domingo, 8 de janeiro de 2012

Hotel Vitóri

Há muito tempo vinha-me prometendo o relato da breve, intensa e inesquecível estadia no Hotel Vitóri. Isso aconteceu há quase sete meses, e temo que alguns detalhes já não me ocorram tão facilmente. Era inverno, mês de julho. Havíamos planejado um passeio a Porto Alegre. Viajamos de avião, um avião barulhento e que parecia feito com casca de ovo. Era promoção. Era barato. Éramos jovens e não nos importávamos com comodidades. O suportar o desconforto era-nos uma virtude. Havia ânsia por vicissitudes, pela dor, o perceber de nossos limites. E eu era um rapaz prático, já um tanto esgotado por haver recentemente voltado do Chile, mas animoso por voltar a Curitiba, ainda que por breves horas, e por conhecer o extremo sul do Brasil.

Porto Alegre apresentou-se-me fria, úmida, cinzenta e seus habitantes rústicos, porém amáveis. Surpreendentemente amáveis. Já no aeroporto, uma senhora ofereceu-nos, assim, sem esperar sorriso algum de nossa parte, pagar pelo trem que nos levaria até a rodoviária. Instantes antes, um senhor e seu filho, de traços élficos, germânicos, haviam zelosamente tratado de que chegássemos ao terminal ferroviário. Sinceramente, não sei se eu poderia encontrar a mesma acolhida em meus conterrâneos, os quais considero rudes e caipiras (e muito provavelmente eu também o seja).

As calçadas estavam molhadas, o concreto de que eram feitas tinha o aspecto poroso e por toda a parte surgiam veios de água de origem misteriosa. O hotel não ficava muito longe da rodoviária, poderíamos facilmente chegar a pé. Havíamos feito a reserva pela internet, um preço muito camarada. A moça que cuidava do contato havia respondido nossos e-mails em caps lock. O hotel, conforme descobrimos através do google, havia sido vítima de um incêndio, provavelmente provocado por um aparelho elétrico em um quarto ocupado por um sacoleiro (era comum que o estabelecimento recebesse hóspedes do estilo). Embora suspeitássemos de algo nessas condições, a mística de um desastre que o envolvia e a economia que faríamos fizeram-nos preferi-lo a um hostel.

A rua em que ficava o hotel era como toda rua das redondezas de uma rodoviária. Um conjunto de prédios antigos e decadentes, ocupados por moquifos, lojas de bugigangas, bares imundos e prostituição. Seus transeuntes portavam o mesmo ar pestilento: rostos sulcados, cansados, escuros. Em todos eu via as mesmas mãos furtivas, as risadas debochadas e sem espírito, suas roupas desbotadas, seus olhos rápidos, ansiosos e libertinos que, sob a luz evanescente do crepúsculo, pareciam temer algo que os perseguia. Eu não poderia descrever a fachada do hotel, pois não me lembro. Mas vamos supor que não ocupava mais do que cinco metros, uma porta espremida entre duas lojinhas furrecas, uma grande janela de vidro ensebado e, claro, uma pintura bege e azul clarinho descascando-se.

A primeira coisa foi o cheiro de produto de limpeza misturado a mofo, como seria de esperar de lugares mal arejados e com pouca luminosidade. Para chegar até a recepção, era necessário subir uma escada de dois ou três lances. Os degraus estavam cobertos de um carpete puído e enegrecido. No fim da escada, havia um portão de grades, de aspecto rangente, sombrio, gélido. A recepção já não aparentava ser tão ruim, mas mesmo assim os móveis eram pobres, a decoração triste, algumas samambaias abandonadas pelos cantos. Antes de acertarmos a estadia, a moça perguntou se não queríamos conhecer o quarto. Claro. Achei desnecessário, afinal, onde, sendo já de noite e estando esgotados pela viagem poderíamos encontrar outro lugar? Nem conhecíamos a cidade... Porém, acompanhamos a moça que - estaria eu louco se me lembro desse detalhe? - vestia uma blusa de lã azul.

Não sei quantos corredores atravessamos. Corredores silenciosos, estreitos, claustrofóbicos, as paredes de aspecto frágil. A porta que abriu estava pintada de uma amarelo claro, e sua composição só muito vagamente lembrava a da madeira. Olhei rapidamente para o interior do quarto e contive meu riso: um riso de desespero, triste, como a fina chuva que caía lá fora sobre a calçada destroçada. Voltamos à recepção, aceitamos o quarto, pagamos. Estava lacônico e não lembro se quem tratou com os funcionários do hotel fui eu ou meu amigo. Parecíamos ser os únicos hóspedes. Para mim, estava claro que eu não poderia passar mais um dia sequer naquele hotel. Aquela noite era apenas uma necessidade irremediável, um absurdo em que me havia posto e o qual teria que suportar até que a luz do dia viesse.

O quarto tinha paredes pintadas de um laranja intenso, um quinhão do inferno. Não era muito grande, contendo uma cama, um beliche e um armário que, diferentemente das camas, as quais sustentavam um ar de mesquinha leveza que só a madeira ruim e barata é capaz, tinha um aspecto pesado, sóbrio, como se, estando ao canto da habitação, escondesse em seu interior um portal que não permitisse jamais a sensação de estar-se fechado num quarto. O banheiro era separado por uma divisória, de modo que tudo o que você fizesse ali poderia ser ouvido pelo seu companheiro do outro lado. Continha uma banheira de cerâmica encardida, um espelho e uma pia absurdamente baixa e onde mal cabiam as duas mãos juntas. Tudo tão triste, desolador, silencioso e miserável. Larguei minha mochila sobre a cama debaixo do beliche e comecei a dar voltas pela habitação.

Abrimos a janela para que arejasse um pouco e contemplamos a vista das ruínas do incêndio. Sim, eram os escombros, envolvidos na escuridão e para sempre calados pelo fogo. Escovei os dentes como pude e não quis tomar banho. Sequer pus pijama para dormir, e acabei cobrindo-me com o meu próprio casaco. Tinha medo do demônio, dos funcionários do hotel, das sombras com que se disfarçavam e que a qualquer instante entrariam nas pontinhas dos pés e me apunhalariam enquanto o grande relógio da noite soasse sua hora mais avançada. Tinha medo, sobretudo, da pobreza que ali respirava. A decadência, a certeza de que o homem só é digno enquanto puder desfrutar de um mínimo de conforto material. Tinha medo de um futuro em que eu só teria dinheiro para um hotel Vitóri, nas redondezas de uma rodoviária, em cujas camas espreitar-me-ia o grande espírito maligno de meus sonhos, o qual, sentando-se sobre o meu peito, vociferaria até a minha completa loucura. Tinha medo, enfim, de todo aquele submundo e seus mordomos de rostos macilentos, suas prostitutas e suas risadas hostis.

Pela manhã, se não estou enganado, meu amigo ainda teve a pachorra de perguntar se eles poderiam servir o café-da-manhã. Responderam que não, que somente havia café e pão para eles mesmos. Café-da-manhã... Hunf! Como se eles tivessem condições de servir-me um café-da-manhã! Tudo o que eu queria era pegar minhas coisas, sair dali e procurar um hostel. A manhã trouxera-me nova coragem, jogara luz aos elementos taciturnos que haviam me atormentado. Já não temia os funcionários nem o hotel. Desprezava-os: eles e toda aquela gente que rastejava ao seu redor. Tinha plena consciência de que não pertencia a tudo aquilo, e, se algum dia decaísse, lutaria até a morte por sair.

Nenhum comentário: