quinta-feira, 30 de julho de 2009

Fragmento de conversa V

Abre cortinas.
Acordo. Faz uma linda manhã (chuvosa e fria). Ainda sonolento, deparo-me com uma bandeja cheia de comprimidos, xaropes, pílulas de todos os tamanhos e cores. Abro os braços em plena exclamação de alegria, saudando o dia que chega. Oba! Café da manhã! Nham, nham...

Bom, cansado de entupir-me de remédios, finalmente resolvi ir ao médico para ver se eu sofria da lendária gripe suína. Dor, febre, tosse... Não agüentava mais essa podridão. No consultório, após dizer às recepcionistas sobre meus sintomas, perguntaram-me se eu havia tido contato com alguém de fora. Disse que não sabia, e logo me enfiaram uma máscara: meu mais novo acessório. Mas, fazendo o exame, descobri que não passava de um resfriado forte. Recomendou-me apenas uma injeção para dor e febre e... mais uma porção de remédios.

Fui, então, conduzido para uma sala, onde aguardaria ser furado. Mantive-me comportado, sentado em uma poltrona, enquanto evitava olhar os outros enfermos que padeciam de coisas que meu pudor não me permite dizer. Mas isto não pude conter, não conseguia parar de olhar: um rapaz com uma garrafa na mão, cortada ao meio, contendo um líquido vermelho (digo assim pois, não sei por que idiotice, imaginei que fosse iogurte). Aquilo era seu sangue que ele ia regurgitando aos poucos.

- Brigou? perguntou um menino gordo sentado a seu lado.
- Nem. Eu fiz cirurgia das amígdalas e da adenóide, faz uns dez dias, e não sei por que começou a soltar sangue.

Só rindo. Briga... (eu também cheguei a pensar que fosse). Mas, ah!, meus caros, o rapaz então, de uma só vez, encheu a garrafinha inteira. Até então não passavam de umas cuspidinhas, mas daí vieram vômitos de sangue violentos e, no susto, acabou derrubando no chão todo. Sangue coagulado aos baldes. Eu imaginava que depois de perder tanto sangue a pessoa desmaiava... Enfim, após a seringada, levantei-me, dei um pulinho pra passar por cima da sujeira (upa!), e saí, levando comigo aquela cena sangrenta. Como será a sensação de escorregar no sangue?

A injeção não tardou a fazer efeito: a febre passou, não sinto mais dores nem tonturas... Com meu humor restabelecido, predispus-me a aprender coreografias de danças etéreas. Consegui até tirar a música da Sheila Mello da cabeça ("água/ tô virando água/ corredeira abaixo/ inundando o mundo..."). O flautista anônimo, que há duas semanas eu não ouvia, voltou a tocar sua musiquinha. Ah! e, também, após dias comendo maçãzinha, torradinha, chazinho, etc., dei-me ao prazer de comer pão com manteiga!... Babei. Enfim, a vida voltou a sorrir (a seu modo, claro). Ah!... aquele sangue...

"Vai correndo água/ tô virando água/ teu corpo suado!/ você me secando e eu virando água!" Bom, nem tudo é perfeito, né?
Fecha cortinas.

Fragmento de conversa IV

Abre cortinas.
Ah! Não posso me esquecer de um detalhe irônico: garoava. Quem estuda na UEM sabe que à noite ela é iluminada por lâmpadas amarelas, e sabe, ou deveria saber, o efeito mágico (*-*) causado pelos fachos de luz na chuva. Quem via aquilo até pensava que algo de bom aconteceria. Ai, que tolice... Mas então, tremia de ódio e desolação quando fiquei sabendo. Tão injusto! Tão desnecessário ter que passar por aquilo! Ah! E olha só que engraçado, para não dizer patético: quando descia a escada, vi que algo me escapava do bolso. Era uma nota de dois reais. Então o que me restava era dinheiro? Joguei com raiva no chão. Subindo o caminho de volta, percebi que me molhava. Só então me lembrei que tinha vindo com um guarda-chuva. Disso eu não podia me desfazer. Voltei correndo à sala em sua busca e, ao subir a escada, fiquei procurando com os olhos para ver se a pobre nota ainda continuava lá. Nem sinal, haviam sido rápidos. Com certeza encontrou um bolso mais amigo que o meu. Mas... permanece a dúvida: e se a nota ainda estivesse lá? Eu teria pegado de volta? Uma das coisas que sempre me atormentaram é a minha incapacidade em me manter estável nas atitudes. Parece que sempre se retorna ao estado inicial e nunca se avança... O que será que compraram com os dois reais?
Fecha cortinas.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Fragmento de conversa III

Abre cortinas.
O meu dicionário de bolso está todo se desfazendo: dez anos de uso. Vetusto! Precisava de um novo, um bonito, que me acompanhasse em meus passeios pela casa, ou pelos jardins (universitários)... Que deitasse e rolasse comigo na cama, no sofá, enquanto me jubilava nas páginas amareladas e empoeiradas de um livro que não é nem meu. Parti, então, disposto a arranjar um no sebo.
- Moço, onde ficam os dicionários?
Então ele me acompanhou, o funcionário, até onde ficavam. Mostrou-me enormes dicionários, ilustrados, capas grossas, dignas, dicionários colossais e caros.
- Ah..., sim, mas eu precisava um que fosse de bolso.
- Tem esses aqui, mas são mais pra iniciante, né?
Claro que depois dessa saí da loja carregando dois volumes: ares literários: passos decididos de quem não é um iniciante. Mas não levei nenhum dicionário.
Fecha cortinas.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Novelo

Abre cortinas.

Tomo-me por novelos
De lã azul éter
Os fios fosforescentes
Atando-me anelos
Entre confusos rumos

Percorro com meus dedos
Os fios frágeis elos
De recôndita mente
Buscando-os incertos
Embaraço de lumes

Fecha cortinas.

Prólogo

Abre cortinas.
As cenas ocorrem em uma módica cafeteria. Há uma mesa redonda e pessoas bebericando em suas xícaras, trajadas em suas devidas vestes garbosas. A calorosa conversa será interrompida de momento a momento para ouvir-se uma declamação qualquer. Cochichos aqui e acolá, comentários pertinentes ou não. O declamador, após a cena ou gafe, senta-se arquejante e trêmulo, encarando as caras de desprezo ou indiferença de seus companheiros. Peço apenas a compreensão necessária, pois não passam de amadores enfrentando seu pequeno público.
Fecha cortinas.