segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Júpiter, tua ronda

Enquanto sinto meus dedos liquefazendo-se pelas teclas superaquecidas de meu computador, ponho-me a refletir, refletir e refletir. Mas mais do que refletir, estou sonhando, e os ruídos do exterior (pois eles realmente resolveram fazer um churrasco sob a janela de meu quarto) ricocheteiam pelas paredes, compondo ao meu redor um santuário de imagens hindus, através das quais meus olhos se fixam, mas minha mente, não.

Não. Minha mente apartou-se do mundo sublunar e às estrelas alçou-se como um chapéu fosforescente, e apenas uma tênue linha ainda a mantém unida, desenhando tremeluzente pelos ares celestes seus inesperados meandros. Marujos, valentes capitães e caçadores de monstros marinhos em vão a perseguem, e quando mal seus olhos vêm a sombra de seu dorso sob as águas, imediatamente torna a desaparecer sob as vagas turvas.

E se ela pudesse, ainda que fosse seu último ato, lançar-se de um promontório lunar em direção à Terra, despencando como um pequeno cometa através do espaço, e assim sobre a superfície deitar-se como um raio, que seria? Seria um fugaz brilho, talvez a fagulha de um foguete que se avista de longe, a iluminar não mais do que os pés de alguém que, tão vulgar, nada mais fazia senão esperar o ônibus?

Mas semelhante imagem não pode fazer jus a algo que tão naturalmente ascende e das montanhas lunares traz seu vislumbre. O sonho é muito mais do que se afigura aos demais; não é aquilo que dizem as pessoas quando entrevistadas em um programa de televisão. Um sonho não revela de todo seu rosto, pois entre o banal não poderia sobreviver. Ele é único e intangível, e, quando descende, não é como se morresse ao penetrar em solo.

Um sonho, na verdade, ao descender das esferas superiores, incorpora-se ao mundo, entranha-se (a muitos de maneira imperceptível) como um elemento químico completamente novo. Bromo, cobalto, zinco; nas mãos desesperadas de ourives fazem-se esses terríveis anéis, objetos de cobiça e superstição, capazes de lançar luz e sombra sobre as faces sobranceiras dos que a pouco acordaram e agora tomam seu café.

sábado, 12 de novembro de 2011

Sou de adamantium

- E quanto o senhor acha que isso sairia?
- Hum... Deixe-me ver... Tira aqui, ajeita ali, puxa, repuxa... Hum... Duzentos e quarenta pesos.
- Du... du... zentos e quarenta pesos? Bom, eu esperava algo como cinqüenta. [leva a mão ao cabelo].
- Ah! Ah! Ah! Não.

Enquanto girava a chave entre meus dedos, impunha velocidade ao meu raciocínio tanto quanto podia, pois não queria que o alfaiate chileno lesse em minha alma a confusão moral que eu tão inesperadamente passei a infligir-me. Terminei por largar aquele vulto enorme e negro sobre seu balcão, sob a promessa de que em quinze dias eu retornaria para pegá-lo. Livrava-me daquilo que havia se tornado quase um corpo mumificado, a espera do Juízo Final, e com a bolsa agora vazia seguia meu caminho. Tentaria não mais pensar no assunto, como se não pudesse haver volta, uma decisão cometida que de seus despojos apenas se ocupariam os policiais por curiosidade e sem esperança.

E, no entanto – o que fizeste! o que fizeste! -, mais cedo ou mais tarde eu teria que ir ao sapateiro para que me consertasse a alça de minha bolsa, que estava rota e apresentava desde então uma atadura de barbante que eu havia improvisado. E quanto me cobraria dessa vez? Mais cem pesos? E não posso esquecer-me também da pulseira de meu relógio, que igualmente havia arrebentado e tive que expender trinta e cinco pesos por uma nova. Tudo agora se me afigura tão caro e cansativo. Meus tênis, minhas roupas, tudo parece estar se desfazendo sem que, contudo, possa eu dar uma solução satisfatória.

De qualquer modo, não há mais jeito. Está enterrado. O peso da vida que reclama ao meu mundo de sonhos suas necessidades inadiáveis arrasta-me em seu grande redemoinho sem fim. E o que farei? Chamar o alfaiate, o sapateiro, o relojoeiro e toda esses senhores para quem devo abrir minha carteira ou mostrar minha amabilidade e gratidão e convidá-los a dormir? E, assim, enrodilhados uns sobre os outros, elevar-nos sobre o mundo até que na noite resplandeçamos como uma constelação distante e indistinguível (perguntar-se-ão, os que ficaram, o que seriam aquelas figuras, se carneiros, leões, cervos)?

Ah, não... Desta solução também estou cansado. Que revirem o quanto queiram os panos de meus bolsos. Que arranquem e façam deles lenços, encantadores atavios, que eu, tão insurgente quanto qualquer um deles, sairei pelas ruas arrastando meu casaco de alta-costura e boas maneiras. E a população, pasmada ante minha aparição repentina, como que descendendo por uma longa escadaria ao grande salão, abanará seus grandes leques, tomada de grande calor e confusão, pois que nem a véspera de uma bancarrota foi capaz de fazer-me renunciar a esse belo mundo de sonhos.

domingo, 6 de novembro de 2011

Grande Festa

É com grande honra que venho por meio desta dizer que: bem-vindo ao mundo, novo blog (não é tão novo assim, mas...)!!!! Demorou - o quê - um ano, mas enfim posso dizer que está pronto. Já possui corpo, um nome definitivo e um estatuto de condomínio. Não pude fazer uma festa muito grande porque gastei todo o dinheiro do mês para comprar estes lindos sapatos cor de gema. Tia Claudette chegou mais cedo para ajudar-me a fazer os brigadeiros e fritar os salgadinhos. Convidei o porteiro, a Nastácia, a Zumira e a enfermeira que cuida dela. Tudo bem pobre, bem imigrante eslavo. Mas o que ele não tiver de dignidade, a gente preenche com alegria \o/\o/.

Gabinete 009 funciona como um apêndice ileocecal, servindo para desviar conteúdo do Roda Elegante para um canto mais humilde. Se você não gostar, poderá dirigir-se ao nosso balcão de reclamações, onde será delicadamente atendido pela Duquesa de Bâle, a qual vem passando atualmente por uma espécie de transtorno compulsivo por guarda-chuvas e botões coloridos. Como todo blog, ele também tem seu post fundante, o qual pode ser acessado aqui. E tudo isso sem alarde, sem quebrar prato e sem arrendar minhas terras.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

É que, no entanto

Necessito de uma experiência culinária toda vez que uma idéia maligna me assalta. Hoje, eu faço flan. Amanhã, biscoitos amanteigados. E nem queiram saber no que eu estava pensando acaso me surpreendam assando um soufflé de queijo. Se é algo menor, insignificante para muitos, um simples brigadeiro será suficiente para acalmar esse senhor sombrio que desperta em meu íntimo. E assim por diante, numa razão entre o grau de imoralidade e a dificuldade na execução da receita.

Preciso (e apenas não uso o verbo no plural porque justamente desconheço meus semelhantes) de obras para acalmar-me, agitar energicamente as mãos e revolver o conteúdo das extremidades da panela. Ou, então, tendo os membros desimpedidos e a mente livre para que se desenvolva pelas sendas que bem entenda, estarei tentado a executar... o mal. Mas mesmo à boca - vejam só - é necessário impôr algum encargo, e, nesses momentos, surpreendo-me saindo pela janela a cumprimentar vizinhos que nunca vi, golpear violentamente suas portas e narrar-lhes o tempo.

Porém, não deixa de ser tudo em vão. O corpo uma hora cansa, e falar levianamente apenas perturba mais a mente (se bem que alguns parecem encontrar nisso algo de encantador, o que, possivelmente é um mau sinal). E, então, sou obrigado a dirigir-me aos rastros à minha cama, espiritualmente esgotado pela sensação de inutilidade, pois sei que, assim que afrouxe a vigília, retornará; ele, o mal. Inicialmente arrastará suavemente as correntes pelos úmidos corredores, tornando-se mais violento a medida que se aproxime da porta. E, ao encontrá-la trancada, baterá, golpeará e chutará, até que enfim irrompa, olhando-me arfante e sedento.

Por isso, é que, por meio desta, venho aqui para encontrar uma solução que eu não encontro no silêncio (não que eu cogite que isso seja possível) e que não alcançaria nem que eu monologasse por séculos inteiros. Aliás, tão pouco pretendo encontrar em vocês, pois essa solução não pode ser dada por quem vivencia os mesmos problemas e, portanto, padece sob uma mesma condição. Atados aos mesmos vícios e usando os mesmos encanamentos, por que é que, então, dirigimos-nos uns aos outros com esses olhos indagantes?

É que - e então alguém me avisa aos cochichos - não somos exatamente iguais nem vivemos exatamente sob as mesmas condições, de modo que, nesse estreito espaço de intersecção e dispersão, da mesma maneira que confirmamos no outro algo que havia em nós, podemos encontrar o que é estranho. E a realidade é exatamente isso, um salão formado por aquilo que compartilho e por aquilo que me distancia dos demais. E se é assim, posso dar meia volta e retornar à minha proposta inicial, que era falar a respeito de eugenia.

Que deselegante, no entanto, o que me acomete agora, pois terei que deixar esse assunto de lado. Por outro lado, sintam-se poupados de ouvir palavras tão pouco sensatas e pouco afeitas ao convívio social. O que acontece e o que acontecerá parece-me tão inevitável e tão indiferente, que não tenho vontade mais de dizer que, por exemplo, a mim me assombra que alguém possa decidir, não apenas se alguém nasce ou não, mas como ela nascerá, sem que, contudo, deixe de maravilhar-me com isso e desejá-lo secretamente. Tão poucas coisas escapam de ser humanas, e agora nem mesmo ao seu próprio início permitir-se-ia. Como se o mal não fosse mau, e como se ser moral ou não fosse uma questão de conveniências e vaidades. Enfim, enfim. Adeus, e que morramos cedo.