quarta-feira, 4 de abril de 2012

Sobre as boas maneiras V

Alguns dirão que tal e tal pessoa agiu com dignidade, ou que tal e tal pessoa respondeu dignamente a uma pergunta, o que nada significa senão que se comportou de maneira apropriada: nem mais, pois que não se há de esperar que alguém aja apropriadamente supondo-se mais do que realmente é; nem menos, pois do contrário significaria humilhação indevida; mas justamente, conforme sua condição. Mas o que significa agir com propriedade? Não significará, certamente, o mesmo que dizer que determinado animal agiu conforme  a sua natureza, ou que determinado elemento químico respondeu a certa substância conforme o esperado. Agir de maneira apropriada significa mais do que responder à sua natureza, pois a sociedade não toleraria que se desse licença aos menores instintos. Tampouco poderá significar agir de maneira útil, não ao menos no sentido que se costuma dizer, pois comportar-se com propriedade não conduzirá a fim algum senão à própria estabilização da sociedade.

O que é então? Se agir inapropriadamente não significa uma mera ação contrária às expectativas, mas uma ação valorada negativamente, agir apropriadamente será a ação positivamente valorada. Nem sempre aquilo que não se espera é inapropriado, mas apropriado será até mesmo aquilo a que se chama de agir extraordinariamente bem, pois aquilo que é extraordinariamente bom não poderá ser ruim. Mas bom perante quem? Se se estivesse falando de agir piamente, bom será perante Deus. Se se fala de boas maneiras, boas serão as maneiras perante a sociedade. E quem é essa sociedade? Não se trata do ambiente familiar, nem dos amigos íntimos, mas daquele grupo mais ou menos homogêneo de pessoas que circulam à nossa volta, e nós à sua, sem que jamais queiram penetrar em nossa intimidade. É claro, entretanto, que o fato de que se age perante a sociedade não significa que as boas maneiras inexistam no ambiente familiar ou entre amigos, mas somente que seu referencial último é a sociedade. Quero dizer, ser apropriado entre amigos não significa que tal será considerado igualmente perante a sociedade, mas nada impede que as maneiras adequadas em sociedade da mesma forma sejam entre amigos.

Já disse há pouco que as boas maneiras não conduzem a fim algum a não ser à sociedade mesma. Isso porque o socialmente bom será a renúncia a qualquer movimento. Ninguém que aja com boas maneiras poderá seriamente pretender o rompimento de qualquer ordem, mas, ao contrário, verá que as boas maneiras fazem com que tudo se acomode como deveria ser. Não há glória aqui, não há conquista, e quando se fala assim, é apenas no sentido metafórico. Glórias, feitos, façanhas, tudo isso é uma linguagem mais própria de políticos e militares, mas que ganha uma coloração meramente divertida entre os cortesãos. E não poderia ser diferente. Enquanto os soldados marcham e flanqueiam, enquanto os diplomatas afastam o cano de uma arma com as pontas dos dedos, nos salões de toda a sociedade fulguram as taças e os coquetéis, e quase verdade alguma é dita, e quase objetivo algum é atingido, mas apenas um espaço de coesão entre aqueles que se veem, se aceitam, mas que não estão dispostos a ir mais longe do que isso. E aqui descansa toda a dignidade social a que todos almejam e a que todos devem encontrar.

Agir dignamente e, portanto, de maneira apropriada, é fazer-se ver perante a sociedade de forma valiosa, pois que em conformidade com suas expectativas ou, se de uma dignidade extraordinária, acima. Contudo, mesmo aqui não se disse tudo. Como será possível que alguém aja em conformidade e ao mesmo tempo de maneira extraordinária perante a sociedade? Se chamamos de ordinário agir adequadamente, e se a isso podemos chamar de dignidade, o extraordinário fugirá necessariamente ao padrão. E como algo que extrapola os protocolos sociais poderá ser digno da sociedade? A resposta, ao que me parece, só pode residir no seguinte: quando se chama de digno o agir extraordinário, não se está valorando positivamente algo novo, pois o novo é audácia e foge necessariamente aos protocolos sociais. Ao contrário, chamar de digno o extraordinário é fazer reconhecer neste o que já existia de intrínseco entre as normas de conduta, mas cuja conclusão poucos são capazes de levar, seja porque isso requer inteligência, seja porque exige uma qualidade moral incomum.

Tal como um músico talentoso explora as virtudes de uma flauta sem a destruir, aquele com qualidades incomuns saberá fazer-se notável na sociedade sem que para tanto tenha agido com insolência. Pois que comportar-se extraordinariamente bem não significa comportar-se inadequadamente, mas antes saber fazer-se notável apoiando-se na ordem e no consentido. Mas o que exatamente separa aqueles que agem adequadamente e de certa forma se ofuscam, daqueles que, sabendo ir além, fazem-se brilhantes e dignos? E, ainda, o que faz distinguir os que agem com superioridade dos que agem com subversão e audácia? É isso aproximar-se do que tanto chamam de hipocrisia da sociedade? Tais limites parecem ser mesmo muito acidentais, e deve ter-se em conta que a sociedade mesma é um espaço de encontros, não só de pessoas, mas também de ideias e atitudes, intenções muito mais profundas do que as meras formalidades. Tentar compreender de antemão o que é adequado, o que é extraordinariamente adequado e o que é inadequado, senão impossível, exige uma análise de cada situação.

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