Eu vivia em uma cidade pequena, no interior da província. Fazia trabalhos com ferro e usava uma banheira para cozinhar a sopa, a mesma que Tom e Fran de vez em quando alugavam para tomar banho. Um dia alguém levantou uma pedra à beira de um regato e descobriu a minha cidade. Não houve manchetes, apenas uma transmissão local de um rádio amador, que nunca foi ouvida, pois a mocinha que costumava ouvir naquela estação tinha se levantado para ir ao banheiro. De todos os habitantes, eu fui o primeiro a saltar, e por isso eles me chamaram de João I. No início isso deixava as pessoas um tanto confusas, e facilmente eu era confundido com alguma espécie de monarca, o que, claro, trazia uma série de regalias gastronômicas, culturais e geológicas. Mas logo eles começaram a perceber que monarca algum andaria vestido em um saco de batatas, e monarca algum ofereceria um balde de madeira para as visitas sentarem. Então, quando eu já não convencia a mais ninguém, fui expulso da Corte e forçado a trabalhar para viver.
Arranjei um trabalho nas minas de ouro e assim permaneci durante anos. Todas as manhãs partia em um vagão e não retornava até que estivesse cheio. Infelizmente não fiquei rico, pois gastava todo o ouro na construção de um navio de madeira. E quando finalmente ficou pronto, chegaram-me notícias de que já não havia mais ouro no oeste americano, e desisti de minha viajem. Era uma tarde de sol e fiquei olhando desconsolado para o meu navio de madeira, que já não serviria para mais nada a não ser atração turística ou ponto de encontro para bêbados. Então o desmontei e construí uma panquecaria. Era a única coisa que eu sabia fazer e precisava ganhar dinheiro. Ao lado ergui uma torre de madeira, que era onde ficaria o meu quarto. Você podia subir por uma corda de cipó e depois descer por um tronco em forma de espiral. Também havia uma escada, mas não era muito eficiente, pois em alguns pontos havia faltado tábua. Tinha uma vista que alcançava toda a baía, e de noite eu recebia astrônomos de todos os cantos do país, pois, diziam, era um lugar muito propício para ver as estrelas. Passei assim a vender panquecas a preços módicos. Tinha de framboesa, chantilly e frango com milho. Também vendia cerveja e mariscos cozidos, que não eram lá essas coisas, mas as pessoas comiam. Elas não conheciam mesmo o que era uma cozinha limpa e por isso não se importavam. Nem eu.
Um dia eu estava passeando pela praia, colhendo mariscos para o jantar, quando vi um velho marinheiro sentado em uma pedra. Olhava para o que restava do sol e voltava a esconder o rosto entre os seus braços, chorando. Ele tinha uma barba muito grande e negra. Aproximei-me e perguntei-lhe se acaso a minha vista era o motivo de seu pranto. Ele então me respondeu algo em norueguês, e voltou a chorar copiosamente. Passei o meu dedo nos cantos de seus olhos e experimentei. Tinha um gosto bom e ao mesmo tempo amargo. Resolvi pôr em minhas panquecas. Foi um sucesso. Todas as noites as pessoas vinham à minha panquecaria, e noutro dia sempre voltavam, querendo mais e mais. Foi então que em menos de uma semana os casos em toda a cidade começaram a ocorrer. Todos os dias centenas de pessoas dirigiam-se à baía e atiravam-se ao mar, convulsionadas de uma estranha querência que não podiam satisfazer ou explicar. Eu tentava impedi-las, mas elas me empurravam, presas em seu profundo e incompreensível delírio. Gatos, mulheres e crianças. Foram-se todos, levados pelas ondas, angustiados de uma saudade que não podiam aplacar, os seus corações apertados e vivos como nunca o foram.
Meu Deus!, eu pensei, olhando a cidade vazia ao meu redor, apenas as casas e as suas portas mudas. Sem saber o que fazer, corri para a capela que ficava no topo de um pedregulho, dependurada em direção ao mar. Abri as portas de madeira, que já estavam velhas e rangeram de um jeito medonho, e entrei, pálido e já sem olhos para o mundo. Minhas pernas estavam bambas como maria-mole, e tombei sobre o chão empoeirado, com a mão apertando um bilhete sem número, sem sorte. Não sei por quantos dias dormi. Acordei com um barulho que vinha do vitral, logo atrás do púlpito, como se alguém quisesse entrar. Havia sombras coloridas mexendo-se atrás do vidro, e por um instante cheguei a pensar que eram as pessoas que voltavam do mar. Mas eram apenas pombos, que levantaram vôo assustados quando abri a janela. Olhei para a brisa e assim permaneci por uma semana ou mais, salgando as minhas narinas. Então despedacei o meu bilhete no vento, que na verdade era onde eu havia escrito o nome de quem havia limpado as minha botas há muito tempo atrás, e voltei para casa, arrastando os meus sapatos de madeira pela noite.
O tempo passou e hoje eu trabalho na cabine da estação de trem. Vendo passagens de ida, ida e volta, e volta. Para Zurique, Milão ou Petrópolis. Pelas catracas eu fico espreitando o senhor de olhar estranho que todos os dias pega o trem das seis para trabalhar. Por um momento pensei que esta manhã estivesse zangado comigo, ou apenas chateado. Eu realmente não sei. Acabo de botar um recado em sua carteira enquanto ele procurava os óculos, como quem arma uma bomba. E quando ele embarcar no trem e sentar-se no lugar de costume, vai conferir a sua identidade e vai ver que há também um papel cuidadosamente embrulhado. E quando ler, vai voltar e devolver-me como se fosse uma dinamite de pavio aceso. De vez em quando, no banheiro, eu olho por aquela janelinha redonda, e fico a observar se aparecem sombras como aquelas que vi no vitral da capela. Antes de dormir, eu ponho uma vela em minha cabeceira e fico escrevendo sob a sua meia-luz os nomes dos que partiram pelo mar. Depois eu sempre acabo esquecendo eles nos bolsos ou devolvendo sem querer junto com as moedas do troco.
Arranjei um trabalho nas minas de ouro e assim permaneci durante anos. Todas as manhãs partia em um vagão e não retornava até que estivesse cheio. Infelizmente não fiquei rico, pois gastava todo o ouro na construção de um navio de madeira. E quando finalmente ficou pronto, chegaram-me notícias de que já não havia mais ouro no oeste americano, e desisti de minha viajem. Era uma tarde de sol e fiquei olhando desconsolado para o meu navio de madeira, que já não serviria para mais nada a não ser atração turística ou ponto de encontro para bêbados. Então o desmontei e construí uma panquecaria. Era a única coisa que eu sabia fazer e precisava ganhar dinheiro. Ao lado ergui uma torre de madeira, que era onde ficaria o meu quarto. Você podia subir por uma corda de cipó e depois descer por um tronco em forma de espiral. Também havia uma escada, mas não era muito eficiente, pois em alguns pontos havia faltado tábua. Tinha uma vista que alcançava toda a baía, e de noite eu recebia astrônomos de todos os cantos do país, pois, diziam, era um lugar muito propício para ver as estrelas. Passei assim a vender panquecas a preços módicos. Tinha de framboesa, chantilly e frango com milho. Também vendia cerveja e mariscos cozidos, que não eram lá essas coisas, mas as pessoas comiam. Elas não conheciam mesmo o que era uma cozinha limpa e por isso não se importavam. Nem eu.
Um dia eu estava passeando pela praia, colhendo mariscos para o jantar, quando vi um velho marinheiro sentado em uma pedra. Olhava para o que restava do sol e voltava a esconder o rosto entre os seus braços, chorando. Ele tinha uma barba muito grande e negra. Aproximei-me e perguntei-lhe se acaso a minha vista era o motivo de seu pranto. Ele então me respondeu algo em norueguês, e voltou a chorar copiosamente. Passei o meu dedo nos cantos de seus olhos e experimentei. Tinha um gosto bom e ao mesmo tempo amargo. Resolvi pôr em minhas panquecas. Foi um sucesso. Todas as noites as pessoas vinham à minha panquecaria, e noutro dia sempre voltavam, querendo mais e mais. Foi então que em menos de uma semana os casos em toda a cidade começaram a ocorrer. Todos os dias centenas de pessoas dirigiam-se à baía e atiravam-se ao mar, convulsionadas de uma estranha querência que não podiam satisfazer ou explicar. Eu tentava impedi-las, mas elas me empurravam, presas em seu profundo e incompreensível delírio. Gatos, mulheres e crianças. Foram-se todos, levados pelas ondas, angustiados de uma saudade que não podiam aplacar, os seus corações apertados e vivos como nunca o foram.
Meu Deus!, eu pensei, olhando a cidade vazia ao meu redor, apenas as casas e as suas portas mudas. Sem saber o que fazer, corri para a capela que ficava no topo de um pedregulho, dependurada em direção ao mar. Abri as portas de madeira, que já estavam velhas e rangeram de um jeito medonho, e entrei, pálido e já sem olhos para o mundo. Minhas pernas estavam bambas como maria-mole, e tombei sobre o chão empoeirado, com a mão apertando um bilhete sem número, sem sorte. Não sei por quantos dias dormi. Acordei com um barulho que vinha do vitral, logo atrás do púlpito, como se alguém quisesse entrar. Havia sombras coloridas mexendo-se atrás do vidro, e por um instante cheguei a pensar que eram as pessoas que voltavam do mar. Mas eram apenas pombos, que levantaram vôo assustados quando abri a janela. Olhei para a brisa e assim permaneci por uma semana ou mais, salgando as minhas narinas. Então despedacei o meu bilhete no vento, que na verdade era onde eu havia escrito o nome de quem havia limpado as minha botas há muito tempo atrás, e voltei para casa, arrastando os meus sapatos de madeira pela noite.
O tempo passou e hoje eu trabalho na cabine da estação de trem. Vendo passagens de ida, ida e volta, e volta. Para Zurique, Milão ou Petrópolis. Pelas catracas eu fico espreitando o senhor de olhar estranho que todos os dias pega o trem das seis para trabalhar. Por um momento pensei que esta manhã estivesse zangado comigo, ou apenas chateado. Eu realmente não sei. Acabo de botar um recado em sua carteira enquanto ele procurava os óculos, como quem arma uma bomba. E quando ele embarcar no trem e sentar-se no lugar de costume, vai conferir a sua identidade e vai ver que há também um papel cuidadosamente embrulhado. E quando ler, vai voltar e devolver-me como se fosse uma dinamite de pavio aceso. De vez em quando, no banheiro, eu olho por aquela janelinha redonda, e fico a observar se aparecem sombras como aquelas que vi no vitral da capela. Antes de dormir, eu ponho uma vela em minha cabeceira e fico escrevendo sob a sua meia-luz os nomes dos que partiram pelo mar. Depois eu sempre acabo esquecendo eles nos bolsos ou devolvendo sem querer junto com as moedas do troco.
Um comentário:
Eu amo esse texto.
Também tenho minha história de lágrimas e panquecas para contar.
Comi as piores panquecas de minha vida na casa de Monsieur Kangussu. Mas não foi culpa dele! Uma saudosa amiga (por muitas razões, que não suas panquecas)era a responsável pela cozinha naquele momento. Havia também a calda (ou molho, vá saber) de chocolate...um terror!
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