terça-feira, 10 de abril de 2012

Lição de boas maneiras

Hoje no almoço assisti a uma reportagem sobre o ensino de boas maneiras nas escolas. Achei um pouco estranho como eles pareciam misturar etiqueta com moral, mas não importa. O importante é que as lições não estavam funcionando. Uma criança, ao ser perguntada sobre o que deveria fazer se um coleguinha chegasse com um pacote de bolachas, respondeu que "por favor, dá um pouquinho pra mim".  A despeito da graça que possam ter encontrado o repórter e sua turba, não posso deixar de fazer algumas objeções, pois a resposta me pareceu errada. Errada, errada, errada. Em primeiro lugar, não se pede a ninguém que lhe dê comida, com ou sem por favor. Deve-se esperar que a pessoa ofereça, e só então recusar a oferta. Acaso insista, poderá aceitar uma vez, e só se buscará pela segunda e terceira vez se se repetir a oferta. É claro que estamos falando de uma situação formal, e é claro que existem outras possibilidades, mas a maneira mais fácil é essa que estou indicando.

Em segundo lugar, não se fala "me dá um pouquinho, por favor, meu coleguinha". Se estamos falando de boas maneiras, deverá haver um mínimo de requinte. Não se estende a mão como um esfomeado irlandês, nem se aborda a pessoa como um assaltante de caminhão. Deve-se agir de tal forma que lhe pareça indiferente se o outro ostenta ou não um pacote de bolacha, pois em casa recebe alimentação suficiente de seus pais e não precisa farejar comida nos bolsos de seu colega. Antes se aguardará tranquilamente, sem trair qualquer ansiedade nos olhos, que lhe ofereça uma bolacha, e dirá, sem qualquer resquício de embaraço ou surpresa, que "não, obrigado". E quando finalmente chegar a hora, tomará do alimento como quem partilha, e não como o animal voraz e vil que surrupia a carne de entre os leões. Agirá com calma e gentileza, consciente da dignidade própria e da que emana ao seu redor, sem nenhum "inho", sem nenhum desmerecimento. Pois as boas maneiras são também rituais, passagens entre aqui e lá, e não deverão ser feitas sem um mínimo de respeito e paciência até que tudo se acomode conforme uma dignidade maior.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Sobre as boas maneiras VII

Quando tentei falar sobre as boas maneiras, vi-me forçado a pensar sobre o que era a sociedade, que espécie de comportamento exige e que fins lhes são próprios. Ao longo de minha prosa, porém, me perdi, e observo que a sociedade a que geralmente me referia acabou por se tornar algo bastante estranho à maioria de meus contemporâneos, e que as boas maneiras, que não são tudo o que há na sociedade, deixaram-se transformar no único estuário possível de suas ações. Se foi com muita dificuldade que fiz assomar a sociedade de meu entorno, a nossa velha e estimada sociedade que, embora velha, não pode ser remontada a desde sempre, não o fiz por um ingênuo saudosismo, mas por um instinto de preservação. É provável que tudo o que eu tenha dito ou venha a dizer torne-se posteriormente apenas uma busca inútil, uma busca em voga e que se tornará motivo de desprezo a medida que se vulgarize. Mas creio ter razão suficiente, senão ao meu modo, ao menos como me verão.

Se me ancoro nas boas maneiras, é porque nelas encontro a dignidade esquecida, a dignidade esquiva em cada grito de comerciante e em perguntas embaraçosas tanto de empregados como de empregadores. Desgasta-me, consome-me a alma que um qualquer ouse ter a pretensão de conhecer meu íntimo. O que venho a fazer, por que o fazer, o que sinto e por que sinto são assuntos pertinentes tão somente a mim. Se algum dia achar necessário contá-los, eu, e somente eu poderei encontrar a ocasião. Que meramente insinuem que eu deva revelar o que pertence somente a mim soa-me como grande ofensa à qual jamais perdoarei. Tomem-me um cumprimento, um aceno de cabeça, um comentário sobre o tempo e sobre o presidente da república, mas não queiram ir além disso sem o meu consentimento. Não estou ignorando os círculos de amizade e a possibilidade de criá-los, mas apena rejeito que isso seja imposto. Atirem-me na miséria se o quiserem, mas meu coração não é contêiner de lixo para pequenos empresários e vendedores de roupa ficarem vasculhando.

Eis aqui as boas maneiras. Entendo que a maioria das pessoas as tomem como encenações-opressoras-do-indivíduo, mas a maior opressão está em fazer revelar, e não em ser obrigado a ocultar o íntimo. Querem-no porque sabem suas possibilidades, a utilidade de conhecê-lo e controlá-lo. Há uma grande diferença entre o dever de dar bom dia e o dever de desejar bom dia, e enquanto o primeiro exige apenas um gesto formal, o segundo não se opera senão sob uma transformação cara entre o que se quer e o que se deve querer. Acusam os cortesãos de ocultar seus verdadeiros sentimentos, mas não percebem que assim fazendo preservam e mantêm a um só tempo o espaço de coesão entre os indivíduos e os indivíduos mesmos. Se uma relação deverá ser levada a um nível maior de intimidade, essa é uma decisão que cabe a cada um em particular. Aliás, meramente permitir-se mostrar em lágrimas perante o Grande Público parece-me um ato vil, uma ofensa como se me obrigassem a assistir a uma operação de vísceras, estirando-as sanguinolentas e brilhantes ante minha surpresa e confusão. Pois se reconheço dignidade em mim, sou obrigado a estender a meus semelhantes, e vê-los atordoados no chão do chiqueiro é como se eu mesmo também estivesse sendo denegrido.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Sobre as boas maneiras VI

Assim é que posso conduzir-me de maneira adequada e inadequada, e que quando de maneira adequada, poderei conduzir-me de maneira ordinária ou extraordinária. Já havia dito que o fato de uma conduta parecer extraordinária não significa que seja inadequada, nem muito menos indigna, e, portanto, ao falar em conduta adequada refiro-me tanto às maneiras comuns quanto às incomuns. Mas será que apenas nisso reside a diferença entre ser digno, indigno e mui digno? Observo, ao contrário, que nem sempre aquilo que é inadequado é indigno, e nem sempre o que é adequado é digno. Porém, o fato de ser possível que um ato adequado seja valorado como indigno e um ato inadequado seja valorado como digno ocorre porque os termos com que se qualificam partem ora da sociedade mesma, ora de um âmbito estranho a ela.

Quanto ao fato de que os valores da sociedade não sejam todos eles válidos fora de seus próprios círculos, não cabe a mim fazer reprovações entediantes e inúteis, ao menos não agora. Interessa-me antes entender o significado de ser digno ou indigno enquanto em sociedade e perante a sociedade. Não se trata de ignorar que a sociedade não exista somente enquanto corte, mas por uma questão de método entenderei assim. Chamem de sociedade, chamem de sociedade cortesã, a verdade é que ela possui características próprias que podem ser analisadas separadamente. Talvez, inclusive, não somente por um esforço de abstração, mas é possível observar que as pessoas possuem diferentes comportamentos quando em família e quando entre amigos, quando em ambiente de trabalho e quando em círculos mais formais a que chamo sociedade.

O que é, pois, ser digno em sociedade? Perante ela mesma, não se poderá chamar de adequado aquilo que contraria os protocolos. Portanto, desde já a dignidade social só poderá ser alcançada se respeitadas as regras de conduta existentes, sejam elas óbvias ou não, a depender da sensibilidade de cada um. Mas adequado a quem, onde e para quê? Em primeiro lugar, quando nomeamos a sociedade, estamos referindo-nos normalmente a um espaço que comporta as pessoas em um nível de conduta mais formal e, portanto, mais homogêneo. Essa homogeneização não implica, no entanto, ausência de identidade; pelo contrário, em raros momentos é possível encontrar papéis tão definidos quanto aqui. Diz-se condutas mais homogêneas porque, sendo estipulados os papéis, serão pelo mesmo motivo limitados em número.

É evidente que a espontaneidade enquanto transformada em conduta social já será diferente da espontaneidade possível nos círculos mais íntimos. Ela não existirá senão sob uma forma calculada, com limites mais ou menos claros e preestabelecidos, e assim serão todos os atos, as emoções, os sentimentos. Porém, não se trata de supressão. As intenções, os desejos, os sonhos, todos os sentimentos, enfim, que as pessoas trazem consigo independentemente de tudo não deixam de existir em sociedade, mas surgem nela sob uma roupagem própria, a roupagem cortesã e necessária para que todos possam expressar-se sem se destruírem mutuamente. Os protocolos sociais são como diques: separam a terra seca do mar. Mas mais do que proteger os indivíduos, protegem a sociedade de seu ímpeto e de sua vontade insaciável.

Mas com isso ainda não se distingue totalmente a sociedade. Regras pertencentes a outros âmbitos igualmente separam e comunicam os indivíduos. O que diferencia a sociedade de outros espaços é a espécie de interação que cria. E que interação seria essa? Será talvez uma interação galante e refinada. Mas por quê? Talvez porque a sociedade funcione como um sistema planetário, com os astros em concerto, e qualquer coisa que funcione de forma padronizada e atendendo a uma certa hierarquia, de movimentos espiralados de ascendência e descendência, criará sofisticação, partindo-se desde o centro até a periferia. Eis, pois, a sociedade cortesã: círculos padronizados e dirigidos a um centro regente, perante o qual desfila seu séquito em um constante e predeterminado cortejo.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Sobre as boas maneiras V

Alguns dirão que tal e tal pessoa agiu com dignidade, ou que tal e tal pessoa respondeu dignamente a uma pergunta, o que nada significa senão que se comportou de maneira apropriada: nem mais, pois que não se há de esperar que alguém aja apropriadamente supondo-se mais do que realmente é; nem menos, pois do contrário significaria humilhação indevida; mas justamente, conforme sua condição. Mas o que significa agir com propriedade? Não significará, certamente, o mesmo que dizer que determinado animal agiu conforme  a sua natureza, ou que determinado elemento químico respondeu a certa substância conforme o esperado. Agir de maneira apropriada significa mais do que responder à sua natureza, pois a sociedade não toleraria que se desse licença aos menores instintos. Tampouco poderá significar agir de maneira útil, não ao menos no sentido que se costuma dizer, pois comportar-se com propriedade não conduzirá a fim algum senão à própria estabilização da sociedade.

O que é então? Se agir inapropriadamente não significa uma mera ação contrária às expectativas, mas uma ação valorada negativamente, agir apropriadamente será a ação positivamente valorada. Nem sempre aquilo que não se espera é inapropriado, mas apropriado será até mesmo aquilo a que se chama de agir extraordinariamente bem, pois aquilo que é extraordinariamente bom não poderá ser ruim. Mas bom perante quem? Se se estivesse falando de agir piamente, bom será perante Deus. Se se fala de boas maneiras, boas serão as maneiras perante a sociedade. E quem é essa sociedade? Não se trata do ambiente familiar, nem dos amigos íntimos, mas daquele grupo mais ou menos homogêneo de pessoas que circulam à nossa volta, e nós à sua, sem que jamais queiram penetrar em nossa intimidade. É claro, entretanto, que o fato de que se age perante a sociedade não significa que as boas maneiras inexistam no ambiente familiar ou entre amigos, mas somente que seu referencial último é a sociedade. Quero dizer, ser apropriado entre amigos não significa que tal será considerado igualmente perante a sociedade, mas nada impede que as maneiras adequadas em sociedade da mesma forma sejam entre amigos.

Já disse há pouco que as boas maneiras não conduzem a fim algum a não ser à sociedade mesma. Isso porque o socialmente bom será a renúncia a qualquer movimento. Ninguém que aja com boas maneiras poderá seriamente pretender o rompimento de qualquer ordem, mas, ao contrário, verá que as boas maneiras fazem com que tudo se acomode como deveria ser. Não há glória aqui, não há conquista, e quando se fala assim, é apenas no sentido metafórico. Glórias, feitos, façanhas, tudo isso é uma linguagem mais própria de políticos e militares, mas que ganha uma coloração meramente divertida entre os cortesãos. E não poderia ser diferente. Enquanto os soldados marcham e flanqueiam, enquanto os diplomatas afastam o cano de uma arma com as pontas dos dedos, nos salões de toda a sociedade fulguram as taças e os coquetéis, e quase verdade alguma é dita, e quase objetivo algum é atingido, mas apenas um espaço de coesão entre aqueles que se veem, se aceitam, mas que não estão dispostos a ir mais longe do que isso. E aqui descansa toda a dignidade social a que todos almejam e a que todos devem encontrar.

Agir dignamente e, portanto, de maneira apropriada, é fazer-se ver perante a sociedade de forma valiosa, pois que em conformidade com suas expectativas ou, se de uma dignidade extraordinária, acima. Contudo, mesmo aqui não se disse tudo. Como será possível que alguém aja em conformidade e ao mesmo tempo de maneira extraordinária perante a sociedade? Se chamamos de ordinário agir adequadamente, e se a isso podemos chamar de dignidade, o extraordinário fugirá necessariamente ao padrão. E como algo que extrapola os protocolos sociais poderá ser digno da sociedade? A resposta, ao que me parece, só pode residir no seguinte: quando se chama de digno o agir extraordinário, não se está valorando positivamente algo novo, pois o novo é audácia e foge necessariamente aos protocolos sociais. Ao contrário, chamar de digno o extraordinário é fazer reconhecer neste o que já existia de intrínseco entre as normas de conduta, mas cuja conclusão poucos são capazes de levar, seja porque isso requer inteligência, seja porque exige uma qualidade moral incomum.

Tal como um músico talentoso explora as virtudes de uma flauta sem a destruir, aquele com qualidades incomuns saberá fazer-se notável na sociedade sem que para tanto tenha agido com insolência. Pois que comportar-se extraordinariamente bem não significa comportar-se inadequadamente, mas antes saber fazer-se notável apoiando-se na ordem e no consentido. Mas o que exatamente separa aqueles que agem adequadamente e de certa forma se ofuscam, daqueles que, sabendo ir além, fazem-se brilhantes e dignos? E, ainda, o que faz distinguir os que agem com superioridade dos que agem com subversão e audácia? É isso aproximar-se do que tanto chamam de hipocrisia da sociedade? Tais limites parecem ser mesmo muito acidentais, e deve ter-se em conta que a sociedade mesma é um espaço de encontros, não só de pessoas, mas também de ideias e atitudes, intenções muito mais profundas do que as meras formalidades. Tentar compreender de antemão o que é adequado, o que é extraordinariamente adequado e o que é inadequado, senão impossível, exige uma análise de cada situação.