A sala estava repleta de cavalheiros altos e respeitáveis, estirados em seus pufes e em visível estado de tensão diante do senhor que deslizava pelo piano. Profundamente emocionado com sua música, ele agitava-se no banquinho como um desses indigentes quando mergulhados em uma lata de lixo, sem notar o choque que causava aos demais presentes. Os ponteiros do relógio pareciam amolecer por trás do vidro, e eu via horrorizado alguns senhores remexerem-se desconfortáveis nos estofados - mas isso era devido, depois ponderei, às migalhas de torradas que eles comeram pela tarde. Chevalier Camille Saint-Saëns, pressionando e fazendo girar constantemente uma moedinha entre os dedos, deixou-a escapar. A moedinha rolou ruidosamente pelo piso de madeira até os sapatos do pianista, os quais se contorciam a cada nota mais alta que se fazia estalar. Deus, alguém tinha escondido uma criança dentro do piano e ninguém me contou? - pensava com meus botões, que eram muitos e brilhavam de um jeito especialmente bonito. O que era até provável, pois não via Henry desde o dia anterior. Mas, enfim, após um último estrépito de teclas e pedais, terminava, finalmente, sua série, voltando-se para os demais presentes em ingênua expectativa do acolhimento de seus companheiros: “Então?...”, disse girando o banquinho e esfregando as mãos suadas uma sobre a outra; os olhos úmidos fixando de um rosto a outro, que o miravam mudos e cheios de náusea. Ora, o que espera ainda esse parvo? - pensei, olhando-o de cima a baixo e cuidando para que eu parasse de tremer de ódio daquela patética cena que... "Uh!", deixei escapar um tanto alto. Em vão tentei conter a minha exclamação pondo a mão sobre a boca. Notei, então, que usava uma gravata enorme e amarela. Até isso? - pensei escandalizado. Piotr Ilitch Tchaikóvsky coçou seu crânio calvo e deslizou os olhos até a janela. O silêncio aprofundava-se cada vez mais, e nem mesmo Johann Strauss II, outrora alegre e fazendo zombarias com os cachinhos de Wolfgang Amadeus Mozart, conseguia dizer uma palavra sequer para descontrair. Wagner deu umas tossidinhas secas, fazendo saltar uns centímetros a sua xícara sobre o pires. Mas isso não importa, pois ele sempre foi um pouco tísico - ou seria Vivaldi? Alguns pareciam ter se esquecido de que a pouco comiam empadinhas, e olhavam estarrecidos para o pianista, com a comida mastigada derretendo na boca e as taças firmemente presas nos dedos; ninguém ousava levá-las aos lábios ou fazer um movimento sequer com os maxilares. Haydn mirava constantemente para a porta de saída, contraindo os músculos das pernas como quem, ao menor sinal, dispararia correndo dali. Mas ninguém portava uma pistola, e ele permaneceu ali mesmo onde estava. Enfim, estava tudo acabado. Era o fim da reunião que eu, com tanto esforço, havia conseguido conduzir tão bem, e que agora terminava daquela forma tão desagradável. Vergonha, vergonha, murmurava escondendo o rosto em minhas palmas. Olhei, então, para Beethoven, sentado ao meu lado e tendo estranhos espasmos com as pernas, procurando dizer mudamente o quanto eu estava envergonhado com aquilo. Mas a mesinha de centro e os copinhos de licor de cereja começaram a tremer mais forte com seus espasmos, e temi que a tragédia piorasse ainda mais. Preciso terminar isto da forma mais rápida e digna possível, pensei eu, fixando profundamente meu olhar no retrato de vovô que, vestido em um casaco de zibelina e botas altas ao lado de um cavalo, encarava-me severamente do alto de seu título de visconde. Meu constrangimento era absoluto, e, se não fosse pelo nome que portava, ter-me-ia arrebatado para cima dele naquele momento. Mas controlei meus impulsos e levantei-me, então, com estudada polidez, limpando os restos de patê dos lábios e armando um sorriso. Disse o que eu tinha para lhe dizer:
"- Oh, creio que o cavalheiro concluiu sua peça... Vamos, senhores, aplausos! – disse eu, batendo teatralmente três palmas de maneira esparsa e espalhafatosa, olhando para os demais que permaneciam sentados e imóveis. – Adorável, deveras. Certamente enlevado com a sua prodigiosa demonstração do funcionamento de uma garganta de um gato sendo esganado. Oh, quão agradecido não estou por transportar-me ao fantástico interior de uma fornalha ou máquina-de-lavar-roupa, seja lá como costuma chamar esses modernismos. Oh, não, para quê o fastio dos jardins geométricos franceses, os espaçosos salões, as escadarias livres e intermináveis por onde deslizam donzelas a sorrir, os vinhedos, os vitrais de místicas catedrais, os castelos dependurados em penhascos? Tsc! Oh, não! Você, não, Schoenberg, você é diferente. Você sabe o que é música... Agora, se não se importa, creio que tem outros afazeres a cumprir pela noite, e, se quiser, eu o acompanho até a porta de saída onde o cocheiro já deve estar esperando-o e... Oh! O que foi? Vai chorar? Hum? Vai chorar, vai?"
Desculpe se estou chocando, mas fato é que não suportei quando vi aquele rosto seboso pronto a desmanchar-se em pranto, e o que restava em mim de calma e honra desfez-se no ar com a rapidez de um relâmpago. Talvez a champanha tenha me subido demais à cabeça, eu não sei. Aquilo deixou-me fora de mim, e, em meu rompante de fúria, tomei o coquetel de camarões das mãos de Debussy e comecei a jogar os crustáceos contra Schoenberg, que, vagamente, tentava defender-se pondo os braços em escudo ante o rosto e corpo.
"- O que você acha disso agora, hum? Heim? Heim, seu chorão? – dizia eu atingindo-lhe um camarão bem no olho esquerdo. – “Música inovadora”, você disse! Que diabos foi isso!? E agora? Como fico eu? Eu contei a todos que tinha descoberto algo, e agora? Heim? Heim? Quer que eu fique com pena de você? Expressionismo alemão... Pfff!"
Foi então que, quando eu estava prestes a atirar uma cadeira, fui atingido na nuca por um golpe de garrafa, fazendo-me tombar sobre o tapete – sei disso porque me lembro de ouvir os cacos estilhaçando-se. Creio ter desmaiado a partir daí. Oh, não! Não me orgulho nem um pouco disso; sei que me excedi. Mas ter ouvido Schoenberg tocando aquilo bem no momento mais importante de minha vida social tirou-me do sério, entende?
- Você está pondo em dúvida a música de um dos maiores compositores do séc. XX?
- Oh, não, meu caro! Longe de mim! Afinal, quem sou eu? Eu apenas sei cara-crachá-cara-crachá...
- Espero que o senhor esteja ciente de que...
- Cara-crachá-cara-crachá...
- Eu já entendi, senhor... Agora se me permite...
- Onde está o meu tutor? Alguém pagou a minha fiança?
- Não exatamente... Mas lhe trouxeram bolo de frutas!
- Esplêndido!
*em prol de finais felizes.
"- Oh, creio que o cavalheiro concluiu sua peça... Vamos, senhores, aplausos! – disse eu, batendo teatralmente três palmas de maneira esparsa e espalhafatosa, olhando para os demais que permaneciam sentados e imóveis. – Adorável, deveras. Certamente enlevado com a sua prodigiosa demonstração do funcionamento de uma garganta de um gato sendo esganado. Oh, quão agradecido não estou por transportar-me ao fantástico interior de uma fornalha ou máquina-de-lavar-roupa, seja lá como costuma chamar esses modernismos. Oh, não, para quê o fastio dos jardins geométricos franceses, os espaçosos salões, as escadarias livres e intermináveis por onde deslizam donzelas a sorrir, os vinhedos, os vitrais de místicas catedrais, os castelos dependurados em penhascos? Tsc! Oh, não! Você, não, Schoenberg, você é diferente. Você sabe o que é música... Agora, se não se importa, creio que tem outros afazeres a cumprir pela noite, e, se quiser, eu o acompanho até a porta de saída onde o cocheiro já deve estar esperando-o e... Oh! O que foi? Vai chorar? Hum? Vai chorar, vai?"
Desculpe se estou chocando, mas fato é que não suportei quando vi aquele rosto seboso pronto a desmanchar-se em pranto, e o que restava em mim de calma e honra desfez-se no ar com a rapidez de um relâmpago. Talvez a champanha tenha me subido demais à cabeça, eu não sei. Aquilo deixou-me fora de mim, e, em meu rompante de fúria, tomei o coquetel de camarões das mãos de Debussy e comecei a jogar os crustáceos contra Schoenberg, que, vagamente, tentava defender-se pondo os braços em escudo ante o rosto e corpo.
"- O que você acha disso agora, hum? Heim? Heim, seu chorão? – dizia eu atingindo-lhe um camarão bem no olho esquerdo. – “Música inovadora”, você disse! Que diabos foi isso!? E agora? Como fico eu? Eu contei a todos que tinha descoberto algo, e agora? Heim? Heim? Quer que eu fique com pena de você? Expressionismo alemão... Pfff!"
Foi então que, quando eu estava prestes a atirar uma cadeira, fui atingido na nuca por um golpe de garrafa, fazendo-me tombar sobre o tapete – sei disso porque me lembro de ouvir os cacos estilhaçando-se. Creio ter desmaiado a partir daí. Oh, não! Não me orgulho nem um pouco disso; sei que me excedi. Mas ter ouvido Schoenberg tocando aquilo bem no momento mais importante de minha vida social tirou-me do sério, entende?
- Você está pondo em dúvida a música de um dos maiores compositores do séc. XX?
- Oh, não, meu caro! Longe de mim! Afinal, quem sou eu? Eu apenas sei cara-crachá-cara-crachá...
- Espero que o senhor esteja ciente de que...
- Cara-crachá-cara-crachá...
- Eu já entendi, senhor... Agora se me permite...
- Onde está o meu tutor? Alguém pagou a minha fiança?
- Não exatamente... Mas lhe trouxeram bolo de frutas!
- Esplêndido!
*em prol de finais felizes.
2 comentários:
tomar uma fresca ao final da tarde faria um bem, nesses dias tao quentes...
Uma vez, fui a uma festa em torno do piano. Os jovens pianistas tocavam composições próprias. Todos pediam para que J*** tocasse uma composição de seu músico favorito, e ele falava:não, não...ninguém gosta disso. O impasse durou até que um dos convidados, aproveitando a indecisão, sentou-se pomposamente ao piano. Todos prenderam a respiração, todos os olhares se voltaram a ele. E ele fechou o piano. Isso mesmo, em cima das mãos das crianças que tem fome!
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