sexta-feira, 23 de julho de 2010

Vilania

Eu, aqui, na décima taça de um vinho que eu nem sei o gosto, enquanto luto já débil e quase desfalecido para preservar as dilatadas e arruinadas pupilas dos primeiros raios de um sol que desflora vilmente o horizonte impudico de Veneza, fazendo um enorme esforço para abafar da mente aguda os pobres versos de um esteta que a pouco insistia em fazer-me vibrar tanto quanto ele os prazeres de uma vida que eu nem sei se algum dia foi possível, pergunto: já não basta? Não, eu não sou a vítima que você quer fazer de mim; eu mesmo degolo cordeiros e nem acho isso muito correto, mas cumpro fielmente um dever e um prazer em mim ensinado, com o qual vou  alimentando esse interminável cerimonial em que as pessoas pagam para ver e serem ouvidas, quando o melhor seria atirarem-se de vez em uma lata de lixo e fazer um favor a essa maltratada cidade. Quero dizer, já não é o suficiente aquilo que eu mesmo me faço passar, pousando de consorte em carros cujo funcionamento mecânico sequer me interessa, quanto mais me fascina, testemunhando sorrisos de gente feia, mas que por algum motivo acham-se importantes e indispensáveis para o movimento rotacional do planeta, tendo que relatar pela centésima vez o esplendor de viajar-se às terras insossas da Escandinávia, como se houvesse algo de glorioso ou heróico em encher a boca de dinheiro de alguns funcionários quando se está enjoado do verão meridional? Por favor... Vem cá, você acha mesmo que existe outra maneira de conjugar-se o verbo "humilhar" sem ser na voz reflexiva? Ninguém banca a ração diária de jornalistas medíocres para chegar em segundo lugar... Entenda, não há novidade que possa sair de uma moita que já não tenha me vindo o cheiro às narinas, tampouco existe algum chapéu ridículo que eu mesmo não o tenha tomado das mãos da estilista e desfilado pelas ruas infestadas de gente preguiçosa e agônica do próximo prato de sopão como se fosse o arauto de algum deus cômico. Quem traiu, com quem traiu, como, onde... Pouco me importa do chiclete grudado na sola de meu sapato se eu sei muito bem que aonde quer que eu flane com meus mais nobres pensamentos e emoções a barbárie me acompanhará arrastando seus trapos ranhentos pela lama da calçada a despeito de minhas tentativas em desvencilhar-me dessa maltrapilha atirando-lhe alguns centavos e um sanduíche de presunto. O que você quer pela sua história? Risadas eu não as tenho; há muito as empurrei em um vagão para dentro de uma mina abandonada, e, francamente, não sei dizer se já chegaram a algum tipo de fundo... Compaixão? A pouca que eu tenho eu guardo para mim e para o pianista do restaurante que, tenho de reconhecer, faz o que pode por não deslizar os dedos pelo teclado mais rápido do que podem acompanhar os cérebros abotoados da comida gordurosa que ali se engole. Só não arremesso moedas porque não quero fazer mais um símio. Mas não precisa ir embora. Fique aqui comigo. Tome dessa taça e aprecie - porque não há nada na sua vida que valha uma precipitação - a cidade acordar já empanturrada de uma faina que sequer começou e não tendo melhor panegírico sobre seus canais sinuosos e avermelhados do amanhecer do que o de gordos e velhos turistas atraídos pelos pacotes promocionais.

PS: É pra ler na voz e entonação de um vilão do nível de Odete Roitman, pufavô!

Um comentário:

Nina. disse...

Eu gostei! E nem precisei da observação no post scriptum...