segunda-feira, 9 de abril de 2012

Sobre as boas maneiras VII

Quando tentei falar sobre as boas maneiras, vi-me forçado a pensar sobre o que era a sociedade, que espécie de comportamento exige e que fins lhes são próprios. Ao longo de minha prosa, porém, me perdi, e observo que a sociedade a que geralmente me referia acabou por se tornar algo bastante estranho à maioria de meus contemporâneos, e que as boas maneiras, que não são tudo o que há na sociedade, deixaram-se transformar no único estuário possível de suas ações. Se foi com muita dificuldade que fiz assomar a sociedade de meu entorno, a nossa velha e estimada sociedade que, embora velha, não pode ser remontada a desde sempre, não o fiz por um ingênuo saudosismo, mas por um instinto de preservação. É provável que tudo o que eu tenha dito ou venha a dizer torne-se posteriormente apenas uma busca inútil, uma busca em voga e que se tornará motivo de desprezo a medida que se vulgarize. Mas creio ter razão suficiente, senão ao meu modo, ao menos como me verão.

Se me ancoro nas boas maneiras, é porque nelas encontro a dignidade esquecida, a dignidade esquiva em cada grito de comerciante e em perguntas embaraçosas tanto de empregados como de empregadores. Desgasta-me, consome-me a alma que um qualquer ouse ter a pretensão de conhecer meu íntimo. O que venho a fazer, por que o fazer, o que sinto e por que sinto são assuntos pertinentes tão somente a mim. Se algum dia achar necessário contá-los, eu, e somente eu poderei encontrar a ocasião. Que meramente insinuem que eu deva revelar o que pertence somente a mim soa-me como grande ofensa à qual jamais perdoarei. Tomem-me um cumprimento, um aceno de cabeça, um comentário sobre o tempo e sobre o presidente da república, mas não queiram ir além disso sem o meu consentimento. Não estou ignorando os círculos de amizade e a possibilidade de criá-los, mas apena rejeito que isso seja imposto. Atirem-me na miséria se o quiserem, mas meu coração não é contêiner de lixo para pequenos empresários e vendedores de roupa ficarem vasculhando.

Eis aqui as boas maneiras. Entendo que a maioria das pessoas as tomem como encenações-opressoras-do-indivíduo, mas a maior opressão está em fazer revelar, e não em ser obrigado a ocultar o íntimo. Querem-no porque sabem suas possibilidades, a utilidade de conhecê-lo e controlá-lo. Há uma grande diferença entre o dever de dar bom dia e o dever de desejar bom dia, e enquanto o primeiro exige apenas um gesto formal, o segundo não se opera senão sob uma transformação cara entre o que se quer e o que se deve querer. Acusam os cortesãos de ocultar seus verdadeiros sentimentos, mas não percebem que assim fazendo preservam e mantêm a um só tempo o espaço de coesão entre os indivíduos e os indivíduos mesmos. Se uma relação deverá ser levada a um nível maior de intimidade, essa é uma decisão que cabe a cada um em particular. Aliás, meramente permitir-se mostrar em lágrimas perante o Grande Público parece-me um ato vil, uma ofensa como se me obrigassem a assistir a uma operação de vísceras, estirando-as sanguinolentas e brilhantes ante minha surpresa e confusão. Pois se reconheço dignidade em mim, sou obrigado a estender a meus semelhantes, e vê-los atordoados no chão do chiqueiro é como se eu mesmo também estivesse sendo denegrido.

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