terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Mas - oh - não vá ainda

Mas - oh - não vá ainda. Tal qual a condessa de Báthory, percebo que suas lágrimas ao molhar-me rejuvenescem a pele. E conta-me - retenho-te - a tua triste história, que de nossos defeitos não nos envergonharemos. Mais além - não vês? - desta janela, entre pomares de neve eu também cantei. E calvos senhores então me olhavam, e de meus sapatos enlameados ralhavam desde o pórtico até as escadarias que ascendiam ao meu quarto. E não era eu que limparia as pegadas; em tais templos, seres como nós somos mais do que espíritos, pois até mesmo os espíritos um dia neste mundo de um esfregão estiveram ocupados. Nossa condição é maior e mais difícil de entender. Somos, talvez, canalhas, e nessa cadeira em que te sentas sou obrigado a ver senão igualmente um canalha. Há algo de madeira em nós, não ossos; de palha sob estes panos, não carne. E em nossos olhos, algo opaco, como se em seu lugar houvessem posto cascas de noz. É assim que talvez nos vejam. Mas, neste camarim, deles estamos seguros, e por isso não deixa de esvaziar-te essas sombras movediças do peito: somos como naus antigas, anacrônicas, bruxuleando entre padarias e salas de aula. Não temos fim: que somos? Somos um pente, um banho. Se entramos em um supermercado, somos seus corredores, seus carrinhos vazios, o estrépito agourento de quando se encaixam. Se lemos algo, sua história absorve-nos por completo. É necessário que nos transformemos em arcos e pilastras antes que nos digam que deste Reino não poderemos beber. Não temos existência e no mundo nos dissolvemos. Mas - oh - não pare de teu pranto. Contar-te-ei ainda coisas mais tristes, histórias de soldados, de moços jovens que morrem em gaiolas, de moças pequenas abandonadas no ralo da pia; de países assolados pela desesperança e colinas em chamas, de florestas onde sempre é outono e onde cachorros farejam por coelhos que há muito foram extintos. Cutucar-te-ei até que tuas lágrimas cheguem ao fim, e de ti nada mais reste. Ouves esse barulho lá fora? Estão lavando nossas culpas; seus esfregões trabalham incansavelmente; estão jogando baldes de água - ou mais bem ácido - sobre nossas pegadas. Nada disso que fazemos é necessário. Para quê? De nossa beleza então fazemos nossa glória. Vês nossos rostos no espelho da penteadeira? É terrível, eu sei. Estamos cada vez mais belos. Ah, sim! É horrível aquilo que nos reserva a existência inútil. Mas não se preocupe: eu sustentarei o teu rosto desfeito em minhas mãos delgadas e frias e, sem dizer-nos palavra alguma, tudo cessará. Então, quando irromperem por esta porta, surpreender-se-ão por não mais encontrar-nos. Em nossos lugares, verão pássaros empalhados, de plumas coloridas e olhos de um brilho que, sem deixar de ser bem um brilho, aos seus olhos afigurar-se-iam tristemente baços. E eles mexerão em nossas coisas, em nossos baús, brincarão com nossos escritos e nossas roupas finas: nós ainda poderemos assisti-los. Mas não se preocupe, pois até mesmo isso terá seu fim.

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