terça-feira, 27 de março de 2012

Sobre as boas maneiras III

Já é a terceira vez que tento levar o assunto, e a essa altura deveria estar-me perguntando o que são as boas maneiras, mas não farei isso senão em outra oportunidade. Por ora, continuarei a conduzir-me estreitamente, circular e sem nunca de fato atingir o essencial. E nada mais adequado do que conduzir-se assim em se tratando de boas maneiras. Afinal, quando se faz uma cortesia, uma genuflexão, uma reverência, não estamos pretendendo outra coisa senão deslizar delicadamente ao redor de um ponto sem nunca nele cair.

Mas vejo que estou passando do horário. O que tão decididamente me trouxe foi a recordação do vendedor da loja de tênis que insistentemente me tocava no ombro. Sabe Deus de onde ele veio, mas me parece bastante desagradável ser forçado à intimidade com alguém por meio de contato físico, ainda mais em se tratando de uma relação puramente de comércio. Meu pai pode até tê-lo achado simpático, mas ele não me engana.

Talvez eu até devesse perdoá-lo pelo incômodo, pois sei que é uma mão invisível que o força a degradar-se perante os demais, concedendo lisonjas a situações evidentemente banais e exaltando a dignidade de um ambulante qualquer. Porém, se é de fato uma mão invisível, digamos então que ele força essa cordialidade justamente porque as pessoas gostam disso, porque sabe que assim elas comprarão e que se acaso agisse de outra maneira se sentiriam ofendidas.

Pois bem, faço-lhe essa indulgência, mas apenas para estender meu julgamento a toda a sociedade. Pois se de fato em geral se pensa que é adequado, ou melhor, desejável que um vendedor dê-se a liberdade de tocar alguém no ombro, puxando para si o seu cliente como seu mais habitual amigo, creio que devo fazer minhas objeções de porque devemos querer uma postura diferente. Vou tentar ser bastante breve, pois a verdade é que me ocorrem inúmeras.

Em primeiro lugar, eu chamo a atenção para a inadequação do âmbito. Uma relação entre vendedor e comprador não precisa, obviamente, ser a mais fria possível, mas acho que ninguém realmente está disposto a abrir seu coração no balcão de uma loja. Se existe uma coisa que nenhuma cordialidade do mundo conseguirá atingir é o coração. Pois o coração é justamente o que as boas maneiras tentam contornar e evitar, e não será num jogo de compra e venda que isso será diferente.

Desde a perspectiva do vendedor, parece-me igualmente inadequado que o comprador, e não mais ou tão somente o vendedor, exija dele essa afeição. Se não se pode exigir do comprador que exponha o coração, do mesmo modo o vendedor não deverá expor o seu. Forçar sentimentos é romper a fina casca que nos protege do mundo, e a degradação é verdadeira em ambos os polos, a não ser que alguém me prove que possa haver uma relação que não envolva no mínimo dois pontos.

Em segundo lugar, considero que as verdadeiras intenções, os desejos secretos, a vontade última e recôndita de toda pessoa não podem ser transpostas ao mundo sem mediações adequadas. E uma dessas mediações é o que nós chamamos de boas maneiras. O que um vendedor faz ao tocar seu ombro e chamá-lo à amizade, embora possa ser considerado por muitos como simpatia, é corromper essa mediação e manipular-lhe a vontade.

Pois certamente ele não deseja sua amizade, nem mesmo tenta criar um espaço agradável de convivência, mas tem como fim último a venda de um tênis, de um aparelho televisor, de um serviço de telefonia. As boas maneiras, porém, não são, creio eu, artifícios que sirvam à vontade de um único alguém. Algo tão antigo não pode ser identificado como uma armadilha. Ao contrário, as boas maneiras são, ao que parece, mediações adequadas para que todos possam mover-se sem se expor.

E não há dúvida de que ele poderia ter agido de modo diverso. Há maneira certa para tudo nessa vida, e, nessa situação, não era tratar-me como se fosse seu amigo, pois eu nem o conhecia e tampouco buscava amizade. Antes houvesse se limitado a ser gentil, indicando-me o produto e respondendo em exatos termos, e não tentando comover-me à compra, mas dignamente esperando que a situação por si só revelasse sua necessidade.

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