terça-feira, 19 de outubro de 2010

Roldanas, apenas

Vim aqui apenas para conciliar-me. Gostaria de mostrar que, por trás dessa máscara de pó-de-arroz e debaixo desse chapéu de plumas, esconde-se um humilde ser humano pronto a montar na frente de sua propriedade uma fila do sopão, acendendo nos tambores de lixo dos necessitados uma ardorosa chama da caridade e dando a todos, sem olhar a quem, uma bela caneca de legumes e carne. Deixo a frente de combate e assumo meu lugar no mundo mais uma vez, para dizer a todos sobre "as terras por onde andei, e os amigos que lá deixei". Abro então um grosso volume da estante - não que precise estar algo escrito, mas apenas enquanto uma maneira de abrir um livro suspirando e relaxando a musculatura das costas no estofado - e chamo para mais perto minha caneca de chocolate-quente. É preciso deixar os rosnados de lado, ao menos por um tempo, e esquecer o olhar nas fagulhas que ascendem em estrépitos da lareira, pois o mundo - eu sei, vai ser um choque - não é aquilo que eu disse. Bem é verdade que o mundo supra-sensível tem seus encantos, e que deixar-se seduzir pela plano das estruturas lógico-normativas é tão fácil quando não se tem que preocupar-se com o objeto de carne e osso que ficou para trás no processo objetivo de intelecção. Porém, meus irmãos, é como se o real morresse um pouco cada vez que se avança nessa pureza de pensar, e morrendo o mundo, perece o pensamento, e todas as terras que ele busca atingir afundam-se igualmente no horizonte das categorias abstratas.

Eu havia dito que nada mais inútil que a caridade. Sim, em certo sentido, mas nada mais vivo e belo que os pequenos gestos que tentam manter estáveis os pilares de nossa civilização, como se fossem úteis roldanas a tirar a sobrecarga por alguns instantes. Pois, embora meras roldanas, são roldanas, e fazem mover benfazejas os corações daqueles privados de todo o esplendor do Ocidente, quando então uma pequena parte de suas sombrias figuras são resgatadas da lama e trazidas à tona [para depois novamente naufragarem mal viram os voluntários as costas]. Roldanas podem parecer insignificantes diante de toda a enorme engrenagem. Mas é verdade que roldanas, apesar de meras roldanas, são muito bonitas e úteis, pois distribuem peso e aliviam a dor do trabalho. Lembro-me agora de um cenário do jogo do Pato Donald (que por sinal era em vários pontos aterrorizador, sombrio, místico e instigante), onde você tinha que conduzir o personagem através de varais, apoiando-se em roldanas e deslizando até o lado oposto. Ao fundo havia um cenário perturbante de uma cidade de tijolos alaranjados em um entardecer. Era muito bonito e ao mesmo tempo... qual é a palavra? Desolador, como todo fim de tarde. Enfim, roldanas são belas em aspecto e função, assim como pode a caridade ser, pois bondade também é beleza e razão, quero dizer, senão ao menos conversíveis entre si, apóiam-se como condições de existência. Pois certas coisas não são possíveis de valorar-se pelos seus efetivos resultados, mas aquilo que lhes deu origem já vale por si mesmo, e indica que as coisas existem e acontecem não importa o aproveitamento que se lhes possa tirar. Caridade já vale por aquilo que é, independentemente de quão fútil e efêmero seja seu resultado.

Dentre outras mentiras e veleidades que me esqueci enquanto lia esse livro imaginário que eu tirei, mas que, sem dúvida, mancham igualmente meu semblante. Apenas para dizer que eu deposito mais confiança no que os outros falam do que em minhas próprias palrações. Bom, na verdade somente em alguns, evidentemente, nos quais deponho o dever de corrigir-me, pois sei que detêm a tão desejável ilustração pela qual exponho o meu pensamento. Mas o que estou a dizer! Não devo satisfações de meus negócios! [joga a a caneca de chocolate-quente na cara da anfitriã e começa a dançar ao som de Gipsy. Na verdade, todos começam a dançar].

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