sábado, 7 de janeiro de 2012

Por ti intercedo

É fácil condenar a moça que saiu de casa levando todos os bens e deixando sua família na miséria para tentar a vida na corte do Rio de Janeiro. É fácil rasgar seu vestido de noiva e no auge de sua conquista esbofeteá-la profanando o empenho de maquiadores e costureiras. Mas o que ninguém quer é entender o outro lado, o lado da moça que vivia em sua casa perdida em ânsia e ambição. Pois essa moça entreolhou o pedacinho de céu desde o telhado quebrado de seu casebre e, longe de renunciar ao mundo que lhe mostrava seu rápido vulto, agarrou sua cauda luminosa com coragem e coração. E que poderia fazer a pobre moça, desde esse instante simbólico e sem tempo, senão deixar a casa que lhe era odiosa? Como continuar a viver ao lado de gente que consumia seu espírito, aquela parte nossa a que chamamos de sonho e que a tanto custo tentamos preservar? Imoral, sim, mas não destituída de valor. É necessário virtude até mesmo para cometer as más ações. Foi-lhe necessário ímpeto, empenho e fé naquilo que lhe era tão caro. Ou acaso uma moça assim, heroína da escuridão, poderia seguir vivendo ao lado de quem tira foto de ônibus em rodoviária, junto de pessoas que a obrigariam a sentar-se junto delas para assistir o programa favorito da família? De gente que mastiga de boca aberta e orgulha-se disso; gente que, deplorável em físico, anda pela sociedade sem camisa, sem pudor e sem consideração. Gente feia, grossa, que é a primeira a correr a encher o prato? Não, era tarde, ela sabia demais. E queria mais. Queria viver as longas escadarias, os altos sapatos, os sorrisos brancos e corteses. Queria o mundo que não se ria dos gringos e suas meias, onde as pessoas deslizam mansas as mãos pela colunata e ofendem com desdém. Onde os festins fazem-se sob a lua e princesas e príncipes roubam-se mutuamente delicadezas no umbral de seus palácios. E nada disso teria sido possível onde vivia. Que aflição, que tortura não sentia! Saber onde quer estar - coisa tão rara - e no entanto não poder ali estar. E, então, sem olhar para trás e evitando pensar no que deixava, vendeu o apartamento e atirou a mãe na rua, e com o dinheiro, usando da sorte e de talento, foi tentar a vida de cortesã na capital. Reprovável! Reprovável! Porém aquela moça tinha um sonho. E lutou por esse sonho. Mais condenável é quem não peca, não por sobrar-lhe virtude e querer o bem, mas por falta de coragem. Gente vil, medíocre, como sombra que desliza a um canto da sala e ali apodrece, remoendo seu coração pequeno e rosnando baixinho aos que vê passar. Rasguem seu vestido de noiva. Destruam seu altar de casamento e deitem ao mar as jóias que ganhou. Mas jamais se esqueçam que o mundo dos homens tem um começo e tem um fim, e suas ações serão julgadas nas estrelas e não em seus tribunais de mofo e lassidão. Roubou? Sim, roubou. Mas roubou espreitando o sol que se levantava alto em seus sonhos e despertava-a em tormentos e suor no meio da noite, e seus feitos são, ao menos em parte, realização de algo mais profundo que a sua própria alma e que aos astros ascende em asas invisíveis.

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