sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Em tempos pretéritos, meu nome impunha respeito!

A sala estava repleta de cavalheiros altos e respeitáveis, estirados em seus pufes e em visível estado de tensão diante do senhor que deslizava pelo piano. Profundamente emocionado com sua música, ele agitava-se no banquinho como um desses indigentes quando mergulhados em uma lata de lixo, sem notar o choque que causava aos demais presentes. Os ponteiros do relógio pareciam amolecer por trás do vidro, e eu via horrorizado alguns senhores remexerem-se desconfortáveis nos estofados - mas isso era devido, depois ponderei, às migalhas de torradas que eles comeram pela tarde. Chevalier Camille Saint-Saëns, pressionando e fazendo girar constantemente uma moedinha entre os dedos, deixou-a escapar. A moedinha rolou ruidosamente pelo piso de madeira até os sapatos do pianista, os quais se contorciam a cada nota mais alta que se fazia estalar. Deus, alguém tinha escondido uma criança dentro do piano e ninguém me contou? - pensava com meus botões, que eram muitos e brilhavam de um jeito especialmente bonito. O que era até provável, pois não via Henry desde o dia anterior. Mas, enfim, após um último estrépito de teclas e pedais, terminava, finalmente, sua série, voltando-se para os demais presentes em ingênua expectativa do acolhimento de seus companheiros: “Então?...”, disse girando o banquinho e esfregando as mãos suadas uma sobre a outra; os olhos úmidos fixando de um rosto a outro, que o miravam mudos e cheios de náusea. Ora, o que espera ainda esse parvo? - pensei, olhando-o de cima a baixo e cuidando para que eu parasse de tremer de ódio daquela patética cena que... "Uh!", deixei escapar um tanto alto. Em vão tentei conter a minha exclamação pondo a mão sobre a boca. Notei, então, que usava uma gravata enorme e amarela. Até isso? - pensei escandalizado. Piotr Ilitch Tchaikóvsky coçou seu crânio calvo e deslizou os olhos até a janela. O silêncio aprofundava-se cada vez mais, e nem mesmo Johann Strauss II, outrora alegre e fazendo zombarias com os cachinhos de Wolfgang Amadeus Mozart, conseguia dizer uma palavra sequer para descontrair. Wagner deu umas tossidinhas secas, fazendo saltar uns centímetros a sua xícara sobre o pires. Mas isso não importa, pois ele sempre foi um pouco tísico - ou seria Vivaldi? Alguns pareciam ter se esquecido de que a pouco comiam empadinhas, e olhavam estarrecidos para o pianista, com a comida mastigada derretendo na boca e as taças firmemente presas nos dedos; ninguém ousava levá-las aos lábios ou fazer um movimento sequer com os maxilares. Haydn mirava constantemente para a porta de saída, contraindo os músculos das pernas como quem, ao menor sinal, dispararia correndo dali. Mas ninguém portava uma pistola, e ele permaneceu ali mesmo onde estava. Enfim, estava tudo acabado. Era o fim da reunião que eu, com tanto esforço, havia conseguido conduzir tão bem, e que agora terminava daquela forma tão desagradável. Vergonha, vergonha, murmurava escondendo o rosto em minhas palmas. Olhei, então, para Beethoven, sentado ao meu lado e tendo estranhos espasmos com as pernas, procurando dizer mudamente o quanto eu estava envergonhado com aquilo.  Mas a mesinha de centro e os copinhos de licor de cereja começaram a tremer mais forte com seus espasmos, e temi que a tragédia piorasse ainda mais. Preciso terminar isto da forma mais rápida e digna possível, pensei eu, fixando profundamente meu olhar no retrato de vovô que, vestido em um casaco de zibelina e botas altas ao lado de um cavalo, encarava-me severamente do alto de seu título de visconde. Meu constrangimento era absoluto, e, se não fosse pelo nome que portava, ter-me-ia arrebatado para cima dele naquele momento. Mas controlei meus impulsos e levantei-me, então, com estudada polidez, limpando os restos de patê dos lábios e armando um sorriso. Disse o que eu tinha para lhe dizer:
"- Oh, creio que o cavalheiro concluiu sua peça... Vamos, senhores, aplausos! – disse eu, batendo teatralmente três palmas de maneira esparsa e espalhafatosa, olhando para os demais que permaneciam sentados e imóveis. – Adorável, deveras. Certamente enlevado com a sua prodigiosa demonstração do funcionamento de uma garganta de um gato sendo esganado. Oh, quão agradecido não estou por transportar-me ao fantástico interior de uma fornalha ou máquina-de-lavar-roupa, seja lá como costuma chamar esses modernismos. Oh, não, para quê o fastio dos jardins geométricos franceses, os espaçosos salões, as escadarias livres e intermináveis por onde deslizam donzelas a sorrir, os vinhedos, os vitrais de místicas catedrais, os castelos dependurados em penhascos? Tsc! Oh, não! Você, não, Schoenberg, você é diferente. Você sabe o que é música... Agora, se não se importa, creio que tem outros afazeres a cumprir pela noite, e, se quiser, eu o acompanho até a porta de saída onde o cocheiro já deve estar esperando-o e... Oh! O que foi? Vai chorar? Hum? Vai chorar, vai?"

Desculpe se estou chocando, mas fato é que não suportei quando vi aquele rosto seboso pronto a desmanchar-se em pranto, e o que restava em mim de calma e honra desfez-se no ar com a rapidez de um relâmpago. Talvez a champanha tenha me subido demais à cabeça, eu não sei. Aquilo deixou-me fora de mim, e, em meu rompante de fúria, tomei o coquetel de camarões das mãos de Debussy e comecei a jogar os crustáceos contra Schoenberg, que, vagamente, tentava defender-se pondo os braços em escudo ante o rosto e corpo.
"- O que você acha disso agora, hum? Heim? Heim, seu chorão? – dizia eu atingindo-lhe um camarão bem no olho esquerdo. – “Música inovadora”, você disse! Que diabos foi isso!? E agora? Como fico eu? Eu contei a todos que tinha descoberto algo, e agora? Heim? Heim? Quer que eu fique com pena de você? Expressionismo alemão... Pfff!"

Foi então que, quando eu estava prestes a atirar uma cadeira, fui atingido na nuca por um golpe de garrafa, fazendo-me tombar sobre o tapete – sei disso porque me lembro de ouvir os cacos estilhaçando-se. Creio ter desmaiado a partir daí. Oh, não! Não me orgulho nem um pouco disso; sei que me excedi. Mas ter ouvido Schoenberg tocando aquilo bem no momento mais importante de minha vida social tirou-me do sério, entende?

- Você está pondo em dúvida a música de um dos maiores compositores do séc. XX?
- Oh, não, meu caro! Longe de mim! Afinal, quem sou eu? Eu apenas sei cara-crachá-cara-crachá...
- Espero que o senhor esteja ciente de que...
- Cara-crachá-cara-crachá...
- Eu já entendi, senhor... Agora se me permite...
- Onde está o meu tutor? Alguém pagou a minha fiança?
- Não exatamente... Mas lhe trouxeram bolo de frutas!
- Esplêndido!

*em prol de finais felizes.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Um piano quando desatina

Bom, não se nega que as experiências presenciadas neste  laboratório com buracos-negros foi um portentoso êxito da Ciência ao demonstrar que, sim, a deformação da malha espaço-temporal, através da concentração de matéria em um ponto infinitesimal, possibilita a viagem através do tempo e do espaço, a que eu chamo peculiarmente de "viagem espaço-temporal[faz aspas com os dedos]. Mas, também, conseguimos com que a viagem dê-se somente através do espaço, ou somente através do tempo, conforme o desejo do viajante ou conforme melhor atenda aos fins desta Instituição de Pesquisa. É claro, é claro...

Entretanto, não se pode dizer que o mesmo sucesso deu-se no plano dimensional do comércio (debalde eu explicasse aos patrocinadores do projeto as infinitas oportunidades de tráfico de artefatos históricos, exploração de minas na Lusitânia, captação de ventos do fluxo do portal dimensional na forma de energia eólica...), e por isso tivemos que recorrer a soluções inteligentes que ao mesmo tempo atendessem à Ciência e aos interesses de nossos empresários. E, para a nossa salvação (de nossos postos de trabalho e de nossas pesquisas com buracos-negros), a solução veio, graças aos nossos incessantes e frutíferos trabalhos no porão (ah, o porão!...).

Por isso, é com muita alegria que eu lhes apresento o inovador *FaZedoR de EsPaguEte HiperDiMenSioNal*. Não, não precisam fazer essas carinhas. É muito simples, e sei que estão aptos a compreender. Como sabem, os buracos-negros fazem com que a malha espaço-temporal dobre-se sobre si mesma como uma manta, devido à enorme força gravitacional gerada pela concentração de massa em um espaço muito pequeno. Pensem da seguinte forma [os alunos fazem cara de quem está pensando, pondo os lápis nas bocas e acenando as cabeças afirmativamente]: ao trespassar uma bexiga com uma agulha, necessitamos de um determinado tamanho de linha, a que eu chamo de "x". Porém, se essa bexiga tem suas extremidades comprimidas até se encostarem uma na outra, o comprimento da linha necessário será de "y", sendo que y > x, e x = ycm... hum... Bom, o importante é que a agulha atravessará ambas as paredes sem necessitar de comprimento de linha algum, de modo que a passagem é praticamente instantânea. Sendo assim, quando se pára de comprimir as paredes da bexiga, essas voltam ao seu lugar, fazendo com que novamente o comprimento de linha seja "x".

E, observando esse curioso fenômeno, nós nos indagávamos: o que aconteceria se puséssemos massa de farinha de trigo dentro do portal e desligássemos intermitentemente o buraco-negro, como os fantasmas fazem a um interruptor de luz? Chegamos, então, em nossos caderninhos, à mesma equação: sp = b.58+farinha+worm(hole)/m.c2. Interessante, não? Mas as respostas obtidas a partir daí divergiam drasticamente, sendo que algumas apontavam para a construção de uma nova Atlântida em Açores, e outras deduziam que o nosso Universo não era verdadeiro, mas uma mentira induzida em nosssos cérebros por Sauron. Transferimos, então, os dados em nosso computador, para que decifrasse para nós a verdade tão unanimemente expressa que, porém, chegava a tão diversos resultados. Mas, infelizmente, a resposta obtida pelo computador foi 42, e tivemos que ameaçá-lo com a fogueira para que parasse de fazer-nos pilhérias e dissesse de uma vez o resultado verdadeiro. E, para nossa supresa, a resposta foi espaguete. Mas é claro!, eu pensei. Tão óbvia! Bem debaixo de nossos narizes e nós não a vimos, o que nos deixou bastante surpresos porque sempre estávamos a olhar para os buços um do outro. Era assim, então, que funcionava: ao jogarmos a massa dentro do wormhole, e desligando o portal com ela ainda lá dentro, a massa estica até tomar a forma de um fio de espaguete muito fino e comprido. Brilhante, não?

E é assim que inauguramos a nossa própria fábrica de espaguete em nosso laboratório, cuja comercialização auxiliou-nos a adquirir esses galantes jalecos que brilham no escuro. Entretanto, devo dizer, o aproveitamento da massa posta no portal é apenas de 56%, que pretendemos melhorar com o passar do tempo. Acredita-se que o restante é perdido para outras dimensões conectadas involuntariamente pelo buraco-negro. Mas, em minha opinião, estamos diante de um clássico caso de pirataria intergaláctica. Quanto a isso, já estou encaminhando uma petição à Rainha para que bloqueie os portos dos mundos coniventes com esse vil contrabando que tanto nos onera. Agora, se me permitem, vou conduzi-los ao nosso refeitório, onde poderão provar nosso delicioso espaguete. Aliás, já colocamos, como nossa especial cortesia, pacotes de macarrão em suas mochilas enquanto anotavam o que eu falava.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Perto de um final feliz

- Ei! Psiu!
- Ahn? Que foi?
- Eu não posso ficar assim... Não estou apresentável. O que o Fiscal das Minas dirá se me ver vestido como uma sirigaita saturniana? Não estou digno! Faça alguma coisa!
- Como é que é?
- É... Você sabia que eu obtive licença para explorar os recursos minerais de Titã? Pois então! Ele está vindo aí, e eu aqui vestido como uma mulher impudica! Morro de vergonha!
- Titã!?
- É... Eu vendo gelo de etano para os drinques cósmicos dos astronautas, lembra?
- ...
- É sério! Então, não vai redesenhar o meu corpo? É urgente! Trajes espaciais decentes, por favor!
- Hum... Acho que não será possível. Estou sem tempo e está chovendo lá fora. Além do que, é como se o desenho já não me pertencesse mais...
- Bleh! Deixe de bobagens! Você sabe muito bem que essas filosofias baratas não resistem a um gesto seu. Vamos lá... Cabelos alaranjados e um nariz azul. E botas, também! Quem tem rabo vai a Roma. Muito fala quem cochich...
- Pára com isso!
- ...não se quebra omeletes sem queimar ovos. Onde tem fumaça tem tijolo. Água fria em pedra mole tanto fala até que...
- ...