Eu até defendo os gordos, os feios, os pútridos, os desvalidos, aqueles que assim não deveriam ser mas são, ou que, nesse dever ser, só o fazem parcialmente. Mas há algo aqui nesse coração que os despreza, que os poria em uma cama de hospital e disporia cuidosamente numa bandeja os instrumentos cirúrgicos. Uma parte de mim que quer mudá-los, adequá-los, alterar o estado das coisas a custa de violência. E que parte de mim seria essa? Seria a sociedade? Pois eu acho que não, já que essa justamente me diz para preservá-los, manter as peças do tabuleiro em ação, contornar as viciosas realidades em um rodopio de valsa. E obviamente que não poderia ser o eu dos sonhos, o mais visceral de todos, o inatingível e incompreensível, pois bastaria pôr em prática qualquer um de seus elementos para vê-los retorcendo-se no charco da vulgaridade sem que nada acontecesse. Não posso, talvez, saber sua origem, já que submersa, mas é possível conhecer seu emissário. Para levar a cabo qualquer transposição ao mundo, é necessário um agente, e semelhante mensagem deveria ser carregada através de um agente transformador e subjugador, um eu tirano que, diferentemente da sociedade, a qual vela pelo diálogo e pela conciliação, se impusesse incauto e intransigente, revelando seus valores na forma de imperativos. E esse eu tirano possuiria uma vontade que, construída ou não pela razão, empreenderia uma ação de conquista e de desequilíbrio, de transformação e jugo. Mas seria esse agente, esse eu tirano algo inerente ao emissário? Não seria, na verdade, essa tirania diversa do modo pelo qual aquela emerge das pessoas, no sentido de que o emissário não é esse tirano, esse subjugador e ponto de desequilíbrio, mas tão somente a mensagem que traz?
Muito bem, eis aqui o cavaleiro e sua mensagem. Mas se é assim, de que estratos retira seu conteúdo? Aqui meus poderes começam a falhar, e chutarei que isso depende muito e que, podendo ser tanto do íntimo quanto do social, tenho-o por um cavaleiro de armadura sem o homem, o emissário desvinculado de sua mensagem, a qual, por sua vez, possui inúmeras origens. A inclinação que cada um tem por mudar o seu mundo, dispor uma nova ordem de coisas em seu entorno, não é necessariamente boa nem má, muito menos é possível dizer que sua ação é voltada sempre à destruição. Esse cavaleiro pode muito bem empreender um processo inverso, de modo que, ante um outro cavaleiro, seja levado a opor-se, informando-se na restauração e no resgate da velha ordem. Se é assim, então esse cavaleiro não tem conteúdo nem direção, mas surge como simples ator. Poderia arguir-se ainda que, nesse movimento, é impossível que a ordem das coisas permaneça inalterada e que, portanto, seja qual for a sua direção, a mudança é inerente à ação. De qualquer maneira, não está na ação a origem dessa tirania. O cavaleiro de que falo é, pois, puramente o responsável pela ação, seja ela boa ou má, seja lá de onde venha e para onde pretenda ir. Ele não explica essa pretensão totalizadora, pois tão somente é seu veículo.
Meu desejo de ação é maligno não porque toda mudança é má, mas porque o estrato em que se informa ou é inadequado aos fins que se pretende, ou mesmo porque tal estrato em sua essência é mau. E vindo essa voz de meu profundo coração, um esmaecido eco desde os confins da alma, eu diria então que, por consequência, minha alma é, ao menos em parte, má, ou, na melhor das hipóteses, não é ela má, mas a sua transposição para o mundo que sim. Soa-lhe familiar? Ah, sim, é bem possível que todos nós carreguemos o mal conosco, talvez uns mais que outros, porém sempre em potencial. E o que faria para que alguém decidisse atuar de maneira má ou boa? Novamente foge aos meus poderes de compreensão. E como saber se há uma propensão se jamais ela foi provada? Sinto que apenas sei do que sou capaz quando sou efetivamente posto a prova, porém, enquanto apenas em teoria, permaneço preso a uma intransponível dúvida. Mas quem seria o responsável pela mensagem maligna que carrega o cavaleiro se não é o cavaleiro mesmo seu criador? Não é a sociedade, nem é meu íntimo. O íntimo é originário demais, desprovido de forma e de escasso conteúdo, por mais precioso que seja. Não, não é ele, e o cavaleiro se lhe arrancasse qualquer mensagem essa mesma se espalharia como pó ao vento ao ser carregada por plagas tão inóspitas à sua natureza. Ah... sua origem é obscura, mas nós a transportamos ou senão tal cavaleiro não teria de onde tirar. O que é esse desejo de mudar, de impor, de escravizar o mundo à vontade uníssona? De onde vem? Seria sempre algo ruim? Tormentos.
E agora quero muito olhar para dentro do meu cavaleiro, descobrir-lhe a face por trás do frio elmo, sentir sua pele, entender seus olhos. E eu poderia montar no mesmo cavalo que meu cavaleiro, cingir-lhe o colo com meus braços e para a mesma direção correr? Poderia eu, olhando ao mesmo norte a que sua lança aponta, conhecer-lhe o feitio? Que raridade de espelho não seria necessário para tão absurda proeza! E ao olhar o meu reflexo, sentiria o horror do sortilégio, um alvor desesperado que arruinasse todos os castelos e as montanhas em que se encimam, um rosto deslumbrante e terrível que me fundisse num beijo destruidor. Não posso, talvez, contemplar-lhe em sua inteireza, mas posso ainda ver-lhe o intermitente e trêmulo vislumbre, o qual, fugidio pelos reflexos da prataria, deleita-me e põe-me ardente em sua perseguição. Por ora o vulto de seu monstruoso cavalo, às vezes a chama de seu mais belo brasão. Nobre ou vil cavaleiro, visitará as terras primevas de meus sonhos, onde mesmo assim só é possível sentir-lhe o hálito e o inclinar de sua sombra, onde seu nome murmurado ecoa pastoso contra as claraboias, e onde seus passos metálicos sentem-se correr viscosos sob o chão de pedra. Eu perguntaria: "De onde vens? Para onde vais? Quem te enviou e que espécie de nova trazes?". E a pergunta soaria talvez inútil, e já muito longe tornaria sua face na direção de minha janela, esboçando-me um sorriso leviano, algo solerte, significativo, como se dissesse: "Já o sabes" ou "Como pudeste esquecer!".
E agora quero muito olhar para dentro do meu cavaleiro, descobrir-lhe a face por trás do frio elmo, sentir sua pele, entender seus olhos. E eu poderia montar no mesmo cavalo que meu cavaleiro, cingir-lhe o colo com meus braços e para a mesma direção correr? Poderia eu, olhando ao mesmo norte a que sua lança aponta, conhecer-lhe o feitio? Que raridade de espelho não seria necessário para tão absurda proeza! E ao olhar o meu reflexo, sentiria o horror do sortilégio, um alvor desesperado que arruinasse todos os castelos e as montanhas em que se encimam, um rosto deslumbrante e terrível que me fundisse num beijo destruidor. Não posso, talvez, contemplar-lhe em sua inteireza, mas posso ainda ver-lhe o intermitente e trêmulo vislumbre, o qual, fugidio pelos reflexos da prataria, deleita-me e põe-me ardente em sua perseguição. Por ora o vulto de seu monstruoso cavalo, às vezes a chama de seu mais belo brasão. Nobre ou vil cavaleiro, visitará as terras primevas de meus sonhos, onde mesmo assim só é possível sentir-lhe o hálito e o inclinar de sua sombra, onde seu nome murmurado ecoa pastoso contra as claraboias, e onde seus passos metálicos sentem-se correr viscosos sob o chão de pedra. Eu perguntaria: "De onde vens? Para onde vais? Quem te enviou e que espécie de nova trazes?". E a pergunta soaria talvez inútil, e já muito longe tornaria sua face na direção de minha janela, esboçando-me um sorriso leviano, algo solerte, significativo, como se dissesse: "Já o sabes" ou "Como pudeste esquecer!".
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