quarta-feira, 28 de março de 2012

Sobre as boas maneiras IV

Quando se diz que alguém possui boas maneiras, não está se referindo a uma qualidade excepcional, a um eclipse de talentos e encantos, mas a uma harmonia de gestos e palavras, uma constância de entonação e de humor que não precipite os demais em sua própria pessoa. Quero dizer, não são nem a frieza histérica com que se fantasia de um inglês vitoriano, nem a cordialidade emotiva de um russo glutão; não são a exaltação de virtudes, nem o acanhamento completo, pois antes alguém que se conduza com boas maneiras tenderá a criar um espaço de conforto e amenidades. São, como já se me indicava anteriormente, intermediações entre as pessoas, acomodações gesticuladas e bem ditas que possam indicar a cada coisa um lugar justo e seguro. E é por isso que sua perfeição mede-se em termos de adequabilidade, como, por exemplo, ao se dizer que tal assunto é próprio ou impróprio à mesa, ou que tal atitude não convém a um jovem.

Mas, ora, isso não leva a uma assunção de papéis, de representações, de encaixes e estojos? Sim, é verdade. Ter boas maneiras significa agir e falar adequadamente em determinado espaço, perante determinadas pessoas e levando em conta sua própria condição. Um rei deverá falar como um rei, um político como um político, e um político deverá saber quando não ser político e quando sim. Por outro lado, se as boas maneiras tendem a definir estados e ações, seja lá com relação a que valores, elas também podem possuir um núcleo central que seja adequado a todos e em todos os lugares. Pois se é verdade que tal comportamento apenas caberá aqui e lá, e se é verdade que as boas maneiras podem conduzir os espaços ao conforto tão bem quanto ao enrijecimento, na medida em que cristalizam os atos e as reações em agradabilidades e jogos de mesuras, há nelas um conjunto inquebrantável que, pela virtude de servir a todos, poderá conservar no espaço uma necessária liberdade contra esses excessos da sociedade.

E qual seria a essência de tais boas maneiras? Obviamente que da mais simples e da mais comum. Não por isso significará menor refinamento, pois não há boas maneiras sem refinamento, caso contrário se cairia no absurdo de poder atribuir-se boas maneiras aos primeiros instintos. Por exemplo, comer um frango de maneira adequada não pode ser medido através do modo mais fácil ou útil, mas através de sua adequação a determinados valores: se se valoriza a parcimônia, não deverá ser comido demonstrando-se demasiado apetite. Se será com as mãos ou com talheres, já isso é uma questão que considero mais contingente. Porém, as boas maneiras nunca significarão outra coisa senão determinado refinamento, e o meio de buscá-lo não se resumirá a um somente. Logo, ter em vista boas maneiras em um núcleo que atenda a todos não dispensará refinamento, mas significará apenas um código mais amplamente aceito, coisa que não acontece senão a um número bem restrito.

Mas observo que a confusão apenas cresceu. Será realmente possível que exista? Quero dizer, será possível que exista uma etiqueta que possa ser usada por todos e em todos os lugares? Ou será que  um sacerdote deverá comportar-se como um sacerdote e nada mais além? Parece-me que não. Parece-me, aliás, que a chave da questão, embora não a responda, está no fato de que as pessoas não podem reduzir-se a seus personagens sociais, caso contrário, já não funcionariam as boas maneiras como muros, mas seriam elas mesmas o tudo. Devem, portanto, existir em um modo reduzido e simples, e devem ser de tal efeito que permitam ora ou outra a sua transgressão. Pois as boas maneiras não são o ponto em si do mundo, mas antes seus contornos, suas guirlandas e seu passeio à loja de flores. Não almejam o céu, mas tampouco dele se distanciam, e se seria insensato pensar-se em fazer delas todo o objeto de sua vida, mais ainda seria dispensá-las, pois espaço social algum sobreviveria se todos se pusessem a agir da maneira mais confusa possível.

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