terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Rostos

Pouco sei do que se passou na Universidade de São Paulo ano passado. Estava muito longe e tinha preguiça de informar-me a respeito. Então vou ficar aqui com o argumento que me parece mais delicioso: trata-se de um bando de jovens desocupados, janotas e sem real sentido do que é trabalho que, sentindo-se molestados em seu direito de fumar a maconha santa de todo dia, são capazes de sacrificar o bem comum em troca do desfrute egoísta e inconsequente de suas vidas viciosas. Não é lindo? Mas não só esses estudantes. Parece-me que a sociedade inteira está disposta a defender seus vícios, mesmo que isso no fim revele-se irracional. E eu tenho um caso para ilustrar.

Ano retrasado, já em dezembro, os alunos do curso de Direito haviam sido chamados a assistir uma palestra sobre ética, a qual, no conto de fadas do departamento, substituiria as aulas que obrigatoriamente deveriam ministrar. Era num sábado de manhã, e imagine você quantos alunos estariam dispostos a acordar cedinho para enfrentar horas de aridez intelectual. Penso que mais da metade não havia comparecido, porém, nas listas de chamada que circulavam entre os alunos no auditório, estavam todos miraculosamente presentes. Trata-se de uma prática muito comum, banalizada e que nem mesmos os professores e funcionários do departamento teriam disposição ou força moral para impedi-la.

No fim da palestra, contudo, abrindo-se enfim espaço para as perguntas dos alunos, eis que um de nós levanta-se e, sutilmente, entre seus habermas e suas hannahs arendts, menciona que "... por exemplo, muitos alunos aqui assinaram na lista de presença  em nome de pessoas que não se encontram...". Eu apenas me dei conta de que se tratava de uma delação por causa do murmurinho de desaprovação entre os alunos que a acompanhou. Oh, sim, ele estava delatando. Imagine os olhos do chefe do departamento do curso de Direito revirando-se convulsamente ante a presença de um juiz e membros da OAB em uma palestra justamente sobre ética ao ver enfim em palavras o que em silêncio há muito se fazia. Ah... a harmonia perfeita desses encontros... No final, ele jurou que puniria os responsáveis, ameaçando-os inclusive de expulsão.

É claro que ninguém gostou disso, e nosso pequeno delator foi, durante muitas semanas, motivo de ódio entre os alunos. Porém, desconsiderando qualquer vaidade, presunção ou idealismo que possa tê-lo motivado, em nenhum momento eu ouvi algo do tipo "Ah, muito bem, assinar as listas de presença em nome de pessoas que não estão presentes e assim burlar-se da instituição de ensino da qual desfrutamos gratuitamente é errado, mas nem por isso...". Não! E é claro que não. Quem, ante um mal generalizado, ergue-se para denunciá-lo? "Ah, nossa, tudo bem que é errado eu fumar minha maconha e de certa forma tornar-me responsável pelo tráfico de drogas, mas o fato é que...". Não, né?

Todos são lindos, bonzinhos e lutam pelas crianças-que-têm-fome. Mas basta apontar um dedo petulante para essas mesquinharias para ver o zumbido crescendo dentro da colmeia. E, aliás, por que alguém haveria de querer defender algo tão banal contra si mesmo ante uma medida tão séria e desproporcional que é a expulsão da universidade? Deus sabe por quantos cursinhos muitos deles tiveram que passar... Porém, de outro lado, que temos senão a exposição de uma coisa que todos sabiam? Era a verdade, não era? Ah, mas a sociedade, estimado discípulo, é feita de murmurinhos, de bombons ruins atirados no vaso sanitário, de mesuras e pródigos sorrisos.

Mas, meu bom senhor, como reconhecer se o que varremos displicentemente para debaixo do tapete é uma inocente poeirinha ou um já vultuoso cadáver? Talvez através das consequências e o quão longe podem chegar. Mas nem sempre isso é fácil. Talvez fraudar a lista de presença não seja ato grave, ainda mais quando o próprio departamento atua de um modo tão imoral, pondo nas costas dos alunos suas falhas e o desleixo de anos. Porém, dê só uma olhada para as suas caras! Olhe isso! O que mais são capazes de esconder? Não, eles não vieram para fazer justiça, vieram para acomodar-se o melhor possível nas poltronas da sociedade. Pois que abanem, abanem seus leques ardorosamente! Inclinem, inclinem suas mãos aos lábios de seus cortesões! Quem aqui dirá que estão errados?

Contudo, meus gentis homens, atentem-se que vocês sequer reconhecem suas pequenas vilezas. Eu até os defenderia se vocês ao menos confessassem que aquilo que fazem não é certo, porém, sendo insignificantes, não merecem as repreensões previstas. Mas, não, agora isso é tão certo quanto são róseos seus bumbuns. O que me surpreende é que, enquanto discursam, não é possível sequer identificar o que lhes parece certo e o que lhes parece errado. É como se se recusassem a ouvir alguma voz interior que simplesmente lhes dissesse: "Ei, eu estou errado, mas igualmente não aceito ser punido com a mesma gravidade que um assassino seria, pois o que eu fiz é uma mesquinharia e tudo o que isso revela é que sou imperfeito e nada mais". Estou sendo muito severo?

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