sexta-feira, 4 de novembro de 2011

É que, no entanto

Necessito de uma experiência culinária toda vez que uma idéia maligna me assalta. Hoje, eu faço flan. Amanhã, biscoitos amanteigados. E nem queiram saber no que eu estava pensando acaso me surpreendam assando um soufflé de queijo. Se é algo menor, insignificante para muitos, um simples brigadeiro será suficiente para acalmar esse senhor sombrio que desperta em meu íntimo. E assim por diante, numa razão entre o grau de imoralidade e a dificuldade na execução da receita.

Preciso (e apenas não uso o verbo no plural porque justamente desconheço meus semelhantes) de obras para acalmar-me, agitar energicamente as mãos e revolver o conteúdo das extremidades da panela. Ou, então, tendo os membros desimpedidos e a mente livre para que se desenvolva pelas sendas que bem entenda, estarei tentado a executar... o mal. Mas mesmo à boca - vejam só - é necessário impôr algum encargo, e, nesses momentos, surpreendo-me saindo pela janela a cumprimentar vizinhos que nunca vi, golpear violentamente suas portas e narrar-lhes o tempo.

Porém, não deixa de ser tudo em vão. O corpo uma hora cansa, e falar levianamente apenas perturba mais a mente (se bem que alguns parecem encontrar nisso algo de encantador, o que, possivelmente é um mau sinal). E, então, sou obrigado a dirigir-me aos rastros à minha cama, espiritualmente esgotado pela sensação de inutilidade, pois sei que, assim que afrouxe a vigília, retornará; ele, o mal. Inicialmente arrastará suavemente as correntes pelos úmidos corredores, tornando-se mais violento a medida que se aproxime da porta. E, ao encontrá-la trancada, baterá, golpeará e chutará, até que enfim irrompa, olhando-me arfante e sedento.

Por isso, é que, por meio desta, venho aqui para encontrar uma solução que eu não encontro no silêncio (não que eu cogite que isso seja possível) e que não alcançaria nem que eu monologasse por séculos inteiros. Aliás, tão pouco pretendo encontrar em vocês, pois essa solução não pode ser dada por quem vivencia os mesmos problemas e, portanto, padece sob uma mesma condição. Atados aos mesmos vícios e usando os mesmos encanamentos, por que é que, então, dirigimos-nos uns aos outros com esses olhos indagantes?

É que - e então alguém me avisa aos cochichos - não somos exatamente iguais nem vivemos exatamente sob as mesmas condições, de modo que, nesse estreito espaço de intersecção e dispersão, da mesma maneira que confirmamos no outro algo que havia em nós, podemos encontrar o que é estranho. E a realidade é exatamente isso, um salão formado por aquilo que compartilho e por aquilo que me distancia dos demais. E se é assim, posso dar meia volta e retornar à minha proposta inicial, que era falar a respeito de eugenia.

Que deselegante, no entanto, o que me acomete agora, pois terei que deixar esse assunto de lado. Por outro lado, sintam-se poupados de ouvir palavras tão pouco sensatas e pouco afeitas ao convívio social. O que acontece e o que acontecerá parece-me tão inevitável e tão indiferente, que não tenho vontade mais de dizer que, por exemplo, a mim me assombra que alguém possa decidir, não apenas se alguém nasce ou não, mas como ela nascerá, sem que, contudo, deixe de maravilhar-me com isso e desejá-lo secretamente. Tão poucas coisas escapam de ser humanas, e agora nem mesmo ao seu próprio início permitir-se-ia. Como se o mal não fosse mau, e como se ser moral ou não fosse uma questão de conveniências e vaidades. Enfim, enfim. Adeus, e que morramos cedo.

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