segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Nossa imagem de glória

Antes que outro alguém resolva ter a mesma idéia, deixo já aqui registrado para que no futuro todos reconheçam a grandiosidade e o pioneirismo de meu pensamento. Um pouco que se assiste de Discovery Channel já basta para perceber que a concorrência no campo está crescendo, e cada vez estão mais ousados, e acho que chegou a minha vez de tomar parte. Os projetos vão desde cobrir as geleiras do Pólo Norte com capas de cor branca, a infestar os mares com navios onde se produziria energia solar. Eu, ao meu turno, não decepciono. Bem é verdade que de tanto eu repetir já deve ter ficado enjoativo, porém ainda não há registros sólidos o suficiente que possam resistir à minha morte. No máximo tenho ouvintes esporádicos que, muito provavelmente, não espalharão a minha boa-nova, nem se importarão em mencionar a minha autoria. Sim, uns malditos. Entretanto, eu mesmo já estou trabalhando para enviar essa mensagem em ondas de rádio e fazê-las propagarem através do espaço.

Bom, a questão é: encontrar novas formas de produção de energia que sejam ao mesmo tempo eficientes e limpas. A energia solar e eólica, embora limpas, são muito caras e ineficientes comparadas com, por exemplo, a energia nuclear. Então resolvi olhar um pouco mais para cima, e lá encontrei a Lua, vagando vagabundamente ao redor da Terra. Pensei: por que não fazer de seu inaproveitado movimento orbital uma solução para o problema do aquecimento global? Por óbvio que não estou insinuando painéis que captariam a luz lunar, embora isso seja particularmente interessante. Mas acho que estou me demorando. A minha idéia é bastante simples. Sugiro a construção de uma ferrovia ao redor do planeta, que atravessaria oceanos e continentes inteiros. Uma imensa locomotiva percorreria seus trilhos, fazendo girar milhares de gigantescas turbinas construídas ao seu redor. Pergunta: e qual seria seu combustível? Resposta: Nenhum. Através de um cabo amarrado à Lua, enquanto esta orbitasse naturalmente a Terra, moveria a locomotiva ao longo dos trilhos, em uma velocidade espetacular. Eficiência: total. Conseqüências para a natureza: nenhuma, a não ser a gradual desaceleração de nosso satélite, o que, mesmo assim, demoraria muito tempo para que sofresse uma significativa redução.

O meu projeto possibilitaria, além de uma eficiente e limpa produção de energia, um rápido sistema de transporte ao longo de todo o Equador, conectando populações de diferentes regiões, como África, Brasil, Indonésia e... Bom, se é verdade que o slogan "conectando regiões pobres a regiões pobres" não é muito atrativo, certamente a imensa produção de energia é. Teremos problemas? Nem tudo é perfeito, eu direi. Se haverá certa dificuldade em imaginar como seria o embarque e desembarque desse hipotético trem, uma vez que não há como parar ou sequer freá-lo, penso que se as populações do século passado puderam acostumar-se aos bondes, nós também conseguiremos. Da mesma forma, deve-se levar em conta que este é apenas um esboço, e será fácil imaginar como podemos aperfeiçoar o sistema através de um engenhoso sistema de roldanas, possibilitando não apenas uma locomotiva, mas muitas, que poderiam percorrer diferentes latitudes e, até mesmo, longitudes.

Ademais disso, pense no espetáculo que não será nosso mundo se nós, ao longo dos trilhos e dos cabos, criarmos um sistema de iluminação que poderia ser vista do espaço. As civilizações alienígenas hão de reconhecer que conseguimos transformar nosso planeta no mais divertido do Universo, e que, no final das contas, não somos tão patéticos assim se podemos fazer da Terra um imenso brinquedo (pense nas montanhas-russas, nas rodas-gigantes, tudo movido a energia lunar).

Bom, é isso. Ainda estou hesitante quanto a contactar o Discovery Channel. Minha promessa? Um futuro de energia lunar, muitas luzes e glória sobre trilhos e loopings em alta velocidade.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Fantasma das águas

Atado à cauda em brumas de trêmulo peixe
Sobre as mesmas pedras sibilante circulo
Qual fantasma sem sonhos de lúgubre azul
Que no vazio das órbitas fundas em luto
Sacode-se desfeito em véus sem som ou luz
Dos frios cristais contra o meu peito insepulto.

O meu crânio ardeu ébrio do noturno trago
Os mudos lábios desvanecidos em névoas
Nas bordas em lâminas de um cálice incauto,
E soturnas contornaram as rodas férreas
O périplo das estrelas mortas nos passos
Descarnados do destino fremente em trevas.

Agitam-se as palmas áridas e sem cor
Atrás do vitral partido em vozes sem rosto
Que murmurantes rastejam folhas de sangue
Em vão pelas réstias esquecidas dos rotos
Vórtices de sol acendidos sobre o estanque
Lago onde agora jazem em sombras envoltos.

Antes jamais houvesse em fulgor fustigado
Pelos cabos gotejantes de claros ventos
Tremeluzente íris de tergiverso fado
Sobre o orvalho esvoaçante em meu degredo,
Do que saber-me agora em cinzas transtornado
Dos ásperos anéis de cobre ferrugento.

Fantasma que em pálidos sussurros transpõe
A garganta das escuras águas moventes
Em lentos braços agonizantes em vida,
E os gélidos pés que em desalento dormentes
Vão-se vaporosos pelas rochas esguias
Do cálido seio feito pórtico ausente.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Uma história de lágrimas e panquecas

Eu vivia em uma cidade pequena, no interior da província. Fazia trabalhos com ferro e usava uma banheira para cozinhar a sopa, a mesma que Tom e Fran de vez em quando alugavam para tomar banho. Um dia alguém levantou uma pedra à beira de um regato e descobriu a minha cidade. Não houve manchetes, apenas uma transmissão local de um rádio amador, que nunca foi ouvida, pois a mocinha que costumava ouvir naquela estação tinha se levantado para ir ao banheiro. De todos os habitantes, eu fui o primeiro a saltar, e por isso eles me chamaram de João I. No início isso deixava as pessoas um tanto confusas, e facilmente eu era confundido com alguma espécie de monarca, o que, claro, trazia uma série de regalias gastronômicas, culturais e geológicas. Mas logo eles começaram a perceber que monarca algum andaria vestido em um saco de batatas, e monarca algum ofereceria um balde de madeira para as visitas sentarem. Então, quando eu já não convencia a mais ninguém, fui expulso da Corte e forçado a trabalhar para viver.

Arranjei um trabalho nas minas de ouro e assim permaneci durante anos. Todas as manhãs partia em um vagão e não retornava até que estivesse cheio. Infelizmente não fiquei rico, pois gastava todo o ouro na construção de um navio de madeira. E quando finalmente ficou pronto, chegaram-me notícias de que já não havia mais ouro no oeste americano, e desisti de minha viajem. Era uma tarde de sol e fiquei olhando desconsolado para o meu navio de madeira, que já não serviria para mais nada a não ser atração turística ou ponto de encontro para bêbados. Então o desmontei e construí uma panquecaria. Era a única coisa que eu sabia fazer e precisava ganhar dinheiro. Ao lado ergui uma torre de madeira, que era onde ficaria o meu quarto. Você podia subir por uma corda de cipó e depois descer por um tronco em forma de espiral. Também havia uma escada, mas não era muito eficiente, pois em alguns pontos havia faltado tábua. Tinha uma vista que alcançava toda a baía, e de noite eu recebia astrônomos de todos os cantos do país, pois, diziam, era um lugar muito propício para ver as estrelas. Passei assim a vender panquecas a preços módicos. Tinha de framboesa, chantilly e frango com milho. Também vendia cerveja e mariscos cozidos, que não eram lá essas coisas, mas as pessoas comiam. Elas não conheciam mesmo o que era uma cozinha limpa e por isso não se importavam. Nem eu.

Um dia eu estava passeando pela praia, colhendo mariscos para o jantar, quando vi um velho marinheiro sentado em uma pedra. Olhava para o que restava do sol e voltava a esconder o rosto entre os seus braços, chorando. Ele tinha uma barba muito grande e negra. Aproximei-me e perguntei-lhe se acaso a minha vista era o motivo de seu pranto. Ele então me respondeu algo em norueguês, e voltou a chorar copiosamente. Passei o meu dedo nos cantos de seus olhos e experimentei. Tinha um gosto bom e ao mesmo tempo amargo. Resolvi pôr em minhas panquecas. Foi um sucesso. Todas as noites as pessoas vinham à minha panquecaria, e noutro dia sempre voltavam, querendo mais e mais. Foi então que em menos de uma semana os casos em toda a cidade começaram a ocorrer. Todos os dias centenas de pessoas dirigiam-se à baía e atiravam-se ao mar, convulsionadas de uma estranha querência que não podiam satisfazer ou explicar. Eu tentava impedi-las, mas elas me empurravam, presas em seu profundo e incompreensível delírio. Gatos, mulheres e crianças. Foram-se todos, levados pelas ondas, angustiados de uma saudade que não podiam aplacar, os seus corações apertados e vivos como nunca o foram.

Meu Deus!, eu pensei, olhando a cidade vazia ao meu redor, apenas as casas e as suas portas mudas. Sem saber o que fazer, corri para a capela que ficava no topo de um pedregulho, dependurada em direção ao mar. Abri as portas de madeira, que já estavam velhas e rangeram de um jeito medonho, e entrei, pálido e já sem olhos para o mundo. Minhas pernas estavam bambas como maria-mole, e tombei sobre o chão empoeirado, com a mão apertando um bilhete sem número, sem sorte. Não sei por quantos dias dormi. Acordei com um barulho que vinha do vitral, logo atrás do púlpito, como se alguém quisesse entrar. Havia sombras coloridas mexendo-se atrás do vidro, e por um instante cheguei a pensar que eram as pessoas que voltavam do mar. Mas eram apenas pombos, que levantaram vôo assustados quando abri a janela. Olhei para a brisa e assim permaneci por uma semana ou mais, salgando as minhas narinas. Então despedacei o meu bilhete no vento, que na verdade era onde eu havia escrito o nome de quem havia limpado as minha botas há muito tempo atrás, e voltei para casa, arrastando os meus sapatos de madeira pela noite.

O tempo passou e hoje eu trabalho na cabine da estação de trem. Vendo passagens de ida, ida e volta, e volta. Para Zurique, Milão ou Petrópolis. Pelas catracas eu fico espreitando o senhor de olhar estranho que todos os dias pega o trem das seis para trabalhar. Por um momento pensei que esta manhã estivesse zangado comigo, ou apenas chateado. Eu realmente não sei. Acabo de botar um recado em sua carteira enquanto ele procurava os óculos, como quem arma uma bomba. E quando ele embarcar no trem e sentar-se no lugar de costume, vai conferir a sua identidade e vai ver que há também um papel cuidadosamente embrulhado. E quando ler, vai voltar e devolver-me como se fosse uma dinamite de pavio aceso. De vez em quando, no banheiro, eu olho por aquela janelinha redonda, e fico a observar se aparecem sombras como aquelas que vi no vitral da capela. Antes de dormir, eu ponho uma vela em minha cabeceira e fico escrevendo sob a sua meia-luz os nomes dos que partiram pelo mar. Depois eu sempre acabo esquecendo eles nos bolsos ou devolvendo sem querer junto com as moedas do troco.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Perfunctório cenho

Filosofias utilitaristas são bastante razoáveis. Eu mesmo raramente consigo evitar um pensamento utilitarista, e freqüentemente acho que o útil é sempre o melhor critério para tomar decisões. Mas é uma idéia tão feia que eu prefiro tangê-la só de leve, e quando tento me esquivar, pareço mais como alguém que sustenta bolinhas de Natal no ar. Fútil? Talvez. Mas veja pelo meu ponto de vista. Se tudo está lentamente se deteriorando (tudo, tudo mesmo), então não é lógico concluir que toda utilidade no fim será inútil? Meus valores são muito melhores, ainda mais quando me pego no mais flagrante pensamento acrítico, e não se preocupam em serem úteis, pois sabem que tudo termina e que nenhuma utilidade pode ser útil por muito tempo. Não é difícil imaginar como o útil pode levar a uma conclusão absolutamente absurda, dependendo apenas do ponto de partida que se toma.Se visássemos apenas o útil, restaria saber a que fim.

Por exemplo, o Estado não precisa submeter toda a população a uma cirurgia nos olhos para que vejam tão somente em preto e branco e assim não precisem mais gastar dinheiro com tintas. Mas se o fizesse, não estaria sendo útil? Afinal, gasta-se muito tempo, imaginação e recursos naturais com algo que pode ser dispensado. Da mesma forma, o Estado não precisa ser uma agência bancária onde você pode sacar mensalmente a sua parte nos lucros. E se assim fosse, também aqui não se vê na justificação do Estado como uma utilidade para o indivíduo? Não é isso ser útil? Mas o Estado não é o cocho do povo, nem tampouco é uma espécie de forno que precise ser constantemente alimentado. Não, Estado. Senta aqui que eu lhe explico: você não é apenas uma utilidade, nem é um fim último como é a fabricação de um móvel para um carpinteiro. Você é um fim que, digamos, consuma-se a cada instante. Bom, na verdade nunca se consuma, nem mesmo você é um fim, e o verbo melhor seria: Estado, você se realiza. O Estado não é somente uma utilidade para mim e para você, mas algo que se realiza. Se bem que acaba de ocorrer-me que isso pode não ser mais verdade quando todo o aparato estatal for controlado por robôs, e é bom não duvidar.

De qualquer modo, estarei aqui: "Eu jogo golfe assim. Você joga assim" [dá uma rebolada e finge acertar uma bola com o taco]. Por que mesmo? Porque eu acho que a minha opinião nunca vai ser lá muito fixa, e, no entanto, estarei esperando, nos jardins do monastério, depois do arco de pedra, atrás do carvalho sem rosto.