quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Estudos pragmáticos domésticos, cap. XII

Bem é verdade que a vida civilizada pode proporcionar-nos condições materiais necessárias ao pensar metafísico ou mesmo puramente estético. Entretanto, alguns incômodos são inevitáveis, a não ser que se aprecie viver como um hippie imundo e sem direção, o que, obviamente, não é o nosso caso. Assim o são as regras sociais que, embora possam trazer certo desgaste físico e mental, sua observância é capaz de criar um mundo agradável e prático ao nosso redor, de modo a preservar-nos a intimidade e poupar-nos de ter que criar constantemente maneiras de relacionamento, bastando seguir alguns protocolos comportamentais. Por outro lado, dominar as artimanhas da prática social pode promovê-lo aos mais altos estamentos da sociedade, sem que, para isso, seja necessário possuir algum talento especial, sendo suficiente o pleno domínio dos padrões de comportamento, os quais o ajudarão a abrir brechas no denso emaranhado de interesses conflitantes.

Do mesmo modo, devemos submeter-nos a certos usos e modas correntes na sociedade se realmente queremos participar nela como uma pessoa civilizada, e boa parte das regras começam pelas vestimentas, pois lidam diretamente com a arte de esconder e aparentar. Porém, como nem sempre as vestimentas foram desenvolvidas para serem práticas, faz-se necessário aprender alguns truques que pouparão sacrifícios. A questão a ser abordada neste capítulo é: espartilhos. Quantos e quantos de nós não sacrificamos horas e horas de nossa manhã apenas para ter sua caixa torácica prensada em espartilhos, cujos elásticos estão tão tensos que nem  as leis de Newton logram explicar sua efêmera estabilidade?... Apesar do grande dispêndio de energia, são capazes de manter a massa extravagante em ordem, surrupiando, ao menos temporariamente, alguns quilos dos olhos alheios, de modo que são indispensáveis para uma boa apresentação em sociedade. Acontece, todavia, que o esforço em vesti-los é de tal magnitude e exaustão que se chega a duvidar se realmente seu uso vale a pena, desejando-se intensamente que a moda passe ou que ao menos alguém encontre uma solução que alivie o encargo. Pois a dificuldade em vesti-los chegou a tal monta que o seu uso começa a atrapalhar outros hábitos igualmente importantes, resultando em uma perda que põe sua observância em franca desvantagem. Mas há os que digam: "E daí? Que me importa se eu gasto duas horas com espartilhos... O importante é que eu estou bonita e blá blá blá". Insolente, você devia ser afogado na fonte pública. Essas duas horas deveriam estar sendo gastas lendo Thackeray, e não espremendo-se ofegante na frente do espelho. Nada mais deplorável do que uma esposa iletrada, cuja cabeça é tão oca que o marido tem que atravessar um salão enorme ladeado com os bustos de todos os imperadores de Roma para chegar até a sua mulher. É exatamente o que acontece com os espartilhos, cujo prejuízo de tempo compromete outras atividades mais frutíferas e úteis no meio social como a leitura, haja vista o tempo que se leva para vesti-los, tempo este que poderia ser bem melhor aproveitado.

E o que fazer para continuar usando-os sem que isso comprometa tempo e força física? Muitas mulheres tentaram suprimir essa penosa rotina dormindo com os espartilhos, de modo que, quando acordassem, não precisariam chamar Beth, Liza e Mary. O problema, porém, é que pela manhã elas simplesmente não acordavam mais. Muitas foram as que morreram durante a noite, sufocadas debaixo dos lençóis, levando ao túmulo horríveis caretas. Essa não é, certamente, a solução. Mas o momento da rendição chegou. Após muitas experiências e catástrofes científicas, encontrei o mecanismo ideal, que não só eliminará tempo e esforço, como também dor. É, contudo, muito simples, e pode ser realizado por qualquer um, não exigindo grandes custos ou inteligência. Você precisará:
  • um espartilho (dã);
  • 2 pregos
  • 2 ímãs;
  • cola.
Imagino que não será difícil obter esses objetos. Acaso tenha dificuldade, repita essas palavras (mas para a sua empregada, e não para as paredes - não vá dar uma de tonta): "Beth, vá até a caixa de ferramentas de meu marido e arranje-me pregos, cola e ímãs". Em um passe de mágica, estarão devidamente em cima de sua cama. Em seguida, estique o seu espartilho de maneira que fique bem amarrado entre o armário e a penteadeira. Pregue as extremidades em ditos móveis. Feito isso, e certificando-se de que o espartilho encontra-se bem esticado, cole (usando a cola) os ímãs nas pontas do espartilho. Imprima seu corpo com os braços levantados contra o espartilho, de modo a fazer um brando "v". Chame Liza e Mary. Liza e Mary deverão despregar os pregos ao mesmo tempo. Essa regra deverá ser cuidadosamente observada pois, caso contrário, os acidentes poderão ser drásticos. Retirados os pregos, as extremidades do espartilho serão impelidas uma em direção a outra, atraídas pelo ímã e impulsionadas pela tensão física, de forma a envolver o seu corpo, deixando seu tórax firmemente preso e comprimido. Como pode ver, tal sistema não leva mais do que alguns minutos: sem dor, sem esforço, sem delongas. E agora você pode gastar a manhã inteira lendo Thackeray, ou qualquer outra coisa que preste, e as suas criadas, claro, poderão dedicar-se a fazer uma deliciosa torta de amora. No final, todos saem ganhando.

domingo, 24 de outubro de 2010

Por que nós não precisamos de carros?

Ontem notei que eu não tinha um carro, quero dizer, não um que seja propriamente meu, o que foi, obviamente, uma surpresa, pois eu sempre tive a impressão de que eu estava indo para algum lugar. Então todos aqueles carros, limusines e ônibus não eram meus? Estou estarrecido e acabo de despejar a água do vaso em minhas costas, pois, francamente, eu realmente tinha a impressão de nunca precisar pedir ou implorar para que o carro começasse a andar. Eu embarcava, fechava os olhos, e... voilà! Lá eu estava. No começo achei que fosse alguma espécie de teletransporte acionado pela força do pensamento, ou algo como uma irresistível obediência à simples presença de minha autoridade. Mas agora sei que eu estava apenas pegando uma carona. Entretanto, após muito pensar, acabei concluindo que nós não precisamos de carros. Isso é o que tentam nos convencer, mas a verdade é que veículos motorizados são simplesmente dispensáveis, e nós podemos chegar a qualquer lugar em que queiramos ir, não importa a distância, porque:
  1. Nós, seres humanos, somos portadores de um dom que recebemos muito antes de nascer, e os contos de fadas estão repletos de relatos que comprovam que esse dom sempre esteve presente entre nós, a despeito de todo ceticismo. Não precisamos de carros porque, simplesmente, os pássaros podem nos carregar, bastando chamá-los e dizer-lhes o destino pretendido. Branca de Neve não foi a primeira nem a última a utilizá-los. Rápidos e singelos, os pássaros não requerem mais do que um punhado de alpiste para levá-lo a qualquer lugar além das colinas.
  2. Mesmo que você não tenha uma voz angelical para chamar os pássaros, há sempre a opção de virar um monge. Como todos sabemos, os monges adquirem, após muito treinamento, a capacidade de viajar através da luz dos vitrais, bastando para isso algumas horas de meditação e jejum. Há um amplo sistema de monastérios integrados ao redor de todo o mundo à disposição dos monges, de modo que todo monastério - não há erro - acabará dando em outro monastério, e isso pode tornar-se uma oportunidade única para conhecer toda a Cristandade.
  3. Entretanto, caso não haja monastérios em sua cidade, ainda pode-se contar com um sistema descoberto na Inglaterra vitoriana, que, embora haja controvérsias a respeito de sua moralidade, não há dúvida de que funcionou muito bem. Consiste em dar pancadinhas com a bengala nas juntas das pernas, quero dizer, na parte anterior dos joelhos, entre a coxa e a panturrilha. Uma pequena pancadinha nas pernas de uma criança proletária é capaz de transportá-lo de sua suíte até o teatro. Uma pancadinha nas pernas de um estivador o fará atravessar o Atlântico, proporcionando-lhe uma viagem de negócios até Boston rápida e sem enjôos. Nunca foi tão fácil apostar na bolsa de Nova York.
Como podem ver, não precisamos de carros. Nosso sistema de transporte é sem dúvida poluidor, caro e de dúbia comodidade, e não hesito em dizer que em breve estará moral e economicamente defasado quando souberem disso.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Roldanas, apenas

Vim aqui apenas para conciliar-me. Gostaria de mostrar que, por trás dessa máscara de pó-de-arroz e debaixo desse chapéu de plumas, esconde-se um humilde ser humano pronto a montar na frente de sua propriedade uma fila do sopão, acendendo nos tambores de lixo dos necessitados uma ardorosa chama da caridade e dando a todos, sem olhar a quem, uma bela caneca de legumes e carne. Deixo a frente de combate e assumo meu lugar no mundo mais uma vez, para dizer a todos sobre "as terras por onde andei, e os amigos que lá deixei". Abro então um grosso volume da estante - não que precise estar algo escrito, mas apenas enquanto uma maneira de abrir um livro suspirando e relaxando a musculatura das costas no estofado - e chamo para mais perto minha caneca de chocolate-quente. É preciso deixar os rosnados de lado, ao menos por um tempo, e esquecer o olhar nas fagulhas que ascendem em estrépitos da lareira, pois o mundo - eu sei, vai ser um choque - não é aquilo que eu disse. Bem é verdade que o mundo supra-sensível tem seus encantos, e que deixar-se seduzir pela plano das estruturas lógico-normativas é tão fácil quando não se tem que preocupar-se com o objeto de carne e osso que ficou para trás no processo objetivo de intelecção. Porém, meus irmãos, é como se o real morresse um pouco cada vez que se avança nessa pureza de pensar, e morrendo o mundo, perece o pensamento, e todas as terras que ele busca atingir afundam-se igualmente no horizonte das categorias abstratas.

Eu havia dito que nada mais inútil que a caridade. Sim, em certo sentido, mas nada mais vivo e belo que os pequenos gestos que tentam manter estáveis os pilares de nossa civilização, como se fossem úteis roldanas a tirar a sobrecarga por alguns instantes. Pois, embora meras roldanas, são roldanas, e fazem mover benfazejas os corações daqueles privados de todo o esplendor do Ocidente, quando então uma pequena parte de suas sombrias figuras são resgatadas da lama e trazidas à tona [para depois novamente naufragarem mal viram os voluntários as costas]. Roldanas podem parecer insignificantes diante de toda a enorme engrenagem. Mas é verdade que roldanas, apesar de meras roldanas, são muito bonitas e úteis, pois distribuem peso e aliviam a dor do trabalho. Lembro-me agora de um cenário do jogo do Pato Donald (que por sinal era em vários pontos aterrorizador, sombrio, místico e instigante), onde você tinha que conduzir o personagem através de varais, apoiando-se em roldanas e deslizando até o lado oposto. Ao fundo havia um cenário perturbante de uma cidade de tijolos alaranjados em um entardecer. Era muito bonito e ao mesmo tempo... qual é a palavra? Desolador, como todo fim de tarde. Enfim, roldanas são belas em aspecto e função, assim como pode a caridade ser, pois bondade também é beleza e razão, quero dizer, senão ao menos conversíveis entre si, apóiam-se como condições de existência. Pois certas coisas não são possíveis de valorar-se pelos seus efetivos resultados, mas aquilo que lhes deu origem já vale por si mesmo, e indica que as coisas existem e acontecem não importa o aproveitamento que se lhes possa tirar. Caridade já vale por aquilo que é, independentemente de quão fútil e efêmero seja seu resultado.

Dentre outras mentiras e veleidades que me esqueci enquanto lia esse livro imaginário que eu tirei, mas que, sem dúvida, mancham igualmente meu semblante. Apenas para dizer que eu deposito mais confiança no que os outros falam do que em minhas próprias palrações. Bom, na verdade somente em alguns, evidentemente, nos quais deponho o dever de corrigir-me, pois sei que detêm a tão desejável ilustração pela qual exponho o meu pensamento. Mas o que estou a dizer! Não devo satisfações de meus negócios! [joga a a caneca de chocolate-quente na cara da anfitriã e começa a dançar ao som de Gipsy. Na verdade, todos começam a dançar].

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Coração de areia

Nos pálidos nodos das espáduas desliza
O negro manto de súbito despertado
Sobre o silêncio da torre de brilhante hulha
Onde de trás sequiosas esconsas polias
Erguem pesados anéis do velo de sombras
E vestem-me a opalina pedra erigida.

Marcham os úmidos pés sobre o promontório
Emerso dos braços de estrelas esgarçadas
Nas rochas da noite, e no cinzento zimbório
Das nuvens finco-me o gume de rouca ânsia
Vertida das pulmonares bolsas inchadas
Das notas contorcendo-se em amarelo óleo.

Espraio-me nas douradas trompas do abismo
E deixo levar-me o vento a inútil espuma
Dos cabelos cobertos em sinos de sal,
Como se o silvo me arrefecesse aos ouvidos
O sentido de meu rastro pelo ermo gelo
Onde estremece a aurora em semblante esquecido.

Pairo lúcido espectro sobre a vela ardente
De uma insone memória que em luz de cinábrio
Rasga-me o odre de ferro como a um ventre,
E em febre nas trevas em asas de quitina
Arrasto-me extinto de todo o antigo anelo
Perdido em roxas brumas dos olhos pungentes.

Revolvem no lodo as rodas o frágil vulto
Que submerso decanta seus veios de cálcio
Pelo pântano como um coração de areia,
E nas dragas de lúrida fronte convulso
Enfim descubro a mais dura pedra colhida
Vazar em lama de ervas dos punhos oclusos.

sábado, 9 de outubro de 2010

Ao pé de uma macieira

Ao expor a minha dúvida quanto à possibilidade de haver a multiplicação de riquezas diante de um mundo natural que apenas se reproduz através de si mesmo, sem que isso signifique qualquer espécie de aumento quantitativo de matéria, fui acusado, e bem justamente, de portar uma concepção medieval da economia. Eu reconheço a minha ingenuidade, mas, embora eu não devesse, senti-me orgulhoso disso. É como se eu me visualizasse encostado em uma macieira, a escrever um tratado sobre a agricultura em latim, cunhando sentenças de tom moral, mas solidamente calcadas na antiga lógica aristotélica. E, volta e meia, eu volveria meu olhar para a vista do campo, dominado por um castelo erguido no sopé de uma pequena colina, onde os servos semeiam as valas abertas e empurram o arado pelo solo, um tanto duro, mas que logo vai cedendo ao instrumento puxado por dois bois de olhar brejeiro. E então, suspendendo a pena por esses longos momentos de contemplação, iria compondo lentamente sobre a verdadeira origem da riqueza de um país.

É que as idéias dos antigos parecem-me muito mais simpáticas e pacíficas, como se a sua manifesta ignorância, que só agora nos parece manifesta ignorância, não fosse senão a revelação de um mundo mais terno e calmo, de ritmo lento como as passadas de um boi. Tão diferente dos modernos moralistas, que parecem gritar em meus ouvidos, conclamando o céu e o inferno para que venham às suas fileiras e marchem em direção a um destino hipotético e pseudocientífico. Parecem ter perdido a capacidade de falar em um tom sereno e sério, como se o discurso não pudesse fazer efeito nos ouvintes senão através de expressões de violência e dados assustadores, como se o nosso sono não pudesse ser despertado senão através do medo e de mentiras, engenhosamente disfarçadas para servir a sua boa-causa. Porque a verdade, para eles, não passa de uma concepção parcial da realidade, amoldada por interesses de grupo ou classe, e a sua busca objetiva é uma ilusão, da qual estão cansados e agora tomam as ruas queimando pneus e fazendo chantagens.

Eles tocam o meu interfone e começam a falar uma série de coisas, que eu não entendo bem, pois há muito barulho de buzina no fundo. Eu até tento discernir algum sentido racional em seus discursos de palanque, mas só consigo escutar aqui e acolá "hipocrisia", "nova ordem", "pró-ação", "tira essa bunda do sofá". Eu vou, mas é para colher maçãs e para pôr essa bonita fotografia.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Eu aqui, polindo os meus óculos

Muitas vezes a conveniência faz com que conceitos fundam-se um aos outros, como se não fossem mais do que digressões de um mesmo ser, e como se cada fragmento do vitral pudesse ser tomado como a origem primeira e o destino último dos demais. E assim torna-se possível a criação de um monopólio de um conceito sobre todos os outros, forçando-os a comprimirem-se em uma mesma moeda, na qual não é mais possível manter intactos os antigos limites que os circunscreviam. Então a posição do observador passa a ser não apenas o início de toda especulação, mas o denominador comum, que não somente paira sobre os conceitos como uma sombra, mas envolve-os e imiscui-se em suas essências, confundindo-os em um mesmo plano artificialmente ampliado. É o que muitas vezes acontece quando algumas pessoas resolvem enxergar as coisas pelo "prisma social", pretendendo interpor entre o sujeito e o objeto uma teoria científica e, ao mesmo tempo, "desmascarar" a realidade, sem que isso implique em qualquer contra-senso em seu discurso, como se as máscaras caíssem automaticamente sob a luz dessa teoria, que já não é mais mero discurso hipotético, mas verdade revelada. Porém, enxergar as coisas por outro prisma é algo curioso para mim, pois eu mesmo penso os prismas como a metáfora perfeita para os seres imutáveis, sólidos e exatos, e não como transparências diante das quais tudo parece relativizar-se em miríades de posições. Da mesma forma, não consigo entender como e quando foi que a universidade passou a ser entendida como instituição social, nem entendo em que sentido poderia realizar qualquer espécie de função junto à sociedade, como tão fastidiosamente tem-se comentado.

Quando ouço falar em universidade, o que me vem à mente - e não só à minha, mas imagino que à de muitos ainda – é aquele velho conceito de universidade, construído pelos séculos e levada até os nossos dias pela tradição, que nos fala de um lugar voltado para o ensino e pesquisa científicos, preocupado na formação profissional de técnicos e na transmissão da cultura. Mas parece que os fins que persegue já não são suficientes para justificar a sua existência, e agora urge que adote uma postura mais ativa no meio social, desenvolvendo programas que beneficiem diretamente a sociedade como um todo, e não agindo como se fosse uma nave alienígena, voltada para si e alheia às mazelas de nosso sistema. Afinal, ela recebe recursos públicos provindos da contribuição de todos, de modo que a universidade não é mais do que uma servidora, cuja principal preocupação deveria estar centrada nas necessidades de seu meio, e não em perseguição a fins esdrúxulos e fúteis, sem utilidade imediata que possa ser aproveitada por toda a população. Não pode ser mais vista, portanto, como uma mera instituição de ensino e pesquisa, mas um agente social, calcado nos valores da justiça e da igualdade, como mesmo convém a uma verdadeira democracia. E então ela segura na barra da saia e faz uma leve flexão com os joelhos, pois não é justo que tão-somente uma pequena parcela da população se beneficie de todo o seu aparato, pois aquilo que todos ajudaram, de uma forma ou de outra, a construir, deverá ser por todos acessível, e aqueles que, devido a condições sócio-econômicas desfavoráveis, mantiveram-se afastados de sua instituição deverão ser incluídos, numa entediante tentativa de aliviar em seus quadros as desigualdades econômicas, raciais, étnicas, etc.

Ocorre, entretanto, que a universidade nada tem a ver com tais condições sócio-econômicas, e pouco lhe importa que camadas inteiras da população sejam sistematicamente eliminadas de suas carteiras e laboratórios. Os valores que constituem a sua natureza institucional não são o da justiça e da igualdade, pois o espaço em que se desenvolvem as pesquisas e o ensino não é um espaço social, muito menos um espaço político, pois a maneira como promove suas ações não se dá baseada em necessidades econômicas ou em interesses comuns que atinjam a todos, nem mesmo pretende ser um espaço de decisão ou determinado por regras comportamentais. Os valores que regem o ambiente universitário são o do mérito pelo conhecimento e o da iniciativa científica, de modo que constitui-se não em uma estrutura eminentemente democrática, mas em uma hierarquia entre aqueles que sabem e aqueles que querem saber. O que promove suas relações é o conhecimento, e só em torno deste é que se promove o debate, não no sentido em que se dá em um ambiente político, pois não almeja nenhuma tomada de decisão, mas apenas no sentido da promoção da ciência, no aprimoramento da técnica e do conhecimento. É por isso que um professor não pode esperar aprender muito com seus alunos, a não ser que se esteja diante de um claro déficit de formação acadêmica, pois não são iguais que se encontram no ambiente universitário, mas indivíduos hierarquizados pelo conhecimento. É claro que semelhante hierarquia não é a mesma que se dá em um espaço social, pois é muito mais volátil e relativa, e os pólos entre aquele que sabe e aquele que quer saber podem facilmente inverter-se conforme a situação.

O que se quer dizer é que a universidade não pode vincular-se à subsistência da sociedade, pois visa à produção de conhecimentos de forma livre, e semelhante intromissão só tem a atrapalhar toda a iniciativa científica. Do mesmo modo, a formação profissional e a promoção cultural que desenvolve não pode transformar-se em mero serviço público, pois não se trata de extensão de um departamento da administração. É importantíssimo que mantenha autonomia face à política e à sociedade, pois os fins que estas perseguem são absolutamente impróprios na consecução de um de seus principais objetivos: a busca pela verdade. Quando se atrela as iniciativas científicas da universidade às necessidades sociais ou aos interesses políticos, a pesquisa está fadada ao condicionamento, e a produção do conhecimento perderá o seu tão essencial caráter objetivo e neutro. Os interesses, sejam sociais ou políticos, amoldam a produção dos fatos, vinculam os objetivos e tecem verdades falsas e parciais, que nada têm de científico, mas, ao contrário, constroem ideologias, contra as quais não parece haver verificabilidade ou provas em contrário que possam desmenti-las ou iluminá-las. Mesmo as promoções culturais, que talvez sejam as atividades que mais se aproximem a um conteúdo político ou social, não podem sobreviver durante muito tempo como ação autônoma e espontânea quando começam a perseguir algum tipo de finalidade que não a própria produção cultural. Pois se a universidade em vários momentos pretende a transmissão e cultivo de idéias, tradições, filosofias, o faz no sentido de manter o conhecimento vivo e livre, e sua liberdade cessa exatamente quando passa a perseguir fins alheios à sua natureza institucional.

Do mesmo modo, transportar artificialmente valores de justiça e igualdade para um lugar que é tradicionalmente formatado pela hierarquia do conhecimento não é fazer mais do que a anfitriã que encobre os móveis de sua casa com lençóis floridos. A universidade não é lugar para justiça ou igualdade social, pois tal deve ser feito muito antes, em sua verdadeira origem. Tentar mascarar problemas sérios de ensino sob a égide de um pretenso valor social que deve buscar a universidade, assemelha-se mais à ação caritativa do que a um ato de justiça, e nada mais inútil do que a caridade. Esta se parece com uma espécie de um mal necessário, como uma ultima ratio, quando nada mais é possível de ser feito e quando tudo parece já não adiantar. Então temos a caridade, que apenas consegue sustentar, manter em movimento as pás de um moinho, mas nunca construir um outro moinho. Assemelha-se mais ao trabalho solitário e recôndito do burrinho, que faz girar as engrenagens enquanto se move em círculos lentos, como se o seu próprio trabalho não fosse senão um mudo sofrimento. Caridade morre em si mesma. Quando a ação caritativa cessa, nada além dela sobrevive. Pois é um ciclo, não uma reta projetada para o futuro, como é a acumulação do conhecimento e a ação política.

E eu digo isso (e aqui me dispo de qualquer conteúdo para atingir o neutralmente polido, o discurso de plumas e pó-de-arroz, pois mesmo não acho que semelhantes idéias sejam fáceis de virem desacompanhadas de ódio e preconceitos) tomando meu chá de erva-cidreira, e não dando surras com pão-bengala em suas costas.