terça-feira, 10 de abril de 2012

Lição de boas maneiras

Hoje no almoço assisti a uma reportagem sobre o ensino de boas maneiras nas escolas. Achei um pouco estranho como eles pareciam misturar etiqueta com moral, mas não importa. O importante é que as lições não estavam funcionando. Uma criança, ao ser perguntada sobre o que deveria fazer se um coleguinha chegasse com um pacote de bolachas, respondeu que "por favor, dá um pouquinho pra mim".  A despeito da graça que possam ter encontrado o repórter e sua turba, não posso deixar de fazer algumas objeções, pois a resposta me pareceu errada. Errada, errada, errada. Em primeiro lugar, não se pede a ninguém que lhe dê comida, com ou sem por favor. Deve-se esperar que a pessoa ofereça, e só então recusar a oferta. Acaso insista, poderá aceitar uma vez, e só se buscará pela segunda e terceira vez se se repetir a oferta. É claro que estamos falando de uma situação formal, e é claro que existem outras possibilidades, mas a maneira mais fácil é essa que estou indicando.

Em segundo lugar, não se fala "me dá um pouquinho, por favor, meu coleguinha". Se estamos falando de boas maneiras, deverá haver um mínimo de requinte. Não se estende a mão como um esfomeado irlandês, nem se aborda a pessoa como um assaltante de caminhão. Deve-se agir de tal forma que lhe pareça indiferente se o outro ostenta ou não um pacote de bolacha, pois em casa recebe alimentação suficiente de seus pais e não precisa farejar comida nos bolsos de seu colega. Antes se aguardará tranquilamente, sem trair qualquer ansiedade nos olhos, que lhe ofereça uma bolacha, e dirá, sem qualquer resquício de embaraço ou surpresa, que "não, obrigado". E quando finalmente chegar a hora, tomará do alimento como quem partilha, e não como o animal voraz e vil que surrupia a carne de entre os leões. Agirá com calma e gentileza, consciente da dignidade própria e da que emana ao seu redor, sem nenhum "inho", sem nenhum desmerecimento. Pois as boas maneiras são também rituais, passagens entre aqui e lá, e não deverão ser feitas sem um mínimo de respeito e paciência até que tudo se acomode conforme uma dignidade maior.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Sobre as boas maneiras VII

Quando tentei falar sobre as boas maneiras, vi-me forçado a pensar sobre o que era a sociedade, que espécie de comportamento exige e que fins lhes são próprios. Ao longo de minha prosa, porém, me perdi, e observo que a sociedade a que geralmente me referia acabou por se tornar algo bastante estranho à maioria de meus contemporâneos, e que as boas maneiras, que não são tudo o que há na sociedade, deixaram-se transformar no único estuário possível de suas ações. Se foi com muita dificuldade que fiz assomar a sociedade de meu entorno, a nossa velha e estimada sociedade que, embora velha, não pode ser remontada a desde sempre, não o fiz por um ingênuo saudosismo, mas por um instinto de preservação. É provável que tudo o que eu tenha dito ou venha a dizer torne-se posteriormente apenas uma busca inútil, uma busca em voga e que se tornará motivo de desprezo a medida que se vulgarize. Mas creio ter razão suficiente, senão ao meu modo, ao menos como me verão.

Se me ancoro nas boas maneiras, é porque nelas encontro a dignidade esquecida, a dignidade esquiva em cada grito de comerciante e em perguntas embaraçosas tanto de empregados como de empregadores. Desgasta-me, consome-me a alma que um qualquer ouse ter a pretensão de conhecer meu íntimo. O que venho a fazer, por que o fazer, o que sinto e por que sinto são assuntos pertinentes tão somente a mim. Se algum dia achar necessário contá-los, eu, e somente eu poderei encontrar a ocasião. Que meramente insinuem que eu deva revelar o que pertence somente a mim soa-me como grande ofensa à qual jamais perdoarei. Tomem-me um cumprimento, um aceno de cabeça, um comentário sobre o tempo e sobre o presidente da república, mas não queiram ir além disso sem o meu consentimento. Não estou ignorando os círculos de amizade e a possibilidade de criá-los, mas apena rejeito que isso seja imposto. Atirem-me na miséria se o quiserem, mas meu coração não é contêiner de lixo para pequenos empresários e vendedores de roupa ficarem vasculhando.

Eis aqui as boas maneiras. Entendo que a maioria das pessoas as tomem como encenações-opressoras-do-indivíduo, mas a maior opressão está em fazer revelar, e não em ser obrigado a ocultar o íntimo. Querem-no porque sabem suas possibilidades, a utilidade de conhecê-lo e controlá-lo. Há uma grande diferença entre o dever de dar bom dia e o dever de desejar bom dia, e enquanto o primeiro exige apenas um gesto formal, o segundo não se opera senão sob uma transformação cara entre o que se quer e o que se deve querer. Acusam os cortesãos de ocultar seus verdadeiros sentimentos, mas não percebem que assim fazendo preservam e mantêm a um só tempo o espaço de coesão entre os indivíduos e os indivíduos mesmos. Se uma relação deverá ser levada a um nível maior de intimidade, essa é uma decisão que cabe a cada um em particular. Aliás, meramente permitir-se mostrar em lágrimas perante o Grande Público parece-me um ato vil, uma ofensa como se me obrigassem a assistir a uma operação de vísceras, estirando-as sanguinolentas e brilhantes ante minha surpresa e confusão. Pois se reconheço dignidade em mim, sou obrigado a estender a meus semelhantes, e vê-los atordoados no chão do chiqueiro é como se eu mesmo também estivesse sendo denegrido.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Sobre as boas maneiras VI

Assim é que posso conduzir-me de maneira adequada e inadequada, e que quando de maneira adequada, poderei conduzir-me de maneira ordinária ou extraordinária. Já havia dito que o fato de uma conduta parecer extraordinária não significa que seja inadequada, nem muito menos indigna, e, portanto, ao falar em conduta adequada refiro-me tanto às maneiras comuns quanto às incomuns. Mas será que apenas nisso reside a diferença entre ser digno, indigno e mui digno? Observo, ao contrário, que nem sempre aquilo que é inadequado é indigno, e nem sempre o que é adequado é digno. Porém, o fato de ser possível que um ato adequado seja valorado como indigno e um ato inadequado seja valorado como digno ocorre porque os termos com que se qualificam partem ora da sociedade mesma, ora de um âmbito estranho a ela.

Quanto ao fato de que os valores da sociedade não sejam todos eles válidos fora de seus próprios círculos, não cabe a mim fazer reprovações entediantes e inúteis, ao menos não agora. Interessa-me antes entender o significado de ser digno ou indigno enquanto em sociedade e perante a sociedade. Não se trata de ignorar que a sociedade não exista somente enquanto corte, mas por uma questão de método entenderei assim. Chamem de sociedade, chamem de sociedade cortesã, a verdade é que ela possui características próprias que podem ser analisadas separadamente. Talvez, inclusive, não somente por um esforço de abstração, mas é possível observar que as pessoas possuem diferentes comportamentos quando em família e quando entre amigos, quando em ambiente de trabalho e quando em círculos mais formais a que chamo sociedade.

O que é, pois, ser digno em sociedade? Perante ela mesma, não se poderá chamar de adequado aquilo que contraria os protocolos. Portanto, desde já a dignidade social só poderá ser alcançada se respeitadas as regras de conduta existentes, sejam elas óbvias ou não, a depender da sensibilidade de cada um. Mas adequado a quem, onde e para quê? Em primeiro lugar, quando nomeamos a sociedade, estamos referindo-nos normalmente a um espaço que comporta as pessoas em um nível de conduta mais formal e, portanto, mais homogêneo. Essa homogeneização não implica, no entanto, ausência de identidade; pelo contrário, em raros momentos é possível encontrar papéis tão definidos quanto aqui. Diz-se condutas mais homogêneas porque, sendo estipulados os papéis, serão pelo mesmo motivo limitados em número.

É evidente que a espontaneidade enquanto transformada em conduta social já será diferente da espontaneidade possível nos círculos mais íntimos. Ela não existirá senão sob uma forma calculada, com limites mais ou menos claros e preestabelecidos, e assim serão todos os atos, as emoções, os sentimentos. Porém, não se trata de supressão. As intenções, os desejos, os sonhos, todos os sentimentos, enfim, que as pessoas trazem consigo independentemente de tudo não deixam de existir em sociedade, mas surgem nela sob uma roupagem própria, a roupagem cortesã e necessária para que todos possam expressar-se sem se destruírem mutuamente. Os protocolos sociais são como diques: separam a terra seca do mar. Mas mais do que proteger os indivíduos, protegem a sociedade de seu ímpeto e de sua vontade insaciável.

Mas com isso ainda não se distingue totalmente a sociedade. Regras pertencentes a outros âmbitos igualmente separam e comunicam os indivíduos. O que diferencia a sociedade de outros espaços é a espécie de interação que cria. E que interação seria essa? Será talvez uma interação galante e refinada. Mas por quê? Talvez porque a sociedade funcione como um sistema planetário, com os astros em concerto, e qualquer coisa que funcione de forma padronizada e atendendo a uma certa hierarquia, de movimentos espiralados de ascendência e descendência, criará sofisticação, partindo-se desde o centro até a periferia. Eis, pois, a sociedade cortesã: círculos padronizados e dirigidos a um centro regente, perante o qual desfila seu séquito em um constante e predeterminado cortejo.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Sobre as boas maneiras V

Alguns dirão que tal e tal pessoa agiu com dignidade, ou que tal e tal pessoa respondeu dignamente a uma pergunta, o que nada significa senão que se comportou de maneira apropriada: nem mais, pois que não se há de esperar que alguém aja apropriadamente supondo-se mais do que realmente é; nem menos, pois do contrário significaria humilhação indevida; mas justamente, conforme sua condição. Mas o que significa agir com propriedade? Não significará, certamente, o mesmo que dizer que determinado animal agiu conforme  a sua natureza, ou que determinado elemento químico respondeu a certa substância conforme o esperado. Agir de maneira apropriada significa mais do que responder à sua natureza, pois a sociedade não toleraria que se desse licença aos menores instintos. Tampouco poderá significar agir de maneira útil, não ao menos no sentido que se costuma dizer, pois comportar-se com propriedade não conduzirá a fim algum senão à própria estabilização da sociedade.

O que é então? Se agir inapropriadamente não significa uma mera ação contrária às expectativas, mas uma ação valorada negativamente, agir apropriadamente será a ação positivamente valorada. Nem sempre aquilo que não se espera é inapropriado, mas apropriado será até mesmo aquilo a que se chama de agir extraordinariamente bem, pois aquilo que é extraordinariamente bom não poderá ser ruim. Mas bom perante quem? Se se estivesse falando de agir piamente, bom será perante Deus. Se se fala de boas maneiras, boas serão as maneiras perante a sociedade. E quem é essa sociedade? Não se trata do ambiente familiar, nem dos amigos íntimos, mas daquele grupo mais ou menos homogêneo de pessoas que circulam à nossa volta, e nós à sua, sem que jamais queiram penetrar em nossa intimidade. É claro, entretanto, que o fato de que se age perante a sociedade não significa que as boas maneiras inexistam no ambiente familiar ou entre amigos, mas somente que seu referencial último é a sociedade. Quero dizer, ser apropriado entre amigos não significa que tal será considerado igualmente perante a sociedade, mas nada impede que as maneiras adequadas em sociedade da mesma forma sejam entre amigos.

Já disse há pouco que as boas maneiras não conduzem a fim algum a não ser à sociedade mesma. Isso porque o socialmente bom será a renúncia a qualquer movimento. Ninguém que aja com boas maneiras poderá seriamente pretender o rompimento de qualquer ordem, mas, ao contrário, verá que as boas maneiras fazem com que tudo se acomode como deveria ser. Não há glória aqui, não há conquista, e quando se fala assim, é apenas no sentido metafórico. Glórias, feitos, façanhas, tudo isso é uma linguagem mais própria de políticos e militares, mas que ganha uma coloração meramente divertida entre os cortesãos. E não poderia ser diferente. Enquanto os soldados marcham e flanqueiam, enquanto os diplomatas afastam o cano de uma arma com as pontas dos dedos, nos salões de toda a sociedade fulguram as taças e os coquetéis, e quase verdade alguma é dita, e quase objetivo algum é atingido, mas apenas um espaço de coesão entre aqueles que se veem, se aceitam, mas que não estão dispostos a ir mais longe do que isso. E aqui descansa toda a dignidade social a que todos almejam e a que todos devem encontrar.

Agir dignamente e, portanto, de maneira apropriada, é fazer-se ver perante a sociedade de forma valiosa, pois que em conformidade com suas expectativas ou, se de uma dignidade extraordinária, acima. Contudo, mesmo aqui não se disse tudo. Como será possível que alguém aja em conformidade e ao mesmo tempo de maneira extraordinária perante a sociedade? Se chamamos de ordinário agir adequadamente, e se a isso podemos chamar de dignidade, o extraordinário fugirá necessariamente ao padrão. E como algo que extrapola os protocolos sociais poderá ser digno da sociedade? A resposta, ao que me parece, só pode residir no seguinte: quando se chama de digno o agir extraordinário, não se está valorando positivamente algo novo, pois o novo é audácia e foge necessariamente aos protocolos sociais. Ao contrário, chamar de digno o extraordinário é fazer reconhecer neste o que já existia de intrínseco entre as normas de conduta, mas cuja conclusão poucos são capazes de levar, seja porque isso requer inteligência, seja porque exige uma qualidade moral incomum.

Tal como um músico talentoso explora as virtudes de uma flauta sem a destruir, aquele com qualidades incomuns saberá fazer-se notável na sociedade sem que para tanto tenha agido com insolência. Pois que comportar-se extraordinariamente bem não significa comportar-se inadequadamente, mas antes saber fazer-se notável apoiando-se na ordem e no consentido. Mas o que exatamente separa aqueles que agem adequadamente e de certa forma se ofuscam, daqueles que, sabendo ir além, fazem-se brilhantes e dignos? E, ainda, o que faz distinguir os que agem com superioridade dos que agem com subversão e audácia? É isso aproximar-se do que tanto chamam de hipocrisia da sociedade? Tais limites parecem ser mesmo muito acidentais, e deve ter-se em conta que a sociedade mesma é um espaço de encontros, não só de pessoas, mas também de ideias e atitudes, intenções muito mais profundas do que as meras formalidades. Tentar compreender de antemão o que é adequado, o que é extraordinariamente adequado e o que é inadequado, senão impossível, exige uma análise de cada situação.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Sobre as boas maneiras IV

Quando se diz que alguém possui boas maneiras, não está se referindo a uma qualidade excepcional, a um eclipse de talentos e encantos, mas a uma harmonia de gestos e palavras, uma constância de entonação e de humor que não precipite os demais em sua própria pessoa. Quero dizer, não são nem a frieza histérica com que se fantasia de um inglês vitoriano, nem a cordialidade emotiva de um russo glutão; não são a exaltação de virtudes, nem o acanhamento completo, pois antes alguém que se conduza com boas maneiras tenderá a criar um espaço de conforto e amenidades. São, como já se me indicava anteriormente, intermediações entre as pessoas, acomodações gesticuladas e bem ditas que possam indicar a cada coisa um lugar justo e seguro. E é por isso que sua perfeição mede-se em termos de adequabilidade, como, por exemplo, ao se dizer que tal assunto é próprio ou impróprio à mesa, ou que tal atitude não convém a um jovem.

Mas, ora, isso não leva a uma assunção de papéis, de representações, de encaixes e estojos? Sim, é verdade. Ter boas maneiras significa agir e falar adequadamente em determinado espaço, perante determinadas pessoas e levando em conta sua própria condição. Um rei deverá falar como um rei, um político como um político, e um político deverá saber quando não ser político e quando sim. Por outro lado, se as boas maneiras tendem a definir estados e ações, seja lá com relação a que valores, elas também podem possuir um núcleo central que seja adequado a todos e em todos os lugares. Pois se é verdade que tal comportamento apenas caberá aqui e lá, e se é verdade que as boas maneiras podem conduzir os espaços ao conforto tão bem quanto ao enrijecimento, na medida em que cristalizam os atos e as reações em agradabilidades e jogos de mesuras, há nelas um conjunto inquebrantável que, pela virtude de servir a todos, poderá conservar no espaço uma necessária liberdade contra esses excessos da sociedade.

E qual seria a essência de tais boas maneiras? Obviamente que da mais simples e da mais comum. Não por isso significará menor refinamento, pois não há boas maneiras sem refinamento, caso contrário se cairia no absurdo de poder atribuir-se boas maneiras aos primeiros instintos. Por exemplo, comer um frango de maneira adequada não pode ser medido através do modo mais fácil ou útil, mas através de sua adequação a determinados valores: se se valoriza a parcimônia, não deverá ser comido demonstrando-se demasiado apetite. Se será com as mãos ou com talheres, já isso é uma questão que considero mais contingente. Porém, as boas maneiras nunca significarão outra coisa senão determinado refinamento, e o meio de buscá-lo não se resumirá a um somente. Logo, ter em vista boas maneiras em um núcleo que atenda a todos não dispensará refinamento, mas significará apenas um código mais amplamente aceito, coisa que não acontece senão a um número bem restrito.

Mas observo que a confusão apenas cresceu. Será realmente possível que exista? Quero dizer, será possível que exista uma etiqueta que possa ser usada por todos e em todos os lugares? Ou será que  um sacerdote deverá comportar-se como um sacerdote e nada mais além? Parece-me que não. Parece-me, aliás, que a chave da questão, embora não a responda, está no fato de que as pessoas não podem reduzir-se a seus personagens sociais, caso contrário, já não funcionariam as boas maneiras como muros, mas seriam elas mesmas o tudo. Devem, portanto, existir em um modo reduzido e simples, e devem ser de tal efeito que permitam ora ou outra a sua transgressão. Pois as boas maneiras não são o ponto em si do mundo, mas antes seus contornos, suas guirlandas e seu passeio à loja de flores. Não almejam o céu, mas tampouco dele se distanciam, e se seria insensato pensar-se em fazer delas todo o objeto de sua vida, mais ainda seria dispensá-las, pois espaço social algum sobreviveria se todos se pusessem a agir da maneira mais confusa possível.

terça-feira, 27 de março de 2012

Sobre as boas maneiras III

Já é a terceira vez que tento levar o assunto, e a essa altura deveria estar-me perguntando o que são as boas maneiras, mas não farei isso senão em outra oportunidade. Por ora, continuarei a conduzir-me estreitamente, circular e sem nunca de fato atingir o essencial. E nada mais adequado do que conduzir-se assim em se tratando de boas maneiras. Afinal, quando se faz uma cortesia, uma genuflexão, uma reverência, não estamos pretendendo outra coisa senão deslizar delicadamente ao redor de um ponto sem nunca nele cair.

Mas vejo que estou passando do horário. O que tão decididamente me trouxe foi a recordação do vendedor da loja de tênis que insistentemente me tocava no ombro. Sabe Deus de onde ele veio, mas me parece bastante desagradável ser forçado à intimidade com alguém por meio de contato físico, ainda mais em se tratando de uma relação puramente de comércio. Meu pai pode até tê-lo achado simpático, mas ele não me engana.

Talvez eu até devesse perdoá-lo pelo incômodo, pois sei que é uma mão invisível que o força a degradar-se perante os demais, concedendo lisonjas a situações evidentemente banais e exaltando a dignidade de um ambulante qualquer. Porém, se é de fato uma mão invisível, digamos então que ele força essa cordialidade justamente porque as pessoas gostam disso, porque sabe que assim elas comprarão e que se acaso agisse de outra maneira se sentiriam ofendidas.

Pois bem, faço-lhe essa indulgência, mas apenas para estender meu julgamento a toda a sociedade. Pois se de fato em geral se pensa que é adequado, ou melhor, desejável que um vendedor dê-se a liberdade de tocar alguém no ombro, puxando para si o seu cliente como seu mais habitual amigo, creio que devo fazer minhas objeções de porque devemos querer uma postura diferente. Vou tentar ser bastante breve, pois a verdade é que me ocorrem inúmeras.

Em primeiro lugar, eu chamo a atenção para a inadequação do âmbito. Uma relação entre vendedor e comprador não precisa, obviamente, ser a mais fria possível, mas acho que ninguém realmente está disposto a abrir seu coração no balcão de uma loja. Se existe uma coisa que nenhuma cordialidade do mundo conseguirá atingir é o coração. Pois o coração é justamente o que as boas maneiras tentam contornar e evitar, e não será num jogo de compra e venda que isso será diferente.

Desde a perspectiva do vendedor, parece-me igualmente inadequado que o comprador, e não mais ou tão somente o vendedor, exija dele essa afeição. Se não se pode exigir do comprador que exponha o coração, do mesmo modo o vendedor não deverá expor o seu. Forçar sentimentos é romper a fina casca que nos protege do mundo, e a degradação é verdadeira em ambos os polos, a não ser que alguém me prove que possa haver uma relação que não envolva no mínimo dois pontos.

Em segundo lugar, considero que as verdadeiras intenções, os desejos secretos, a vontade última e recôndita de toda pessoa não podem ser transpostas ao mundo sem mediações adequadas. E uma dessas mediações é o que nós chamamos de boas maneiras. O que um vendedor faz ao tocar seu ombro e chamá-lo à amizade, embora possa ser considerado por muitos como simpatia, é corromper essa mediação e manipular-lhe a vontade.

Pois certamente ele não deseja sua amizade, nem mesmo tenta criar um espaço agradável de convivência, mas tem como fim último a venda de um tênis, de um aparelho televisor, de um serviço de telefonia. As boas maneiras, porém, não são, creio eu, artifícios que sirvam à vontade de um único alguém. Algo tão antigo não pode ser identificado como uma armadilha. Ao contrário, as boas maneiras são, ao que parece, mediações adequadas para que todos possam mover-se sem se expor.

E não há dúvida de que ele poderia ter agido de modo diverso. Há maneira certa para tudo nessa vida, e, nessa situação, não era tratar-me como se fosse seu amigo, pois eu nem o conhecia e tampouco buscava amizade. Antes houvesse se limitado a ser gentil, indicando-me o produto e respondendo em exatos termos, e não tentando comover-me à compra, mas dignamente esperando que a situação por si só revelasse sua necessidade.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Sobre as boas maneiras II

Desta vez falarei sobre as boas maneiras. Não à mesa, coisa que suas mães já devem ter ensinado, mas em sala de aula. Desde há quase duas décadas vivo em uma, e penso que muitas outras pessoas também, por isso acho que o que vou expor aqui tem algum interesse prático... pela primeira vez em meu blog. Nunca vi ninguém mencionar nada a respeito, mas tenho cá comigo que possui um sentido comum e intuitivo, principalmente para você, meu caro colega invisível, que, assim como eu, preza pela ordem e pelo silêncio.

Em primeiro lugar, falemos sobre a carteira-sanduíche, recheio de biscoito, o creme do seu pavê. Confessemos o quanto é desagradável estar situado entre dois amigos que não são seus amigos, mas apenas entre si. Nessas ocasiões, penso que teria imenso gosto em estapear as bochechas de quem a todo instante fica voltando a cabeça para trás para bisbilhotar, chamar a atenção, conversar, mencionar algo que-não-sei, e tudo isso se passando como se quem está imediatamente atrás simplesmente não existisse. Pois desde pequeno sala de aula foi-me ensinado assim: o professor entrou, silêncio e postura até que termine.

Mas esse argumento também valeria para os colegas do lado, da frente, do fundo, enfim, para todos. O principal motivo não é a sua inquietude ou a falta de sentido de ordem, coisa que eu tenho muito prazer em ignorar, mas o fato de que, ao voltar seu rosto em minha direção, eu percebo que tal rosto possui dois olhos; dois olhos como dois faróis, enormes e possuídos. E eles carregam uma violência que me incomoda: a violência de dois faróis me atravessando, dois fachos invasivos a que eu devo simultaneamente atentar-me e permanecer indiferente. Como se isso fosse possível.

Muito bem, é verdade que não se pode proibir que em todas as situações alguém olhe para trás, porém isso deve ser feito de um modo discreto, sereno e rápido. E que não se repita o gesto senão por extrema necessidade, o que significa que muito provavelmente só deverá ser feito uma única vez. Pois que ninguém pode olhar para trás, encontrar-se com os olhos de outro e sair levianamente. Essa conjunção involuntária é amarga demais, é trazer à consciência, de novo e de novo, o fato de se estar rodeado por estranhos; é trazer à tona uma intimidade entre duas pessoas sem que para tanto se estivesse pronto ou fosse querido.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Sobre as boas maneiras

Não falarei das boas maneiras, porque às vezes tudo o que a gente pode é permitir que as pessoas continuem fazendo o que elas estão fazendo, seja lá o que estejam fazendo. Eu nem sei mais se seria desejável que as pessoas começassem a seguir as regras que me norteiam, ou melhor, um código de regras que eu muito provavelmente desenvolvi ou recriei desde fontes não muito claras. Hoje, sou muito mais tolerante e flexível do que era (com os outros, comigo sigo como sempre, pois jamais cederei). Mas nem sempre consigo ocultar meu desprezo. Dou-me conta disso quando, caminhando, vejo alguém cuspindo para o lado, sem a menor deixa de que aquilo poderia parecer repulsivo aos outros. Minha reação está além de mim: fecho a cara e imobilizo meu pescoço, olhando fixo para frente, sem a menor misericórdia para com a pessoa que, percebendo minha desaprovação, passa por mim de cabeça baixa. Mas já fiz pior. Há alguns anos atrás, quando voltando da faculdade, o colega que me acompanhava interrompeu minha já sôfrega tentativa de manter um diálogo arranhando asquerosamente a garganta e cuspindo no chão. Parei de falar e fiquei esperando que se desculpasse, coisa que, para minha consternação, não aconteceu. (A faculdade me ensinou muitas coisas, e uma delas é que os estudantes parecem sofrer uma regressão de maneiras quando longe de suas casas paternas).

E como se eu já não houvesse visto de tudo, sou pego de surpresa por meu professor. Não sei em que parte eu estava, mas acho que era uma daquelas coisas que as pessoas não se importam de ouvir e estão muito mais interessadas em encontrar uma oportunidade para enfiar uma ideia que latejava em suas cabeças. Eu estava em sua sala, discutindo sobre o projeto de monografia, e já era suficientemente triste reparar nas condições do escritório. Na verdade, ele já possuía um jeito exaltado, mas foi com uma entonação melhor com que ele se debruçou sobre a mesa, levantou os olhos e perguntou: "Você já pensou em fazer uma pesquisa de opinião a respeito?". Disse que não, mas já adivinhando e fazendo um muxoxo em pensamento. "E você não acha que seria interessante para o seu trabalho? Porque é uma coisa muito simples. Sabe o que você faz? Você vai lá naquele terminal de ônibus no horário de pico, quando aquilo está cheio de gente, e vai de pessoa em pessoa, ver o que eles acham. Só chegar e perguntar se concordam ou não. O que você acha?". Respondo que não sei. "Porque na verdade, na questão do seu trabalho, você poderia incrementar..." "Acho que a opinião deles não é muito importante", eu respondo, em um arrombo de sinceridade. Não foi minha intenção cortá-lo assim abruptamente, mas é que a ideia de ir no terminal de ônibus em horário de pico, segurando uma pranchetinha e indo de pessoa em pessoa perguntando àquelas caras cansadas feito um pateta me passou feito um lenço umedecido com álcool. Talvez ele também tenha se dado conta da insensatez, e voltou a se acomodar na poltrona.

Por quê? Porque há regras, muitas regras que, embora eu não me encontre disposto para impô-las, não quero desobedecê-las sem antes estar convencido de coração que não merecem ser seguidas. Eu particularmente   não acho que seja adequado infiltrar-se em um ambiente tão hostil e tão apolítico como um terminal de ônibus, em meio à multidão e ao forte calor, para interromper mentes já extasiadas do trabalho com perguntas bobas de sim/não. É isso ser cruel? Sinceramente, já longe de minha postura inicial, eu tenho quase certeza de que eu estou certo, de que o bom-senso, ao menos dessa vez, estava comigo, e que ele só não viu isso porque estava muito abitolado com falsos moralismos e demagogias; preocupado demais em atender às classes negligenciadas e totalmente esquecido da velha etiqueta, como não rir alto ou falar enquanto mastiga. Onde foi que ele desaprendeu regras simples de convivência? Ou talvez nunca realmente parou para pensar. Mas não é muito difícil. Imaginar-se no lugar do outro, por exemplo. E aqui, para finalizar, faço uma confissão. Não foi somente pensando no bem daqueles trabalhadores na rodoviária que rejeitei com tanta firmeza a proposta do professor. Não me dou muito bem em servir cafezinho, e se me obrigarem a fazê-lo, eu verto a cafeteira nas suas visitas. Não que eu não ache realmente importante a opinião das pessoas do dia-a-dia, mas eu jamais me submeteria à condição humilhante de sair por aí consultando-as sem sequer estar investido da impessoalidade de uma autoridade pública. Antes me tranco no gabinete e fico a arrumar cartas. Se eu quiser uma opinião, telefono para as pessoas de costume, coisa que sempre me bastou.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Preciso

Essa mulher no banco de trás está cutucando-me no ombro, soprando baixinho por minha atenção. O que foi? Sentei em cima do seu gato? "Não é isso" - ela me responde - "é que o seu chapéu está quase tocando nas minhas sobrancelhas e...". Como é que é? Que insolência! Nem respondo. Levanto-me, pois pela janela vejo que chegou a hora de descer do ônibus. Estão cada vez mais ousados: o garçom, o pintor, a atendente de padaria. Dessas afrontas o mundo sempre sai ileso, mas haverá um dia em que eu não descerei assim tão passivo, e pelas ruas correrei a incendiar suas casinhas de cachorro-quente.

Que pensam que sou? Que sou um deles? Acaso eu visto as mesmas roupas? Acaso eu sustenho os mesmos panos, os mesmos meneios? Sequer assisto ao mesmo programa de televisão! Eu nem tenho televisão; mandei penhorar juntamente com o rubi do anel que eu havia herdado, e que agora porta uma pedra de zircônio. Estou falido, é a bancarrota de todos os meus sonhos. Mas isso não importa. Não permitirei que me dirijam a palavra enquanto eu estiver encurralado no elevador, nem aceitarei que me enfiem panfletos nas mãos enquanto eu estiver andando distraído.

Que vão fazer? É isso uma nova moda, injuriar-me ao pressuporem que no mesmo cocho eu devo comer? Pois modas não existem, eu respondo. O que eu carrego é antigo e diverso de qualquer banalidade com que se reencarna um oleado de duas décadas atrás. Ah, não, isso de modo algum é moda. Só os frouxos pensam em termos de moda; algo passageiro, aleatório, avulso, um bilhete de cinema. Estão enchendo as minhas veias como a calha está enchendo o balde da água da chuva: sua origem está muito distante, e no entanto é absolutamente esperada e precisa.

E essas vitrines... Como seria bom estraçalhar esses vidros com uma rajada de raio laser. O que foi? Aumentaram os preços dos sapatos? Dos meus sapatos? Ora, pois verão! E vocês, o que pensam que estão fazendo? Acham mesmo que alguém deva interessar-se por uma camiseta que mais parece um outdoor, uma lona de caminhão? Ah, sim? Pois tomem isso! Mas o quê? Agora eu não posso sair de casa sem parecer que eu esteja entrando em um campo de batalha? Essa cidade está minada! E lá vêm os bombardeiros, lá estão os atiradores de elite! Aqui: toldem-se da noite de meu casaco - eu lhes digo, atirando sobre os aviões meu melhor abrigo.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Este não é um livro de sabedoria II

Estava o mestre com seus quatro discípulos ao redor da mesa para a última refeição. O mobiliário era modesto, e da pequena sala ocupavam apenas um ínfimo canto, espremidos todos numa única sombra. Tomando de uma cesta de pão, falou-lhes o mestre:
- Comei, que tudo é sagrado e substancial ao corpo.
- Até os cogumelos venenosos? - disse um dos discípulos, no que os demais abaixaram a cabeça e engasgaram com o vinho.
O mestre olhou-os como se não compreendesse o motivo do embaraçamento e, dando a cada qual um pão duro e pesado, respondeu-lhe:
- Até os cogumelos venenosos.
- Até a carne dos animais necrófagos? Até mesmo os frutos em estado de decomposição avançada? Até mesmo os vermes? - continuou o discípulo, no que os demais lançaram-lhe um olhar de reproche.
- Sim - disse o mestre fitando seu copo, indiferente.
E nada mais disse. Discípulos e mestre terminaram de mastigar sua modesta refeição em silêncio e apenas podiam-se ouvir os sorvos apressados e os ruídos aflitos de seus dentes rasgando as crostas de pão. Ao terminar, levantaram-se e, após despedirem-se do mestre, dirigiram-se ao quarto de dormir, caminhando austeros e ruflando os panos grossos de suas longas vestes.
- Boa noite - disse Auden, cobrindo-se com o ralo cobertor e tombando seu delgado corpo para a parede.
- Boa noite - disse Tauden, socando seu travesseiro e estendendo-se feito estátua sobre o duro colchão.
- Boa noite - disse Mauden, soprando a vela e fazendo ranger a cama com o seu peso.
- Boa noite, irmãos - disse Faulen que, surpreendido com a escuridão, por um momento quase se esqueceu da direção da parede, mas acabou encontrando-a e virou-lhe as costas como era de seu costume.
No dia seguinte, um dos discípulos havia amanhecido morto por asfixia. O mestre, perguntando então por Faulen, ao notar sua ausência à mesa para a primeira refeição, recebeu em resposta um encolher de ombros dos demais:
- Não quis acordar - disse Mauden, servindo-se de manteiga.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Este não é um livro de sabedoria

Certo dia, atraído pela fama de seu sábio, veio um estranho à aldeia de Wang-Bei, às margens do Wi-Po, a procura de um conselho. Havendo encontrado a sua casa, estava o sábio de cócoras a riscar o chão com um pauzinho enquanto assoviava baixinho em seu idioma de velho. O estranho aproximou-se e, após haver-lhe feito a reverência, perguntou:
- Mestre, sou rico, tenho uma boa esposa, bons filhos, mas não sou feliz. O que devo fazer?
O velho, ainda de cócoras, ergueu-lhe os olhos e disse:
- Deves encontrar o caminho do Norte; quando encontrá-lo, por ele seguir.
- Mas, mestre, que caminho é esse de que me falais?
O sábio, havendo se posto de pé, caminhou pacientemente para o meio da estradinha e, convidando o estranho para que se aproximasse, apontou-lhe o caminho do Norte, o qual seguia sinuosamente para além das últimas casas da aldeia até confundir-se aos montes Quong, limites da província.
- Vês o norte? - indagou-lhe o sábio.
- Sim, mestre, porém ainda não entendo.
- Entenderás, pois.
O velho, então, fincou bruscamente suas mãos no chão e, soltando um urro, fez desprender um enorme bloco de terra. O estranho recuou vários passos, absolutamente atônito, mas antes que pudesse compreender qualquer coisa, o velho golpeou-lhe repetidas vezes até que um fio de sangue começasse a escorrer desde o topo de seu crânio.
- Isto é o caminho do Norte - disse o sábio, abandonando o bloco a um canto e espanando as mãos.
O estranho, havendo limpado o fio de sangue com a manga, fez-lhe a reverência, voltou-lhe as costas e seguiu para as províncias do Sul, onde não era a sua casa, nem havia sábios de que soubesse.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O Espirro Final

Estou enfrentando um bloqueio há alguns dias. Cheguei a pensar que talvez até me tornasse indisposto a qualquer leitura, o que, para o meu alívio, não se revelou verdade. O bloqueio é quanto à forma: por mais que eu me esforce, por mais vívidas que sejam as imagens, eu não consigo transpô-las num formato pelo qual eu me dê satisfeito. É como se pássaros de asas bem formadas e fortes debatessem-se contra as grades de uma gaiola: não consigo mais balbuciar, cantarolar. Tentei fazer longas caminhadas na esperança de que arejassem a minha mente, remoendo enquanto andasse minhas idéias, mas eu voltava sempre com a mesma dificuldade. E a tal ponto cheguei que, penso, talvez seja hora de mudar meu foco. De qualquer modo, a produção era tão ínfima e tão demorada que é bem possível que eu estivesse torturando-me há anos a escrever algo que não é do meu feitio.

Mudar o meu foco: muito bem, mas qual? Alguém sabe afinal a que veio a este mundo? Então eu pensei: talvez a sociedade possa revelar-me minha situação, ajudar-me a compreender minhas possibilidades e os caminhos que eu devo tomar. Ah, sim? Isso talvez seria verdade se as nossas inclinações fossem por ela determinadas, mas acho que todos nós conhecemos casos suficientes mostrando que, se bem é verdade que ela pode condicionar, atormentar, obstruir ou mesmo facilitar, nós temos predisposições inatas que o meio é incapaz de mudá-las sem antes destruí-las. Porém, tais inclinações inatas manifestam-se de um modo muito vago: são habilidades sem cor, sem ritmo. Alguém nasce com facilidades para, o que não significa que realmente chegue a realizá-las, muito menos se sabe como ou sob que forma.

E digamos, então, que eu tenha predisposição para. Mas esse para é indefinido, eu posso realizá-lo de inúmeras formas; uma palheta vastíssima de cores está à minha disposição desde o meu nascimento. Como descobrir? Eu não sei, e isso me causa temor: e se eu perseguir determinada forma que jamais houvesse verdadeiramente se adequado à minha habilidade durante toda uma vida? É um desperdício de tempo, de energia e frustração. Eu não sei o que estou fazendo aqui, nem sei onde eu gostaria de estar (supondo que gostar é revelação daquilo a que se está destinado). Talvez seja um bloqueio temporário, mas pode bem ser uma descoberta da qual eu não possa retroceder. Por outro lado, sem isso, o que farei? Jogar ping pong, passar meus dias interessando-me por cavalos ou coleção de selos, entregar-me a frivolidades e esperar a redenção da morte?

A quem devo sacrifícios? Quero atingir teu altar, mas não posso sequer conceber uma trilha. Estou feito palha em óleo a espera daquele que virá inclinar-me a sua tocha. Meus silos estão cheios, os moinhos são novos, há carvão nas fornalhas. Mas as casas de meus servos estão inesperadamente vazias e mesmo a guarda de meu castelo parece haver abandonado seus postos. Talvez seja hora de levantar o pó da mobília, reorganizá-la, matar velhos duendes dorminhocos e inúteis escondidos nas gavetas e: pôr-me um novo casaco. Ah! e que terrível será esse casaco! A pedraria de seu bordado resplenderá como sóis roubados do mais temível templo, e seu tecido será feito com os mais inacessíveis e sombrios pântanos! Seu talhe conterá a alma e a de todos que o olharem, e às trevas do deleite e da servidão um a um sucumbirão! Contemplem, pois desde o bramido das ondas contra as escuras rochas a Lua do meu verbo assoar-se em meu lenço do alto do promontório!

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Esse cavaleiro

Eu até defendo os gordos, os feios, os pútridos, os desvalidos, aqueles que assim não deveriam ser mas são, ou que, nesse dever ser, só o fazem parcialmente. Mas há algo aqui nesse coração que os despreza, que os poria em uma cama de hospital e disporia cuidosamente numa bandeja os instrumentos cirúrgicos. Uma parte de mim que quer mudá-los, adequá-los, alterar o estado das coisas a custa de violência. E que parte de mim seria essa? Seria a sociedade? Pois eu acho que não, já que essa justamente me diz para preservá-los, manter as peças do tabuleiro em ação, contornar as viciosas realidades em um rodopio de valsa. E obviamente que não poderia ser o eu dos sonhos, o mais visceral de todos, o inatingível e incompreensível, pois bastaria pôr em prática qualquer um de seus elementos para vê-los retorcendo-se no charco da vulgaridade sem que nada acontecesse. Não posso, talvez, saber sua origem, já que submersa, mas é possível conhecer seu emissário. Para levar a cabo qualquer transposição ao mundo, é necessário um agente, e semelhante mensagem deveria ser carregada através de um agente transformador e subjugador, um eu tirano que, diferentemente da sociedade, a qual vela pelo diálogo e pela conciliação, se impusesse incauto e intransigente, revelando seus valores na forma de imperativos. E esse eu tirano possuiria uma vontade que, construída ou não pela razão, empreenderia uma ação de conquista e de desequilíbrio, de transformação e jugo. Mas seria esse agente, esse eu tirano algo inerente ao emissário? Não seria, na verdade, essa tirania diversa do modo pelo qual aquela emerge das pessoas, no sentido de que o emissário não é esse tirano, esse subjugador e ponto de desequilíbrio, mas tão somente a mensagem que traz?

Muito bem, eis aqui o cavaleiro e sua mensagem. Mas se é assim, de que estratos retira seu conteúdo? Aqui meus poderes começam a falhar, e chutarei que isso depende muito e que, podendo ser tanto do íntimo quanto do social, tenho-o por um cavaleiro de armadura sem o homem, o emissário desvinculado de sua mensagem, a qual, por sua vez, possui inúmeras origens. A inclinação que cada um tem por mudar o seu mundo, dispor uma nova ordem de coisas em seu entorno, não é necessariamente boa nem má, muito menos é possível dizer que sua ação é voltada sempre à destruição. Esse cavaleiro pode muito bem empreender um processo inverso, de modo que, ante um outro cavaleiro, seja levado a opor-se, informando-se na restauração e no resgate da velha ordem. Se é assim, então esse cavaleiro não tem conteúdo nem direção, mas surge como simples ator. Poderia arguir-se ainda que, nesse movimento, é impossível que a ordem das coisas permaneça inalterada e que, portanto, seja qual for a sua direção, a mudança é inerente à ação. De qualquer maneira, não está na ação a origem dessa tirania. O cavaleiro de que falo é, pois, puramente o responsável pela ação, seja ela boa ou má, seja lá de onde venha e para onde pretenda ir. Ele não explica essa pretensão totalizadora, pois tão somente é seu veículo.

Meu desejo de ação é maligno não porque toda mudança é má, mas porque o estrato em que se informa ou é inadequado aos fins que se pretende, ou mesmo porque tal estrato em sua essência é mau. E vindo essa voz de meu profundo coração, um esmaecido eco desde os confins da alma, eu diria então que, por consequência, minha alma é, ao menos em parte, má, ou, na melhor das hipóteses, não é ela má, mas a sua transposição para o mundo que sim.  Soa-lhe familiar? Ah, sim, é bem possível que todos nós carreguemos o mal conosco, talvez uns mais que outros, porém sempre em potencial. E o que faria para que alguém decidisse atuar de maneira má ou boa? Novamente foge aos meus poderes de compreensão. E como saber se há uma propensão se jamais ela foi provada? Sinto que apenas sei do que sou capaz quando sou efetivamente posto a prova, porém, enquanto apenas em teoria, permaneço preso a uma intransponível dúvida. Mas quem seria o responsável pela mensagem maligna que carrega o cavaleiro se não é o cavaleiro mesmo seu criador? Não é a sociedade, nem é meu íntimo. O íntimo é originário demais, desprovido de forma e de escasso conteúdo, por mais precioso que seja. Não, não é ele, e o cavaleiro se lhe arrancasse qualquer mensagem essa mesma se espalharia como pó ao vento ao ser carregada por plagas tão inóspitas à sua natureza. Ah... sua origem é obscura, mas nós a transportamos ou senão tal cavaleiro não teria de onde tirar. O que é esse desejo de mudar, de impor, de escravizar o mundo à vontade uníssona? De onde vem? Seria sempre algo ruim? Tormentos.

E agora quero muito olhar para dentro do meu cavaleiro, descobrir-lhe a face por trás do frio elmo, sentir sua pele, entender seus olhos. E eu poderia montar no mesmo cavalo que meu cavaleiro, cingir-lhe o colo com meus braços e para a mesma direção correr? Poderia eu, olhando ao mesmo norte a que sua lança aponta, conhecer-lhe o feitio? Que raridade de espelho não seria necessário para tão absurda proeza! E ao olhar o meu reflexo, sentiria o horror do sortilégio, um alvor desesperado que arruinasse todos os castelos e as montanhas em que se encimam, um rosto deslumbrante e terrível que me fundisse num beijo destruidor. Não posso, talvez, contemplar-lhe em sua inteireza, mas posso ainda ver-lhe o intermitente e trêmulo vislumbre, o qual, fugidio pelos reflexos da prataria, deleita-me e põe-me ardente em sua perseguição. Por ora o vulto de seu monstruoso cavalo, às vezes a chama de seu mais belo brasão. Nobre ou vil cavaleiro, visitará as terras primevas de meus sonhos, onde mesmo assim só é possível sentir-lhe o hálito e o inclinar de sua sombra, onde seu nome murmurado ecoa pastoso contra as claraboias, e onde seus passos metálicos sentem-se correr viscosos sob o chão de pedra. Eu perguntaria: "De onde vens? Para onde vais? Quem te enviou e que espécie de nova trazes?". E a pergunta soaria talvez inútil, e já muito longe tornaria sua face na direção de minha janela, esboçando-me um sorriso leviano, algo solerte, significativo, como se dissesse: "Já o sabes" ou "Como pudeste esquecer!".

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Das graças a mais gentil

A casinha de cachorro-quente estava com suas janelinhas recém-abertas. Eram as sete horas da tarde e, na visão do meu ocioso estômago, era mais do que hora de jantar. Contudo, o rapaz disse-me que ainda não estavam prontos e por isso eu teria que esperar mais uns vinte minutinhos. Ele sequer se deu ao trabalho de acrescentar a fórmula mágica "mas se quiser pode esperar", e, apesar da entonação tenra e débil de sua voz, senti-me ofendido. "Ah, sim, está bem", eu disse. Permaneci ainda de pé, esperando que me convidasse e que me consolasse por haver chegado demasiado cedo. Ao fim, ante sua repreensível insensibilidade, resolvi sentar e aguardar. Em vão tentava resolver esse impasse, e fracassava terrivelmente, fosse de pé ou sentado.

E a chuva veio, fosse para aliviar minha desdita, fosse para culminar minha desolação. Começou com esparsos, escassos pingos, e, não obstante, eu permanecia calado e inerte, como se sequer a chuva pudesse perturbar minha serenidade. Longe de mim demonstrar que estava contrafeito, que havia chegado cedo demais, que desconhecia os horários, que um fato tão insignificante poderia ofender-me: eu caminhando em tão altos céus. Os pingos, contudo, tornaram-se mais freqüentes, e logo o que havia eram diáfanas cortinas sendo varridas pelo vento. Vi-me, então, forçado a levantar e ir embora, arrastando um imenso rabo de raposa acuada para longe da presença estúpida do chapeiro e sua relutância em atender-me.

Vociferei aos céus, ao mundo, ao tolo chapeiro do cachorro-quente. Quem ele pensava que era para fazer-me esperar vinte minutos quando eu de tão bom grado havia abandonado meus recintos solares para comer seu lanche barato? E por que diabos o destino resolveu despencar sobre mim, eu que sempre fui tão bom, tão nobre, tão... digno? Molha-me, pois, molha-me mais. Não fiquei ensopado porque as árvores protegiam um bocado, mas cada gota que escorria de meu cabelo carregava em si o peso da humilhação. No entanto, nada podia fazer e nada podia demonstrar. Devia agir não somente com dignidade, mas também como uma pessoa racional, de modo que essas pequenas contradições passassem despercebidas ao meu seguro ego.

Mas eu tinha era vontade de voltar no tempo e, ao invés de meu conformismo, agarrar-lhe pelos colarinhos e rosnar: "Você vai fazer esse cachorro-quente agora, não importa como ou com o quê! E que seja rápido! Não sabe que está prestes a chover? Incompetente!". E não esperaria sentado, não. Ficaria ali de pé, com a mão estendida, pois o lanche deveria ser feito quase que imediatamente. Sabe o que é isso? Chama-se o eterno desejo de adequação, a devida correspondência entre nosso íntimo e o espaço externo. É claro que todos nós simplesmente gostaríamos que esse último se submetesse sempre e incondicionalmente àquele. Mas é óbvio que o mais sensato é adequar nossa pequena tempestade à vastidão do mundo.

E eu tentei. Deus, como eu tentei! Que eu esperasse o cachorro-quente por vinte minutos; como não? Que eu me sentasse e servilmente aguardasse ser chamado; oh, sim, como não? Porém, confesso que desde o início jamais intencionei submeter-me totalmente. Antes tentava, no mínimo, conciliar meu orgulho com a inelutável negativa do chapeiro, e o fazia por sutis artifícios, esgueirando um olhar de rancor, algo de imperativo, um silêncio e uma imobilidade que mais se assemelhavam à irritação que à paciência. Queria, sobretudo e em última instância, vencer o mundo. E, talvez, nessa estúpida luta, já houvesse fracasso antes que começasse a chover. É como brincar de enfrentar as ondas, cortando-as com chutes e socos, empreitada essa já em sua essência desesperada, porém oriunda de uma vital necessidade.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Rostos

Pouco sei do que se passou na Universidade de São Paulo ano passado. Estava muito longe e tinha preguiça de informar-me a respeito. Então vou ficar aqui com o argumento que me parece mais delicioso: trata-se de um bando de jovens desocupados, janotas e sem real sentido do que é trabalho que, sentindo-se molestados em seu direito de fumar a maconha santa de todo dia, são capazes de sacrificar o bem comum em troca do desfrute egoísta e inconsequente de suas vidas viciosas. Não é lindo? Mas não só esses estudantes. Parece-me que a sociedade inteira está disposta a defender seus vícios, mesmo que isso no fim revele-se irracional. E eu tenho um caso para ilustrar.

Ano retrasado, já em dezembro, os alunos do curso de Direito haviam sido chamados a assistir uma palestra sobre ética, a qual, no conto de fadas do departamento, substituiria as aulas que obrigatoriamente deveriam ministrar. Era num sábado de manhã, e imagine você quantos alunos estariam dispostos a acordar cedinho para enfrentar horas de aridez intelectual. Penso que mais da metade não havia comparecido, porém, nas listas de chamada que circulavam entre os alunos no auditório, estavam todos miraculosamente presentes. Trata-se de uma prática muito comum, banalizada e que nem mesmos os professores e funcionários do departamento teriam disposição ou força moral para impedi-la.

No fim da palestra, contudo, abrindo-se enfim espaço para as perguntas dos alunos, eis que um de nós levanta-se e, sutilmente, entre seus habermas e suas hannahs arendts, menciona que "... por exemplo, muitos alunos aqui assinaram na lista de presença  em nome de pessoas que não se encontram...". Eu apenas me dei conta de que se tratava de uma delação por causa do murmurinho de desaprovação entre os alunos que a acompanhou. Oh, sim, ele estava delatando. Imagine os olhos do chefe do departamento do curso de Direito revirando-se convulsamente ante a presença de um juiz e membros da OAB em uma palestra justamente sobre ética ao ver enfim em palavras o que em silêncio há muito se fazia. Ah... a harmonia perfeita desses encontros... No final, ele jurou que puniria os responsáveis, ameaçando-os inclusive de expulsão.

É claro que ninguém gostou disso, e nosso pequeno delator foi, durante muitas semanas, motivo de ódio entre os alunos. Porém, desconsiderando qualquer vaidade, presunção ou idealismo que possa tê-lo motivado, em nenhum momento eu ouvi algo do tipo "Ah, muito bem, assinar as listas de presença em nome de pessoas que não estão presentes e assim burlar-se da instituição de ensino da qual desfrutamos gratuitamente é errado, mas nem por isso...". Não! E é claro que não. Quem, ante um mal generalizado, ergue-se para denunciá-lo? "Ah, nossa, tudo bem que é errado eu fumar minha maconha e de certa forma tornar-me responsável pelo tráfico de drogas, mas o fato é que...". Não, né?

Todos são lindos, bonzinhos e lutam pelas crianças-que-têm-fome. Mas basta apontar um dedo petulante para essas mesquinharias para ver o zumbido crescendo dentro da colmeia. E, aliás, por que alguém haveria de querer defender algo tão banal contra si mesmo ante uma medida tão séria e desproporcional que é a expulsão da universidade? Deus sabe por quantos cursinhos muitos deles tiveram que passar... Porém, de outro lado, que temos senão a exposição de uma coisa que todos sabiam? Era a verdade, não era? Ah, mas a sociedade, estimado discípulo, é feita de murmurinhos, de bombons ruins atirados no vaso sanitário, de mesuras e pródigos sorrisos.

Mas, meu bom senhor, como reconhecer se o que varremos displicentemente para debaixo do tapete é uma inocente poeirinha ou um já vultuoso cadáver? Talvez através das consequências e o quão longe podem chegar. Mas nem sempre isso é fácil. Talvez fraudar a lista de presença não seja ato grave, ainda mais quando o próprio departamento atua de um modo tão imoral, pondo nas costas dos alunos suas falhas e o desleixo de anos. Porém, dê só uma olhada para as suas caras! Olhe isso! O que mais são capazes de esconder? Não, eles não vieram para fazer justiça, vieram para acomodar-se o melhor possível nas poltronas da sociedade. Pois que abanem, abanem seus leques ardorosamente! Inclinem, inclinem suas mãos aos lábios de seus cortesões! Quem aqui dirá que estão errados?

Contudo, meus gentis homens, atentem-se que vocês sequer reconhecem suas pequenas vilezas. Eu até os defenderia se vocês ao menos confessassem que aquilo que fazem não é certo, porém, sendo insignificantes, não merecem as repreensões previstas. Mas, não, agora isso é tão certo quanto são róseos seus bumbuns. O que me surpreende é que, enquanto discursam, não é possível sequer identificar o que lhes parece certo e o que lhes parece errado. É como se se recusassem a ouvir alguma voz interior que simplesmente lhes dissesse: "Ei, eu estou errado, mas igualmente não aceito ser punido com a mesma gravidade que um assassino seria, pois o que eu fiz é uma mesquinharia e tudo o que isso revela é que sou imperfeito e nada mais". Estou sendo muito severo?

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Na mais alta torre gótica

Quando sua irmã irrompeu pela porta, segurando seu filho nos braços, pouca atenção ter-lhe-ia dado se não fosse pelo homem que lhe seguiria minutos após. Eu estava na casa de um amigo, jogando age of empires, e, bastante concentrado, voltei-lhe rapidamente os olhos em sinal de cumprimento, pois, afinal, era apenas uma moça normal com quem eu nada tinha que ver, e, além do mais, minhas fortificações pereciam ante o inimigo e medidas urgentes deviam ser adotadas. Contudo, ao abrir-se a porta pela segunda vez, eis que surge um homem gordo, vestido com desleixo e aparentando ser não mais do que um chapeiro.

Estarrecido subentendia que este era o pai de seu filho, o empresário, o detentor de afamada fortuna e de tantos imóveis na cidade. Pouco me importa se ele realmente gozava dessa situação. A questão era o evidente contraste entre a jovem moça, uma típica patricinha maringaense, e o homem feio, de traços escuros, passos morosos e pelo menos uma década mais velho. O que teria motivado uma união tão... grotesca? Só com muita ingenuidade seria o dinheiro, já que estavam encostados no apartamento do irmão, o que torna a coisa ainda mais vil. Amor? Ah, então... Pobre moça.

Pobre, pobre moça. Não sabe então que a sociedade, representada em mim, não a redimirá por mais puro que seja seu sentimento? Acaso se esqueceu dos seus deveres ao unir-se com tão decadente criatura, tendo a audácia de engendrar um filho de tão feio homem? E ele me vira seus pesados olhos, o chapeiro, e, desconhecendo seu lugar, exige de mim o cumprimento. E o tem, certamente, pois que não sou assim tão vilão. Mas pressinto a carne pútrida que guarda em seu peito, a moral preguiçosa e a inteligência voltada para o desfrute dos bens terrenos desde a sua torre gótica. Oh quasímodo, que a água da fonte suas mãos conspurcam! Com que sordidez não desfolha as flores de nossos jardins entre seus dedos suados! E em troca nada nos dá senão a cena de seu próprio deleite.

Sou ruim? Apenas exponho aquilo que todos os presentes na mesa pensaram. Pois todos nós sabemos que engendrais vossos filhos para nós, a sociedade, e não para a satisfação própria. Ou pensais que nós toleraremos que vos reproduzais à vontade, atracando-vos com o primeiro que vos passe um pouco de dinheiro diante de vossas faces indolentes, quando, na verdade, devíeis estar procurando nos homens aquilo que há de melhor e, assim, oferecendo-nos o melhor possível? A sociedade, minha cara, não a perdoará, pois do seu amor não depende. O amor que corresponde tão somente a vocês dois, aos olhos dos demais, no entanto, é apenas mais um sentimento banal. Não importa quão alto busquem seu refúgio, nós os enxergaremos tal qual nos afigura: a gárgula bestial e sua monja de pedra. Oh, sim!

E eu sou o vampiro que, subitamente iluminado por um relâmpago, desde o pórtico escuro apavora a donzela, fazendo-a fugir aos gritos pelas escadarias que conduziam ao castelo. Se acaso lhe persigo injustamente, peço desde já seu perdão, aquele mesmo perdão que a pouco lhe neguei. Mas era para o seu bem, para o nosso bem. Um bem que lhe cravo na branca carne de seu pescoço e de cujas veias extraio o sumo essencial de nossa temporária, porém não desprezível e nem de toda privada de sua origem, verdade.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A sentença

Certa vez, ao entrar na sala do procurador, fui convidado a conversar. Ele estava preocupado, se é possível assim dizer, com o fato de que, aparentemente, eu já não me encontrava com o mesmo ânimo, e, como indícios, citou uma série de erros formais que eu vinha cometendo. Respondi-lhe, então que: eu me encontrava no estágio há quatro meses, e não há um ano como ele havia pensado; meu ritmo de trabalho era exatamente o mesmo e, inclusive, eu agora trabalhava para dois procuradores; tal erro aconteceu há dois meses.

Pareceu-me, à época, uma indireta para que eu saísse do estágio, já que ele mesmo não o podia fazer. Porém, pensando agora, acho que os motivos eram outros, ainda mais quando, já no quinto mês, houve uma súbita e incompreensível explosão de cordialidade. A questão era: como manter-me subordinado? Impondo-se vociferante? Claro que não. Estando ele em uma posição superior e sendo, porém, meu trabalho independente de sua direção, deveria ele envolver-me em uma nebulosa em que eu jamais pudesse orientar-me, de modo que, escravo de suas pistas, fosse forçado a todo instante a farejar a seu redor em busca da verdade.

Mas o porvir é lindo. Em menos de uma semana, caiu, sem que eu já guardasse qualquer rancor, em minhas mãos uma petição sua em que ele havia errado o nome das partes, o número do processo e todo o resto. O officeboy, a quem cabia essas coisas, pediu-me o favor de levar a petição à sua sala para que avisasse do erro e corrigisse. Eu jamais teria sabido se não fosse por sua cara-de-pau. Acho que ele não precisou insistir muito. Carreguei a petição impassível, como se eu fosse o próprio sol que irremediavelmente todos os dias levanta-se e põe-se sob o horizonte, e, quando irrompi pela sala, era branca minha máscara e negros meus ombros. Um mero comensal... do destino.

Não desembainhei minha espada, nem meus lábios crisparam-se. Meus olhos eram duas esferas de vidro que apenas refletiam o que quer que a vida a eles fizesse chegar sua luz. Meu coração era uma bacia de prata onde vultos misteriosos lavavam-se deixando a água escorrer brilhante de seus longos dedos. E isso bastava. Saí sem olhar se em seu rosto delineava-se o embaraço. Seu anjo, porém, levantando-se severo detrás de sua cadeira, caminhou a duras pausas até que se posicionasse diante de sua mesa e, suspendendo a um bom ângulo seu braço direito, pousou sobre seu pescoço a espada cinzenta.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Hauptstadt

Eu tinha chegado de madrugada no hotel, e a porta encontrava-se fechada. Não havia ninguém na recepção, exceto um rapaz, visivelmente um hóspede ou um pretendente a, sentado num dos sofás, o qual, obviamente, não poderia abrir-me a porta. Não me preocupei, pois bastava tocar a campainha e esperar que viesse algum funcionário. Acontece que o rapaz, desde atrás da porta de vidro, olhava-me insistentemente, carrancudo, severo, e até me senti intimidado pensando ser uma avaliação negativa de meu aspecto ou comportamento. Percebi, porém, pelo seu meio termo entre estar sentado e estar de pé, que estava apenas sentindo-se obrigado a ajudar-me, e o que parecia ser um olhar de reproche era na verdade preocupação. Levantou-se, pois, e, fazendo um gesto com a mão para que eu aguardasse, foi chamar alguém do hotel. Veja bem, isso era totalmente desnecessário.

Instantes depois, voltou e sentou-se no mesmo sofá. O funcionário veio logo em seguida e abriu-me a porta.  Mesmo que sua ação tivesse sido de um zelo dispensável, estava eu, obviamente, obrigado a agradecê-lo, e, ao entrar e passar por ele, disse-lhe "obrigado", pelo qual recebi em troca um leve, um mínimo, um imperceptível aceno de cabeça. Foi então que vi, reconheci, tal qual olhasse em um espelho, não somente a minha pessoa, mas a de tantas outras. Aquela carranca, a cabeça inclinada para baixo, o olhar duro e sério ressaltado atrás das sobrancelhas, o expressar lacônico, tudo isso que eu já havia visto uma centena de vezes, mas que até então não havia me dado conta de sua força estética.

E senti-me agradecido por ter encontrado meu igual, em saber-me não mais um ser isolado, desvinculado e flutuante. E, evidentemente, não teria me sentido tão agradecido se não fosse pelo fato de eu ter achado sua expressão e seu gesto belíssimos. Por haver se obrigado tão desnecessariamente, por haver se incomodado por alguém sem - ah glória - atrever-se a exigir um agradecimento. Como deve ser, como deve ser! Ele me ensinou o amor próprio, uma rota que eu posso seguir e atingir o ápice da humanidade sem que para tanto eu necessite descartar coisas que para mim são tão fundamentais, tão... minhas. Uma rota por onde eu possa passar com minha comitiva sem que para isso eu precise humilhar-me e ridicularizar-me abrindo mão de coisas que são valiosas para mim.

Eu descobri a minha capital. A capital de pessoas que não pedem seu abraço sincero e gostoso, mas apenas que continue seus afazeres, pois nada demais aconteceu. E sobre o mapa traço o caminho que me conduzirá ao ponto máximo a que eu sempre estive inclinado. E que nenhum biltre venha dizer-me o que há de certo ou errado, pois eles não sabem apreciar, não sabem compreender o apelo de perfeição que carrega cada coisa em sua essência. E por isso eles destroem, anulam, subjugam culturas inteiras, inconscientes da realização intrínseca que carregam desde há muito tempo.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Hotel Vitóri

Há muito tempo vinha-me prometendo o relato da breve, intensa e inesquecível estadia no Hotel Vitóri. Isso aconteceu há quase sete meses, e temo que alguns detalhes já não me ocorram tão facilmente. Era inverno, mês de julho. Havíamos planejado um passeio a Porto Alegre. Viajamos de avião, um avião barulhento e que parecia feito com casca de ovo. Era promoção. Era barato. Éramos jovens e não nos importávamos com comodidades. O suportar o desconforto era-nos uma virtude. Havia ânsia por vicissitudes, pela dor, o perceber de nossos limites. E eu era um rapaz prático, já um tanto esgotado por haver recentemente voltado do Chile, mas animoso por voltar a Curitiba, ainda que por breves horas, e por conhecer o extremo sul do Brasil.

Porto Alegre apresentou-se-me fria, úmida, cinzenta e seus habitantes rústicos, porém amáveis. Surpreendentemente amáveis. Já no aeroporto, uma senhora ofereceu-nos, assim, sem esperar sorriso algum de nossa parte, pagar pelo trem que nos levaria até a rodoviária. Instantes antes, um senhor e seu filho, de traços élficos, germânicos, haviam zelosamente tratado de que chegássemos ao terminal ferroviário. Sinceramente, não sei se eu poderia encontrar a mesma acolhida em meus conterrâneos, os quais considero rudes e caipiras (e muito provavelmente eu também o seja).

As calçadas estavam molhadas, o concreto de que eram feitas tinha o aspecto poroso e por toda a parte surgiam veios de água de origem misteriosa. O hotel não ficava muito longe da rodoviária, poderíamos facilmente chegar a pé. Havíamos feito a reserva pela internet, um preço muito camarada. A moça que cuidava do contato havia respondido nossos e-mails em caps lock. O hotel, conforme descobrimos através do google, havia sido vítima de um incêndio, provavelmente provocado por um aparelho elétrico em um quarto ocupado por um sacoleiro (era comum que o estabelecimento recebesse hóspedes do estilo). Embora suspeitássemos de algo nessas condições, a mística de um desastre que o envolvia e a economia que faríamos fizeram-nos preferi-lo a um hostel.

A rua em que ficava o hotel era como toda rua das redondezas de uma rodoviária. Um conjunto de prédios antigos e decadentes, ocupados por moquifos, lojas de bugigangas, bares imundos e prostituição. Seus transeuntes portavam o mesmo ar pestilento: rostos sulcados, cansados, escuros. Em todos eu via as mesmas mãos furtivas, as risadas debochadas e sem espírito, suas roupas desbotadas, seus olhos rápidos, ansiosos e libertinos que, sob a luz evanescente do crepúsculo, pareciam temer algo que os perseguia. Eu não poderia descrever a fachada do hotel, pois não me lembro. Mas vamos supor que não ocupava mais do que cinco metros, uma porta espremida entre duas lojinhas furrecas, uma grande janela de vidro ensebado e, claro, uma pintura bege e azul clarinho descascando-se.

A primeira coisa foi o cheiro de produto de limpeza misturado a mofo, como seria de esperar de lugares mal arejados e com pouca luminosidade. Para chegar até a recepção, era necessário subir uma escada de dois ou três lances. Os degraus estavam cobertos de um carpete puído e enegrecido. No fim da escada, havia um portão de grades, de aspecto rangente, sombrio, gélido. A recepção já não aparentava ser tão ruim, mas mesmo assim os móveis eram pobres, a decoração triste, algumas samambaias abandonadas pelos cantos. Antes de acertarmos a estadia, a moça perguntou se não queríamos conhecer o quarto. Claro. Achei desnecessário, afinal, onde, sendo já de noite e estando esgotados pela viagem poderíamos encontrar outro lugar? Nem conhecíamos a cidade... Porém, acompanhamos a moça que - estaria eu louco se me lembro desse detalhe? - vestia uma blusa de lã azul.

Não sei quantos corredores atravessamos. Corredores silenciosos, estreitos, claustrofóbicos, as paredes de aspecto frágil. A porta que abriu estava pintada de uma amarelo claro, e sua composição só muito vagamente lembrava a da madeira. Olhei rapidamente para o interior do quarto e contive meu riso: um riso de desespero, triste, como a fina chuva que caía lá fora sobre a calçada destroçada. Voltamos à recepção, aceitamos o quarto, pagamos. Estava lacônico e não lembro se quem tratou com os funcionários do hotel fui eu ou meu amigo. Parecíamos ser os únicos hóspedes. Para mim, estava claro que eu não poderia passar mais um dia sequer naquele hotel. Aquela noite era apenas uma necessidade irremediável, um absurdo em que me havia posto e o qual teria que suportar até que a luz do dia viesse.

O quarto tinha paredes pintadas de um laranja intenso, um quinhão do inferno. Não era muito grande, contendo uma cama, um beliche e um armário que, diferentemente das camas, as quais sustentavam um ar de mesquinha leveza que só a madeira ruim e barata é capaz, tinha um aspecto pesado, sóbrio, como se, estando ao canto da habitação, escondesse em seu interior um portal que não permitisse jamais a sensação de estar-se fechado num quarto. O banheiro era separado por uma divisória, de modo que tudo o que você fizesse ali poderia ser ouvido pelo seu companheiro do outro lado. Continha uma banheira de cerâmica encardida, um espelho e uma pia absurdamente baixa e onde mal cabiam as duas mãos juntas. Tudo tão triste, desolador, silencioso e miserável. Larguei minha mochila sobre a cama debaixo do beliche e comecei a dar voltas pela habitação.

Abrimos a janela para que arejasse um pouco e contemplamos a vista das ruínas do incêndio. Sim, eram os escombros, envolvidos na escuridão e para sempre calados pelo fogo. Escovei os dentes como pude e não quis tomar banho. Sequer pus pijama para dormir, e acabei cobrindo-me com o meu próprio casaco. Tinha medo do demônio, dos funcionários do hotel, das sombras com que se disfarçavam e que a qualquer instante entrariam nas pontinhas dos pés e me apunhalariam enquanto o grande relógio da noite soasse sua hora mais avançada. Tinha medo, sobretudo, da pobreza que ali respirava. A decadência, a certeza de que o homem só é digno enquanto puder desfrutar de um mínimo de conforto material. Tinha medo de um futuro em que eu só teria dinheiro para um hotel Vitóri, nas redondezas de uma rodoviária, em cujas camas espreitar-me-ia o grande espírito maligno de meus sonhos, o qual, sentando-se sobre o meu peito, vociferaria até a minha completa loucura. Tinha medo, enfim, de todo aquele submundo e seus mordomos de rostos macilentos, suas prostitutas e suas risadas hostis.

Pela manhã, se não estou enganado, meu amigo ainda teve a pachorra de perguntar se eles poderiam servir o café-da-manhã. Responderam que não, que somente havia café e pão para eles mesmos. Café-da-manhã... Hunf! Como se eles tivessem condições de servir-me um café-da-manhã! Tudo o que eu queria era pegar minhas coisas, sair dali e procurar um hostel. A manhã trouxera-me nova coragem, jogara luz aos elementos taciturnos que haviam me atormentado. Já não temia os funcionários nem o hotel. Desprezava-os: eles e toda aquela gente que rastejava ao seu redor. Tinha plena consciência de que não pertencia a tudo aquilo, e, se algum dia decaísse, lutaria até a morte por sair.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Miséria I

Querido diário,

Em meados de abril/maio - que sei eu -, havia sido convidado para um churrasco. Havia sido miseravelmente convidado para o churrasco, pois eu não gostava do anfitrião. Era seu aniversário. Um rapaz bobo, mais velho do que eu, imperdoavelmente infantil, insolente e dolorosamente vulgar. Era daqueles personagens com os quais nos deparamos de vez em quando e que sempre nos chocamos ao constatar sua capacidade em absorver todos os clichês e todo o vazio moral de um programa sensacionalista de televisão. Porém, não podendo recusar o convite, tendo em vista que era meu colega de estágio, decidi ir.

Às nove horas da noite, já vestido, descubro que ninguém mais do estágio iria, exceto eu. Sim, ele não era uma pessoa muito estimada, e, devo dizer, o que me moveu aceitar o convite não era o mero cumprimento de uma etiqueta, mas pena mesmo. Tanto melhor, eu pensei, afinal não gostava de nenhum deles: achava-os todos vis, mesquinhos, sem alma, denegridores da beleza e do significado que portavam. Peguei o carro (oh! era a primeira vez que eu tinha autorização para pegar o carro: era a glória), dei a partida e saí rumo à sua casa. (Aqui omitirei a parte em que me perdi durante uma hora na cidade, pois é sempre um misto de terror e delícia toda vez que isso acontece e nada tem a ver com esse triste relato).

Cheguei por volta da meia-noite. Meu Deus. Aquele era o churrasco mais deprimente em que eu havia estado. Se havia oito pessoas ali era muito. E dessas oito pessoas, um era o officeboy da procuradoria, e os outros, antigos colegas de uma companhia de marketing em que ele havia trabalhado. Destes, somente um, com muita bondade, podia ser chamado de seu real amigo. Suas relações eram, em suma, artificiais. Quem sou eu para julgar? Acontece que esse anfitrião vivia - tão cansativo - gabando-se, conversando, citando amigos. Não que eu não suspeitasse, mas não imaginava que fosse a esse ponto. Mas bem, até isso eu poderia relevar se não fosse...

A quantidade de carne e cerveja que nosso personagem havia comprado. Devia haver comida ali para umas quarenta pessoas. Ele não era somente um grande mentiroso; era um ingênuo, um deslumbrado. Uma confiança vazia, uma ilusão de dar pena, muita muita. Meu estômago retorceu-se. Minhas mãos, meus braços derrubaram-se moles ao longo do meu corpo. E as conversas! Oh, as conversas! Ora banais e entediantes, ora lascivas e torpes. Quando não me sinto bem num lugar, não gosto nem de participar em sua comida. Rejeitei todos os bocados de carne e a cerveja. Meu coração oprimia-se, algo em mim se desprendia roto. Os valores do alto céu despencavam sobre o charco da vida, e na imundície úmida debatiam-se como peixes que agonizam.

Prometi a mim mesmo que logo soasse a uma hora da madrugada eu vazaria dali. A todo instante consultava o relógio, ansioso, soturno, quase mudo. Despedi-me apenas do anfitrião e parti em meu carro. Estava deprimido não só por saber da existência de coisas assim, como de haver participado disso. Ainda posso sentir a crosta nojenta daquela atmosfera envolvendo-me: casca de inseto, artrópode, bicho pequeno, rastejante e vil. Sim, meus amigos, há todo um mundo lá fora que, longe de ser uma agonia, é um silêncio vazio. Sequer é possível chamar aquilo de silêncio de sepulcro, onde a morte vela um sentido profundo e intangível. É ausência. Não, é pior do que a ausência: são homens ocos, pois onde deveria haver homens, há apenas bonecos.

São títeres. Manipulados não por deuses ou por outros homens, mas por ninguém. O vento que ocasionalmente por eles passa move seus membros. A intempérie, o acaso, os elementos anônimos são os responsáveis por seus movimentos e sua aparente vida. Essa é a sua liberdade. Sequer são servos, pois até mesmo os servos possuem um sentido e uma vontade. Até mesmo os servos são mediações. Esses títeres têm o miolo de palha, um miolo morto que não serve a ninguém e a nada, cujo único sentido constitui-se em um acidente, e cuja única causa não é nada senão seu próprio vazio e absurdo.

Por ti intercedo

É fácil condenar a moça que saiu de casa levando todos os bens e deixando sua família na miséria para tentar a vida na corte do Rio de Janeiro. É fácil rasgar seu vestido de noiva e no auge de sua conquista esbofeteá-la profanando o empenho de maquiadores e costureiras. Mas o que ninguém quer é entender o outro lado, o lado da moça que vivia em sua casa perdida em ânsia e ambição. Pois essa moça entreolhou o pedacinho de céu desde o telhado quebrado de seu casebre e, longe de renunciar ao mundo que lhe mostrava seu rápido vulto, agarrou sua cauda luminosa com coragem e coração. E que poderia fazer a pobre moça, desde esse instante simbólico e sem tempo, senão deixar a casa que lhe era odiosa? Como continuar a viver ao lado de gente que consumia seu espírito, aquela parte nossa a que chamamos de sonho e que a tanto custo tentamos preservar? Imoral, sim, mas não destituída de valor. É necessário virtude até mesmo para cometer as más ações. Foi-lhe necessário ímpeto, empenho e fé naquilo que lhe era tão caro. Ou acaso uma moça assim, heroína da escuridão, poderia seguir vivendo ao lado de quem tira foto de ônibus em rodoviária, junto de pessoas que a obrigariam a sentar-se junto delas para assistir o programa favorito da família? De gente que mastiga de boca aberta e orgulha-se disso; gente que, deplorável em físico, anda pela sociedade sem camisa, sem pudor e sem consideração. Gente feia, grossa, que é a primeira a correr a encher o prato? Não, era tarde, ela sabia demais. E queria mais. Queria viver as longas escadarias, os altos sapatos, os sorrisos brancos e corteses. Queria o mundo que não se ria dos gringos e suas meias, onde as pessoas deslizam mansas as mãos pela colunata e ofendem com desdém. Onde os festins fazem-se sob a lua e princesas e príncipes roubam-se mutuamente delicadezas no umbral de seus palácios. E nada disso teria sido possível onde vivia. Que aflição, que tortura não sentia! Saber onde quer estar - coisa tão rara - e no entanto não poder ali estar. E, então, sem olhar para trás e evitando pensar no que deixava, vendeu o apartamento e atirou a mãe na rua, e com o dinheiro, usando da sorte e de talento, foi tentar a vida de cortesã na capital. Reprovável! Reprovável! Porém aquela moça tinha um sonho. E lutou por esse sonho. Mais condenável é quem não peca, não por sobrar-lhe virtude e querer o bem, mas por falta de coragem. Gente vil, medíocre, como sombra que desliza a um canto da sala e ali apodrece, remoendo seu coração pequeno e rosnando baixinho aos que vê passar. Rasguem seu vestido de noiva. Destruam seu altar de casamento e deitem ao mar as jóias que ganhou. Mas jamais se esqueçam que o mundo dos homens tem um começo e tem um fim, e suas ações serão julgadas nas estrelas e não em seus tribunais de mofo e lassidão. Roubou? Sim, roubou. Mas roubou espreitando o sol que se levantava alto em seus sonhos e despertava-a em tormentos e suor no meio da noite, e seus feitos são, ao menos em parte, realização de algo mais profundo que a sua própria alma e que aos astros ascende em asas invisíveis.