Após tantos sonhos de luxúria, resolvi narrar eu mesmo a minha história, quero dizer, expor as minhas percepções acerca de minha própria vida, o que nem sempre achei prudente, haja vista o risco que se corre em cair nas garras de gente fofoqueira ou mesmo até ser preso por alguma confissão indevida. Sim, as minhas histórias. Então pensam que somente vocês têm suas histórias? Sei que farão as objeções de costume, dirão que o máximo que eu poderia conhecer das esfinges, das pirâmides, dos castelos e dos palácios são as cópias plastificadas de alguma loja de fast-food. Mas, como eu estava dizendo, eu tenho sonhos de luxúria. Memoráveis? Gosto do termo “satisfatório”. Encantadoras? Eu diria que estão mais para o mundo do pequeno inefável.
Sim, eu visitei príncipes e cortes inteiras que haviam se instalado recentemente no vaso de orquídea. Vi rainhas e seus filhinhos reais refestelando-se em enormes banquetes à luz de milhares de lustres orvalhados. Vi cortejos e pompas, e eu mesmo tive a honra de presidir um torneio de cavalaria. Vi seu reino conhecer a glória e a decadência, até que foram finalmente dizimados por substâncias tóxicas e condições não propícias à reprodução de seu estilo de vida. As ruínas de suas casas e castelos agora dão espaço às raízes. Não há turistas nem peregrinos, apenas fantasmas perambulando por seus escombros.
Sim, eu estive presente quando o boneco do Jaspion foi eleito Favorito do Achocolatado após um acalorado concurso. Vi quando lhe entregaram a taça de leite achocolatado, e vi como minutos após ter bebido morreu por excesso de açúcar. Sim, eu vi o médico pegar-lhe nos pulsos e sentenciar em assombro que agora "esse homem está morto". Descemos seu caixão ao profundo jazigo e nunca mais tomamos leite com achocolatado. Durma em paz, Jaspion, eu disse espargindo folhas de laranjeira sobre o túmulo. Parti para a Floresta das Sombras e lá permaneci por dois ou três anos de luto, rememorando seus dias de glória enquanto as estações se revezavam em meus olhos baços.
Sim, eu visitei príncipes e cortes inteiras que haviam se instalado recentemente no vaso de orquídea. Vi rainhas e seus filhinhos reais refestelando-se em enormes banquetes à luz de milhares de lustres orvalhados. Vi cortejos e pompas, e eu mesmo tive a honra de presidir um torneio de cavalaria. Vi seu reino conhecer a glória e a decadência, até que foram finalmente dizimados por substâncias tóxicas e condições não propícias à reprodução de seu estilo de vida. As ruínas de suas casas e castelos agora dão espaço às raízes. Não há turistas nem peregrinos, apenas fantasmas perambulando por seus escombros.
Sim, eu estive presente quando o boneco do Jaspion foi eleito Favorito do Achocolatado após um acalorado concurso. Vi quando lhe entregaram a taça de leite achocolatado, e vi como minutos após ter bebido morreu por excesso de açúcar. Sim, eu vi o médico pegar-lhe nos pulsos e sentenciar em assombro que agora "esse homem está morto". Descemos seu caixão ao profundo jazigo e nunca mais tomamos leite com achocolatado. Durma em paz, Jaspion, eu disse espargindo folhas de laranjeira sobre o túmulo. Parti para a Floresta das Sombras e lá permaneci por dois ou três anos de luto, rememorando seus dias de glória enquanto as estações se revezavam em meus olhos baços.
Sim, eu conheci a presidenta. Eu mesmo escrevi o seu discurso de posse numa máquina de escrever. Aceitava insinuações e dicas de tias, primos e eventuais bêbados. Um dia antes de sua proclamação, fiz-lhe promessas e ela me fez promessas, e então permanecemos em silêncio olhando para a Lua Argêntea. Ela se levantou e disse: "Vou estatizar tudo". Que bom, eu disse. Ela então pegou no meu braço e disse: “Estou falando sério”. A partir de então aprendi a nunca mais duvidar de sua palavra. Precisei ir ao médico devido às luxações. Está bem, está bem, melhor ainda para mim, eu respondi esfregando onde ela havia apertado. Tomo remédios e faço tratamento psiquiátrico uma vez por mês desde então.
Sim, explorei a Antártida e suas montanhas geladas. Tive que ser consolado por pingüins após descobrir que não havia nada de inédito em explorar a Antártida, e que muitos outros já haviam feito isso. Sim, eu dizia-lhes entre lágrimas, mas nenhum deles fez isso por amor. Eles então cochicharam entre si e tiveram que concordar que realmente isso nunca havia sido feito. Entretanto, não me deram ouro, jóias ou qualquer recompensa, de gratidão ou de admiração. São mesmo muito esquisitos. Brinquei durante dias com eles, até que eu enfim estivesse cansado de meus dias de gelo, e decidi que já era hora de abandonar as plataformas da Antártida e seguir para terras mais quentes. É a vida, eu explicava. Eles então disseram que era possível que eu esperasse que um bloco de gelo se desprendesse, ou eu simplesmente poderia usar o cadáver de uma baleia como esquife, digo, como jangada. Esperei, claro, o tal iceberg.
Sim, fiz a minha própria fortuna vendendo empadinhas e empadões na praia, e comi muita areia e grosseria dos banhistas em troca. Eu oferecia tudo ao vento, e surpreendentemente sempre havia quem entendesse isso como um chamado. Eles diziam: "Tem gosto de areia com siri". Mas é claro, eu retrucava, se são empadinhas e empadões de areia com siri. Fiquei cinco dias preso até que alguém me pagou a fiança. Infelizmente a fiança não era para mim, mas para seu filho, mas que, devido a um erro de pronunciação, acabei livrando-me. O dinheiro foi entregue a uma instituição de caridade que, fiquei sabendo há alguns meses atrás, acabou em um incêndio anônimo e sem explicação. Antes eu tivesse apostado em corrida de cachorros, fico a lamentar-me.
E muitos e muitos outros. Não vi elefantes, leões nem águias. No máximo baleias, marmotas e águas-vivas, e quem sabe ouriços-do-mar, corais e sargaços. Afora isso não vi nada. Nem deserto nem florestas selvagens, no máximo a Antártida e formigueiros. De tudo ficaram as ruínas e as sombras, como convém à minha idade. Mas, como dizia Florbela Espanca ("não, você não ousaria!"):
"Se é sempre Outono o rir das primaveras,
Castelos, um a um, deixa-os cair...
Que a vida é um constante derruir
De palácios do Reino das Quimeras!
E deixa sobre as ruínas crescer heras.
Deixa-as beijar as pedras e florir!
Que a vida é um contínuo destruir
De palácios do Reino das Quimeras!
Deixa tombar meus rútilos castelos!
Tenho ainda mais sonhos para erguê-los
Mais altos do que as águias pelo ar!
Sonhos que tombam! Derrocada louca!
São como os beijos duma linda boca!
Sonhos! ... Deixa-os tombar... deixa-os tombar..."
Aliás (vai ficar feio a formatação, contudo), olha só a confiança, é disso que gosto nela:
"O mundo quer-me mal porque ninguém
Tem asas como eu tenho! Porque Deus
Me fez nascer princesa entre plebeus
Numa torre de orgulho e de desdém.
Porque o meu Reino fica para além...
Porque trago no olhar os vastos céus
E os oiros e clarões são todos meus!
Porque eu sou Eu e porque Eu sou Alguém!
O mundo! O que é o mundo, ó meu Amor?
— O jardim dos meus versos todo em flor...
A seara dos teus beijos pão bendito...
Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços...
— São os teus braços dentro dos meus braços,
Via Láctea fechando o Infinito."
"Se é sempre Outono o rir das primaveras". Não sei se há outro poeta que eu leria com tanto prazer quanto ela. Quero dizer, outros há, mas que importa agora?
2 comentários:
Suas histórias me embalam antes de dormir. É verdade, vou me recolher aos meus aposentos. Se me permite, a minha favorita é a da presidenta.
Bonsoir, Monsieur Munhoz!
(Como uma atriz da novela das nove, misturo idiomas, falando em francês apenas o que o público entenderá de qualquer maneira. Disfarço um bocejo, envergando meus trajes de dormir).
Há também em minha casa um reino semelhante ao que você visitou, entretanto de sede menos bela que um vaso de orquídeas: está debaixo da pia. Não há, porém, qualquer sinal de decadência ou enfraquecimento de sua política – o que há é um crescimento louco, bonito de se ver. Temo que nem mesmo os tóxicos possam mais dizimar esse reino e que apenas os atos de um governante excêntrico (de Calígula pra cima) possam lhe dar fim.
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