segunda-feira, 25 de julho de 2011

Amor, pois que deveras venero

Eu, que desprezava meus antepassados, sou forçado agora a reconhecer que são muito poderosos. Antes, eu pretendia que eu fosse um início totalmente desvinculado das gerações que me precediam. Eu queria existir como um esporo livre, inteiramente novo. Hoje, tenho consciência de que, não só é impossível que eu me desvincule de minhas causas, como não desejo mais essa separação. Afundo minha cara no charque de meus antepassados a fim de que minha existência prolongue-se e ramifique-se ao longo de décadas e  acontecimentos. Sou mais sólido e mais real assim, nessa perspectiva de rostos que se cruzam e se vão à minha revelia, caminhando por ruas paralelas e, por vezes, reencontrando-se em cruzamentos.

E agora que já não sou mais um ponto morto, posso enfim acreditar na minha própria perpetuação. Até onde eu sei, na lógica desse pensamento, tenho que jamais deixarei de existir, e que, qualquer coisa que eu faça, repercutirá no futuro. Embora tudo o que eu disse seja intuitivo, só queria deixar que meus antepassados, por menor que seja a glória com que eu os vislumbre, são maiores do que eu, e que, em me ver relacionado em uma trama que se estende desde um remoto início, não posso pretender qualquer valoração absoluta sobre as demais existências, animadas ou inanimadas. Extraio daí todo um respeito sobre aquilo de que pouco sei, e, por isso mesmo, deve permanecer até que a razão me diga se devo modificar.

Pois isso não me impede que eu seja um início, algo novo. Não sinto necessidade de desprezar aquilo que precede minhas ações e nem devo, mas, por outro lado, eu mesmo já sou um ponto de flexão e de modificação. Acho que, enquanto pertencente deste mundo de matéria, a possibilidade de compreender meu passado e nele alçar minhas causas é melhor do que se eu simplesmente o desconsiderasse e, por um efeito de abstração, lançasse-me no ar como um esporo, o qual, longe de ser especial, parece pouco diferenciar-se dos demais. Tal desprezo só alimentaria a perspectiva de ridículo, pois o conhecimento do que temos bem diante de nós é bastante frágil, e não é sábio destruir aquilo que não se compreende.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Diário de uma paixão

Quando minha dentista disse - e eu interpretei o seu tom como cínico entusiasmo - que eu teria que usar aparelho para o resto de minha vida, eu quase acreditei. É claro que, para ela, não há nada nessa vida que substitua seus rigorosos instrumentos, e ela mesma mandaria toda sua técnica em forma de ondas através do espaço sideral. A ditadura do aparelho se instalaria. As crianças seriam condicionadas a venerá-lo e a temê-lo. O aparelho seria objeto de culto, todos as manifestações girariam ao seu redor. Por toda a minha vida. Antes eu achava que era uma sentença de condenação, mas não era isso, ou pelo menos não só isso. Era a importância e devoção de seu trabalho triunfando.

Certa vez, um advogado, em semelhante atitude, explicou para mim, e Deus sabe como me era difícil fingir interesse, que o Direito deveria ser lecionado em todos os cursos superiores. Na verdade, todos deveriam saber Direito. Isso lhes abriria em muito a compreensão do mundo. Evidentemente. Mas hoje eu respondo que qualquer outro ramo enriqueceria igualmente suas vidas. Eu mesmo deveria saber muito mais de informática e de engenharia elétrica, pois isso facilitaria muito o meu cotidiano. Botânica, sociologia, psicologia, gramática, todos pretendendo um monopólio de importância. Bom, na verdade, devo confessar que os ramos que geralmente fazem isso pertencem à área de humanas.

Claro que aparelho ortodôntico e processo civil são coisas importantes para a vida de qualquer cidadão. Não estou negando isso. Claro que não. Não sou eu. É toda uma dinâmica ao redor deles que contradizem o triunfo da dentista histérica que gritava com suas funcionárias em público. Eu olho à minha volto e só vejo significâncias e importâncias. Ai - você suspira -, vou espalhar essas verdades achadas na calçada suja, envolver a todos em meu ideal precipitado, essa compreensão quase infinita de sentimentos bem guardados debaixo do braço. Mas então eu levo um tapa na cara e um galho despenca em cima do meu carro, que é para me mostrar que tudo é, na verdade, insignificante.

Eu, ao meu turno, soluciono esse problema com a simples crença de que nada é tão importante que mereça a glória. Pode-se acreditar, quando se toma um objeto isolado, que, isolando-o e fazendo-o girar lentamente na sua mente num vazio ideal, ele é o próprio umbigo do mundo. Porém, eu prefiro basear toda a minha conduta na idéia de que todas as coisas existem da mesma forma e que, por isso, não possuem graus de hierarquia entre si. É nesse sentido que uma casa é feliz da mesma forma que uma pessoa é. Mas óbvio que essa crença desenvolvida aqui igualmente é uma  dentre tantas coisas, e, por isso mesmo, ausente de qualquer significado quando isolada. Risos, pois agora eu tornei todo esse texto desnecessário. Com licença, senhores, que agora tentarei salvá-lo de sua autodestruição.