terça-feira, 27 de julho de 2010

Vossa vil impertinência

Agora, eu vou dizer... Se há uma coisa que me irrita (e olha que eu não sou de me irritar!!!) é a fascinação dos autores de nosso século (e do século anterior também, ora) pelas notas de rodapé. Eu compreendo muito bem a sua utilidade; eu mesmo as uso com muito gosto, não tenho problemas quanto a isso, não sou hipócrita. Mas quando esses santos resolvem que as notas de rodapé são muito legais para serem utilizadas só de vez em quando... Daí eu quebro a taça, os pratos, derrubo a estante! Daí eu fecho o piano na mão das crianças-que-têm-fome! Queimo mesmo! Porque... Quem gosta quando o bendito põe metade do livro nessas desconcertantes notas, fazendo da sua concentração uma febre intermitente de leitura, quando muito bem aquelas nada concisas palavras poderiam ser inseridas no texto sem maiores problemas? E, por mais estranho que isso seja, constata-se que, quanto mais renome tem o autor, quanto maior é o seu conhecimento, precisão terminológica, finura de estilo, maiores são as notas de rodapé. E é por isso que eu nem me irrito tanto, afinal, o meu respeito e admiração se fazem de bigornas sobre a minha insana fúria de um ocioso estudante. Entretanto, há entidades pelas quais não alimento respeito ou admiração, nas quais posso deixar escorrer o meu ódio livremente, sem preocupar-me em estar apontando o canhão de blasfêmias contra alguém que não as mereça em virtude de seu talento.

Acontece, então, que algumas editoras simplesmente resolveram, a despeito de eu jamais haver manifestado a minha opinião, seja através de plebiscitos, seja através de manifestações pela paz social (ao gosto da OIT), que as notas de rodapé são um estorvo inútil quando localizadas no rodapé da página, e que os leitores, esses parvos ciclopes devoradores de suntuosos e profanos banquetes regados a muito vinho e brutalidade, simplesmente não se importam com elas. Quer dizer, para que sua existência se eles não as lêem de qualquer modo? Cabeças-de-vento, paradigmas da gelatina branca, lambedores de carimbo, os leitores só querem mesmo que a leitura flua o mais rápido possível sem a incômoda preocupação de estar deixando algo para trás. "Ora, tive uma brilhante idéia! - disse o editor com a camisa lambuzada de molho enquanto meneava entre o dedão e o mindinho uma coxa de frango. Por que não pôr as notas de roda pé, esses textos tão desnecessários aos nobres desígnios de nossos leitores, NO FINAL DO LIVRO, ONDE SUA VONTADE EM APURAR MELHOR AS IDÉIAS SEJA CONSTANTEMENTE ENFRAQUECIDA PELO DISPÊNDIO DE ENERGIA EM VASCULHÁ-LAS AO LONGO DE PÁGINAS?".

Se já era um incômodo ter que interromper o fluxo do texto para consultar a nota de rodapé, que estava ali mesmo, no final da página, bastando deslizar um tanto os olhos, imagine o tormento que é procurá-las lá no final do livro ou de um capítulo, nas remotas e inóspitas regiões guarnecidas por cães infernais e aves de rapina, circundadas por altos muros cobertos de urzes e outros espinheiros, onde o cantil de seu cérebro acabará esgotando-se antes de chegar ao seu objetivo, fazendo com que pereça na metade do percurso? Quer dizer, o autor transfere metade de suas idéias para as notas de roda pé, e a editora faz o quê? Põe-nas inacessíveis. Esconde. O que outrora eram vergéis acessíveis com um leve empurrão de seus portões, algumas editoras conseguiram transformar em verdadeiras terras ocultas, sobre as quais cantam-se lendas e recitam-se mitos. Deve ser vergonhoso fazer da nota de rodapé uma nota de rodapé, eu não sei... Enfim, é revoltante quando alguém toma as rédeas da situação sem você pedir, e ainda gruda um selo na sua testa com a degenerada intenção de facilitar a sua vida hipossuficiente. Eu disse: hipossuficiente.

PS: A Organização Internacional do Trabalho - OIT - tem como um de seus objetivos fundamentais a conquista da paz social.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Vilania

Eu, aqui, na décima taça de um vinho que eu nem sei o gosto, enquanto luto já débil e quase desfalecido para preservar as dilatadas e arruinadas pupilas dos primeiros raios de um sol que desflora vilmente o horizonte impudico de Veneza, fazendo um enorme esforço para abafar da mente aguda os pobres versos de um esteta que a pouco insistia em fazer-me vibrar tanto quanto ele os prazeres de uma vida que eu nem sei se algum dia foi possível, pergunto: já não basta? Não, eu não sou a vítima que você quer fazer de mim; eu mesmo degolo cordeiros e nem acho isso muito correto, mas cumpro fielmente um dever e um prazer em mim ensinado, com o qual vou  alimentando esse interminável cerimonial em que as pessoas pagam para ver e serem ouvidas, quando o melhor seria atirarem-se de vez em uma lata de lixo e fazer um favor a essa maltratada cidade. Quero dizer, já não é o suficiente aquilo que eu mesmo me faço passar, pousando de consorte em carros cujo funcionamento mecânico sequer me interessa, quanto mais me fascina, testemunhando sorrisos de gente feia, mas que por algum motivo acham-se importantes e indispensáveis para o movimento rotacional do planeta, tendo que relatar pela centésima vez o esplendor de viajar-se às terras insossas da Escandinávia, como se houvesse algo de glorioso ou heróico em encher a boca de dinheiro de alguns funcionários quando se está enjoado do verão meridional? Por favor... Vem cá, você acha mesmo que existe outra maneira de conjugar-se o verbo "humilhar" sem ser na voz reflexiva? Ninguém banca a ração diária de jornalistas medíocres para chegar em segundo lugar... Entenda, não há novidade que possa sair de uma moita que já não tenha me vindo o cheiro às narinas, tampouco existe algum chapéu ridículo que eu mesmo não o tenha tomado das mãos da estilista e desfilado pelas ruas infestadas de gente preguiçosa e agônica do próximo prato de sopão como se fosse o arauto de algum deus cômico. Quem traiu, com quem traiu, como, onde... Pouco me importa do chiclete grudado na sola de meu sapato se eu sei muito bem que aonde quer que eu flane com meus mais nobres pensamentos e emoções a barbárie me acompanhará arrastando seus trapos ranhentos pela lama da calçada a despeito de minhas tentativas em desvencilhar-me dessa maltrapilha atirando-lhe alguns centavos e um sanduíche de presunto. O que você quer pela sua história? Risadas eu não as tenho; há muito as empurrei em um vagão para dentro de uma mina abandonada, e, francamente, não sei dizer se já chegaram a algum tipo de fundo... Compaixão? A pouca que eu tenho eu guardo para mim e para o pianista do restaurante que, tenho de reconhecer, faz o que pode por não deslizar os dedos pelo teclado mais rápido do que podem acompanhar os cérebros abotoados da comida gordurosa que ali se engole. Só não arremesso moedas porque não quero fazer mais um símio. Mas não precisa ir embora. Fique aqui comigo. Tome dessa taça e aprecie - porque não há nada na sua vida que valha uma precipitação - a cidade acordar já empanturrada de uma faina que sequer começou e não tendo melhor panegírico sobre seus canais sinuosos e avermelhados do amanhecer do que o de gordos e velhos turistas atraídos pelos pacotes promocionais.

PS: É pra ler na voz e entonação de um vilão do nível de Odete Roitman, pufavô!

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Experimento com buracos-negros I

Agora eu lhes pergunto: o que acontece quando dobramos a malha espaço-tempo sobre si mesma? Acreditamos que a curiosidade humana desconhece barreiras, e, por tal, não devemos criar-lhe empecilhos. Muita literatura já foi gasta tentando imaginar as fantásticas experiências que tal fenômeno poderia proporcionar. Mas, hoje, estamos prestes a dar um passo mais além. Da mera hipótese, da vaga nuvem em que se deliciam os fãs de ficção científica, faremos brotar esse antigo sonho em uma realidade concreta e palpável bem ali, naquela área central de nosso laboratório, cuidadosamente preparada para suportar os terríveis efeitos de nosso experimento. Isso mesmo! Nós conseguimos e estamos prontos para testar o BurAcO-NeGro. Após meses de intenso estudo e trabalho, conseguimos criar uma máquina capaz de gerar, de forma artificial, pequenos buracos-negros que poderão conectar nossa realidade espaço-temporal a uma outra inimaginável, perdida em algum longínquo ponto do universo. Aviso, desde já, que o que faremos aqui não é nenhuma brincadeira, mas um experimento científico muito - mas muito mesmo - caro [risadas sacanas]. Portanto, tenham cuidado, leigos, e mantenham-se atrás da linha vermelha, pois os resultados podem ser catastróficos.

Em primeiro lugar, informo que o fato de trabalharmos com buracos-negros é devido ao nosso desconhecimento de outra maneira de deformar-se drasticamente a malha espaço-tempo de forma a fazê-la dobrar-se sobre si mesma como uma toalha qualquer. Sua espetacular concentração de massa em um ponto infinitesimal provocará o que chamamos de wormhole [ele quis dizer "buraco-de-minhoca"], fazendo com que a matéria viaje de um lugar ao outro em um curto espaço de tempo e... Bom, todos nós sabemos como os buracos-negros são **mágicos**, e temos absoluta certeza de que, quando ligarmos nossos geradores de energia citoplasmática (quântica, cibernética, como era mesmo?), o buraco-negro criará um portal autônomo e tangente à nossa dimensão, onde haverá simultaneamente a ocorrência de um fenômeno do passado e um do presente. Eu chamo isso de "dimensão passado-presente". Acho que maiores explicações serão desnecessárias. Peço apenas que apreciem o que deverá ser uma das mais fascinantes experiências que o ser humano já teve. Observem: vou ajustar os dispositivos de maneira que se crie um wormhole entre o ano de 75 d.C., na província romana da Judéia, e o centro comercial de Nova York. Ah! - sim -, queiram saudar a nossa convidada e voluntária especial, que conduzirá as relações da melhor forma com quem quer que surja no portal. Todos prontos? Sim? Então... ligar!

[Os geradores começam a funcionar espalhafatosamente, produzindo muitos ruídos, faíscas e fumaça. Uma enorme esfera é criada no centro do laboratório; inicialmente de intenso negro, começa a variar em muitas cores, até que começa a tomar definição, dando a ver a um mundo de coloração verde e de excêntricas formas. Surge, então, um gato alienígena de aspecto monstruoso no portal, lutando por escapar do campo magnético do wormhole aberto: "Huhuhumumamumamua! - gargalha o estranho felino de olhos cruéis e famintos de maldade. Finaaaalmente localizaaaaamos a posição da Teeeeerrrrra!!! Huhuhuhmuamua! Deixem-me saiiiirrrr! Deixem-me saiiiiiirrrrr! Preparem-se terráqueos, pois o seu fim está próóóóximo! Nossas trooop...Fiiiiisht! Miaaaaaar". O wormhole se fecha bruscamente sobre seu corpo delgado, provavelmente transformando-o em um espaguete de comprimento quase infinito].

Desculpem-me, deve ter havido algum erro. Vejamos... Ah! - sim -, sem querer a chave do painel havia escorregado para "mundos alienígenas hostis". Não se preocupem. Logo estará tudo resolvido. Um ajuste aqui, outro lá... Ahá! Pronto! Interligados o centro comercial de Nova York e a província de Judéia. Observem, meus pequenos! Observem!

[Os geradores começam a funcionar novamente. O portal se abre e por ele aparece um soldado romano caminhando calmamente ao longo de uma via orlada de oliveiras. Formas fantasmagóricas de nova-iorquinos começam a aparecer e caminham em sua direção: sem o ver. Ele, então, estaca assombrado com aquelas estranhas miragens, aprumando sua espada e escudo em posição de alerta. A voluntária, cheio de expectativas e retomando tudo aquilo que havia decorado, prende a respiração e adentra no portal:

- Ave, romano! Eu vim do fut...
- Tome isso, demônio! - grita chutando a terra e fazendo arremeçar uma nuvem de poeira contra o rosto da cientista. O romano larga a espada e o escudo no ar e lança-se aos tropeços colina abaixo.
- Aaaaah! Meus olhos! Meus olhos! Eles doem! Eu não enxergo a luz! Tirem-me daqui! Tirem-me daqui! Aaaaah!

O portal se fecha novamente. A cientista volta esfregando os olhos empanados de terra com as costas das mãos. Vários médicos acercam-se e levam-na às pressas para a ala hospitalar. O diretor abana a cabeça e volta-se novamente para o grupo de alunos, aliviando um longo suspiro pelas narinas].

Bom, acho que posso chamar isso de... incidente diplomático. Nossas técnicas, é claro, estão em fase de experimento. Talvez se tentássemos em uma época mais próxima, como os anos 60... De qualquer modo, deixo já avisado que todos os envolvidos com este projeto sabem dos riscos envolvidos, e assinaram, para tanto, um contrato onde declaram estar cientes e de acordo com as conseqüências que podem advir. Talvez tenhamos subestimado a capacidade dos antigos povos em lidar com o desconhecido e com o fabuloso. Apesar do ocorrido, não devemos desistir. Isso, é claro, são apenas algumas deficiências de nosso experimento que, aos poucos, iremos superar conforme formos aprendendo sobre a interessante reação das pessoas do pretérito. Como medida cautelar, todos vocês deverão permanecer de quarentena nos subterrâneos do laboratório, até que possamos certificar-nos de que estão saudáveis e livres de qualquer contaminação radioativa dos cosmos. Obrigado pela visita.