coisa senão dar-lhe continuidade. Mas se meu universo sentimental for capaz de parar sua reprodução como existência paralela ao objeto real, então será como se nunca houvesse existido: não cessa, mas desaparece em absoluto, sem passado. Basta que eu olhe na embalagem e perceba que a garrafa possui 290ml, e não 300ml como havia pensado inicialmente. Pronto, é aqui que se rompe, se quebra, se morre, como quiser.

E foi exatamente assim que passei a beber meu refrigerante de 290ml sem jamais tê-lo feito em 300ml. Porém, fazer com que a dimensão desejada interrompa-se exige, obviamente, que se corte a própria vontade, o que, convenha-se, não é algo nada fácil, só possível através da fé ou da melancólica entrega da única coisa que o mundo ainda não foi capaz de negar o seu exclusivo pertencimento.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Ovos de páscoa mesopotâmicos

Homens, cachorros, mulheres e bicicletas, todos agora devem saber de meu achado. E se for verdade que falo coisas sem sentido, e se for verdade que invento coisas e falseio emoções, quero que algo bem impossível aconteça. Pelos céticos, jejuarei e guardarei os dias de Lua Cheia, e se isso não for o bastante, mandarei lembranças de meu jazigo. Quanto aos demais, que as doninhas os comam. Ou os corvos, não faço distinção onde há.

Pois bem. Enquanto eu circunavegava o mundo, povoado de vermes, insetos, lodo e outras asquerosidades da natureza, planejando convertê-lo sob o jugo de minha tirania em vidro e aço cinzento, eu os descobri. Sim, os próprios. Mesopotâmicos ovos de páscoa embrulhados em papel alumínio policromo, surgidos assim, inesperados, bem diante de meus olhos. E ante sua extravagante, aberrante e desarmoniosa aparição, prostrei-me fiel. Mais uma vez.

Sob o seu encanto, abri os meus salões, e até mesmo a Joelma e o Pixinguinha puderam entrar. Qualitativamente, não houve restrição, e qualquer um que se dispusesse a vestir mais de três cores, e qualquer um que ousasse se emaranhar em tecidos espelhados e serpentinas tinha a chance de divertir-me e de merecer meu agrado. Alguns, não devo esconder, tiveram a minha piedade, mas jamais o meu desprezo.

Pois tais ovos mesopotâmicos não são meros prismas, mas religião; alienada, dramática e deslumbrante. Positrônico, cachos de banana, propulsores intergalácticos; não são definições, mas seus rebentos. Eles crescem com plástico amarelo, em painéis eletrônicos, variando facilmente entre o ridículo e o bizarro, sempre em excesso. São como florestas tropicais, mas as folhas são de celofane e a chuva de etano líquido.

Não, é claro que ninguém gostaria de viver entre eles. Pertencem à mesma dimensão dos sonhos, não é possível sequer tocá-los, ao menos que você tenha perdido a noção de realidade. Estão envolvidos com a liberdade de fluxo, ou melhor, com a espontaneidade, trajetórias sem coordenadas e sem cálculo. Não vou mentir, eles têm mais de um aspecto: o encanto e a repulsa, a idiotice e a genialidade.

É possível trajá-los por certo tempo, mas deles se enjoa rapidamente, e mesmo é aconselhável que se enjoe e os largue a um canto qualquer. Caso contrário, provável que se torne um ridículo irresponsável. Em verdade, são idéias sublimadas, e por isso idéias para algumas ocasiões. Não há como vesti-las para ir à padaria ou ao cinema. Exigem para a sua aparição um espaço especial onde a sua excentricidade possa ser desejada.

Exige um espaço especial? Sim, mas ele não está pré-configurado em lugar algum: os ovos mesopotâmicos desencadeiam tal espaço, de modo que o que eu falei a respeito de vestir ovos mesopotâmicos para ir na padaria é bastante relativo, pois não é verdade que existem lugares próprios para a sua aparição, no sentido de predeterminados.

Não sei se estou sendo claro. Exclua o lado sombrio, o lado profano e o lado fashion, e ainda assim não se chega aos ovos mesopotâmicos. É algo mais específico. Está próximo do fashion, mas o fashion é demasiado sisudo perto dos ovos mesopotâmicos. É preciso um salto maior. Um salto de maior liberdade para se atingir uma beleza bastante peculiar: se você dançasse ovos mesopotâmicos, você não dançaria sexy, embora você exalasse carne e sangue. Enfim, enfim...

Eu venderia a minha alma por tais ovos. Infelizmente, o jarro estava vazio quando fiz a oferta, e eu não tinha mais nada que pudesse interessar o dono dos ovos. Então quebrei o jarro na cabeça dele e saí correndo com a cesta. Mas, chegando em casa, a cesta encontrava-se vazia novamente. Sentei no parapeito da janela e comecei a escrever. Sem jarro, sem, alma, sem ovos.

Se não ficou claro o que é um ovo de páscoa mesopotâmico, isto aqui é um bom exemplo: http://www.youtube.com/watch?v=BW3gKKiTvjs. Sim, a letra é baseada no livro homônimo: O Morro dos Ventos Uivantes [:)]. Sim, ela está dançando como um legítimo ovo de páscoa mesopotâmico.