domingo, 18 de dezembro de 2011

Outrem em bandanas

No supermercado aqui perto, quando você faz uma compra superior a certa quantia, eles emitem um comprovante da sorte: você ganha um desconto de 30% em determinada bolacha, sabão em pó e até mesmo entradas para cinema. Eu sempre olhava atrás desse papel para ver se eu tinha ganhado alguma coisa (um desconto de 10% em chocolate seria algo maravilhoso para mim). E isso sempre com muita discrição, muita sabedoria. Nunca ganhei nada, nadinha, pois imagino que as compras que faço são em valor muito aquém ao necessário.

Acontece que, um belo dia, enquanto eu me dirigia às portas automáticas da libertação, o Sr. Guarda do Estabelecimento flagrou-me olhando o comprovante para ver se tinha alguma coisa. E, como se isso não fosse o bastante, ele sorriu. Ele sorriu, e de tantos dentes e em tais fileiras corretas que não tive dúvida. Meu Deus, ele havia captado a minha expressão facial que, nesse momento, devia ser bastante idiota. Certamente havia notado aquela parte comunicável, o lado miserável de todo ser humano, o que há de pior em mim e em todos nós. Havia visto a ânsia pueril em meus olhos, o brilho mesquinho, os músculos dispostos a formar o ar  daquele personagem tonto e fútil que há em todo consumidor. Eu era um consumidor e ele havia percebido isso!

E, agora, como esquecer aquele sorriso escandaloso, luxurioso, indecente, aberto em meia-lua púrpura e, desde a sua libré encarnada em panos cinzentos e sem viço, usurpador? Como afrontar aquele sorriso de caçador satisfeito e de certa forma compadecido, de quem vê a caça que, tão ingenuamente, tão ridiculamente, procurava abrigo em meio aos arbustos? Recorrer a uma adaga mágica e magicamente cortar-lhe o sorriso e expô-lo em praça pública para que sirva de exemplo? Não, claro que não. Apressar o passo, maldizendo-o por todo o caminho e arrastando panos e mais panos, tiras e tiras de seda e, se possível, abrir a sombrinha de um golpe seco e preciso, apoiando-a levemente em meus ombros e virando-lhe as costas e a existência inteira? Sim, eis a única solução coerente.

Maldito guarda. Será que não sabe que vivo de sutilezas, de precauções, de um complicado cálculo de equilíbrios e desequilíbrios, movendo cuidadosamente pesos de cobre sobre o tabuleiro? Pois desde então, quando recebo o comprovante do atendente do caixa, eu amasso imediatamente e atiro no lixo, que é para mostrar quem manda. O guarda que se cuide. Ou ele pensa que meu repertório é limitado como o deles, sim, eles, os outros, o resto? Aqui, minhas bandanas! Aqui, minhas caixas de lenço! Aqui, as escrituras de minas do Oeste, dos bordéis em Saint Louis, dos escritórios em Boston e Chicago! E eis meu arcabuz: quando eu terminar de carregá-lo, verá, meu senhor, a potência e alcance que tem.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Mas - oh - não vá ainda

Mas - oh - não vá ainda. Tal qual a condessa de Báthory, percebo que suas lágrimas ao molhar-me rejuvenescem a pele. E conta-me - retenho-te - a tua triste história, que de nossos defeitos não nos envergonharemos. Mais além - não vês? - desta janela, entre pomares de neve eu também cantei. E calvos senhores então me olhavam, e de meus sapatos enlameados ralhavam desde o pórtico até as escadarias que ascendiam ao meu quarto. E não era eu que limparia as pegadas; em tais templos, seres como nós somos mais do que espíritos, pois até mesmo os espíritos um dia neste mundo de um esfregão estiveram ocupados. Nossa condição é maior e mais difícil de entender. Somos, talvez, canalhas, e nessa cadeira em que te sentas sou obrigado a ver senão igualmente um canalha. Há algo de madeira em nós, não ossos; de palha sob estes panos, não carne. E em nossos olhos, algo opaco, como se em seu lugar houvessem posto cascas de noz. É assim que talvez nos vejam. Mas, neste camarim, deles estamos seguros, e por isso não deixa de esvaziar-te essas sombras movediças do peito: somos como naus antigas, anacrônicas, bruxuleando entre padarias e salas de aula. Não temos fim: que somos? Somos um pente, um banho. Se entramos em um supermercado, somos seus corredores, seus carrinhos vazios, o estrépito agourento de quando se encaixam. Se lemos algo, sua história absorve-nos por completo. É necessário que nos transformemos em arcos e pilastras antes que nos digam que deste Reino não poderemos beber. Não temos existência e no mundo nos dissolvemos. Mas - oh - não pare de teu pranto. Contar-te-ei ainda coisas mais tristes, histórias de soldados, de moços jovens que morrem em gaiolas, de moças pequenas abandonadas no ralo da pia; de países assolados pela desesperança e colinas em chamas, de florestas onde sempre é outono e onde cachorros farejam por coelhos que há muito foram extintos. Cutucar-te-ei até que tuas lágrimas cheguem ao fim, e de ti nada mais reste. Ouves esse barulho lá fora? Estão lavando nossas culpas; seus esfregões trabalham incansavelmente; estão jogando baldes de água - ou mais bem ácido - sobre nossas pegadas. Nada disso que fazemos é necessário. Para quê? De nossa beleza então fazemos nossa glória. Vês nossos rostos no espelho da penteadeira? É terrível, eu sei. Estamos cada vez mais belos. Ah, sim! É horrível aquilo que nos reserva a existência inútil. Mas não se preocupe: eu sustentarei o teu rosto desfeito em minhas mãos delgadas e frias e, sem dizer-nos palavra alguma, tudo cessará. Então, quando irromperem por esta porta, surpreender-se-ão por não mais encontrar-nos. Em nossos lugares, verão pássaros empalhados, de plumas coloridas e olhos de um brilho que, sem deixar de ser bem um brilho, aos seus olhos afigurar-se-iam tristemente baços. E eles mexerão em nossas coisas, em nossos baús, brincarão com nossos escritos e nossas roupas finas: nós ainda poderemos assisti-los. Mas não se preocupe, pois até mesmo isso terá seu fim.

Rápido, a pedra!

Há uma cena em Dragon Ball Z em que Babidi está prestes a ser destruído por um colérico Piccolo. Não me lembro dos detalhes, apenas disso: um arruinado, ensangüentado, esbugalhado e empoeirado Piccolo, contraindo todos os músculos de seu corpo e espírito, aos urros e gemidos, em toda a concentração animalesca de sua energia vital e a do universo, espasma suas garras virulentas de onde um potente raio amarelo tenta, penosamente, atravessar o escudo mágico que Babidi havia convocado murmurando, tão singelamente, "proteção". Um verdadeiro ator da burocracia.

Essa cena é o paradigma da minha vida. Resume, de certa forma, o meu temperamento e o meu ideal. Os poderes de Piccolo provém de sua condição animal; é a conversão de sua força física em energia luminosa, não sem antes a custo de muita luta e sofrimento. O universo plasma-se em um cone imensurável desde a palma da mão de Piccolo até as galáxias mais distantes, pois Piccolo é o próprio Universo, a própria vida: está condicionado à matéria, às suas vicissitudes e transformações; é ele próprio a degradação e a dor. E, como resultado, seu poder é muito superior, ao menos quantitativamente, ao de Babidi.

Já os poderes de Babidi não são outra coisa que não mágica. São fórmulas, sentenças capazes de manipular a realidade. Seu uso não implica em gasto, cólera ou destruição, pois esses atalhos, capazes de levar o mago de um extremo ao outro de maneira instantânea e segura, não são criações nem implicam qualquer transformação. Já estavam ali, e tudo o que Babidi precisa fazer é descobri-los, conhecê-los e, assim, dominá-los. Babidi não cria leis, apenas as conhece e as usa. Diferentemente de Piccolo, um mago não distorce o Universo: de seu emaranhado de gravetos, um mago puxa-os para si ao seu talante sem fazer desmoronar a pilha. Parece contraditório, mas Babidi, de alguma forma, é capaz de sair sereno e limpo.

E, bom, aonde eu quero chegar com isso? Acontece que, de ambos, o único que sai intacto é Babidi. Piccolo, ao fundir os elementos do universo, destrói a si mesmo. Babidi, ao contrário, conservando-o, é capaz de preservar-se, e mesmo que, tal como Piccolo, sua ação desencadeie as forças naturais, com elas não se identifica, pois as manipula desde um ponto externo sem que se imiscua o mago. Piccolo, ao contrário, age como um conversor de energia, e, no final das contas, não é ele muito diferente de uma estrela ou de qualquer outro elemento do universo  (não lembro se Piccolo destruiu o escudo; o que não não vem ao caso).