domingo, 17 de abril de 2011

Roleta Russa, que me fizeste?

Foi numa sexta-feira, numa ocasião de faxina. Eu estava aqui, em meu apartamento, limpando o chão da cozinha, rabiscando a parede com molho de salsicha, quando então veio. Não bateu na porta, entrou rolando pelo chão úmido, se jogou contra o meu esfregão e não largava de jeito nenhum. Agarrado às tiras de pano, gritava meu nome, berrava que iria vencer antecipadamente todas as minhas contas, disse-me coisas atrozes. Eu, claro, botei no colo, afaguei, dei sopa. Na sujeira em que esperneava, eu, do alto de minha recém-indolência, tão arduamente adquirida, me condoía. Uma jóia rara, um anel que caía assim no dedo, não podia ser desperdiçado. A oportunidade escolheu a minha porta entre tantas outras, não cabia a mim, já hipnotizado pelo tempo, desprezá-lo.

Nem de longe, no entanto, quis tê-lo. Não o estimava, na sala não lhe velava, no centro da mesa não me chamava a atenção. Quando o encontrava, era como um tropeço. Dentro do meu armário, na gaveta da escrivaninha, no fundo da geladeira, logo atrás da alface, guardado para supostamente mais tarde. Mas se me lembrava era somente em ocasiões de surpresa, de susto. "Você ainda aqui?". Os únicos momentos juntos foram no sofá, assistindo à novela das oito, enquanto ele servia de suporte para a minha bandeja de chá com pipoca. Às vezes chorava, soluçando um tanto, fazendo trepidar a xícara. Eu mudava o canal à sua revelia, sem me importar, distraído. Confuso, me olhava, súplice, e eu, clarividente como uma rocha pode ser, perguntava se queria mais gelatina ou se o som estava muito alto.

Não demorou e acabei enrolando-o em meu tapete. Era já noite, deixei minha sopa esfriando em cima da mesa. Abri a porta de meu apartamento e, do corredor, o desenrolei pela escada do edifício, e ele foi rolando, assim, até o térreo. Eu era tão pleno que não poderia perceber. Desci sobre o mesmo tapete e encontrei-o estendido, ofegante, quase morto lá embaixo. Abri a porta e ele foi saindo, deixando um rastro de terra às suas costas. Voltei e terminei o meu jantar. A sobremesa demoraria, mas eu a esperava como esperaria a sua volta. E, de hipótese em hipótese, vaguei, imaginando seus próximos destinos, até que, de cômodo em cômodo, se desfizesse e eu também. Olhei pela janela, pelas ruas pairava uma densa neblina. De vulto em vulto, ele poderia estar em qualquer um daqueles carros. Permaneci em vigília até que amanhecesse.

Um comentário:

Nina. disse...

um texto mais palpável, desta vez.
rabiscar as paredes com molho de salsicha me traria uma sensação de liberdade invencível.