sábado, 11 de junho de 2011

Calmaria, com quem combates

- Como foi o banho, senhor? 
- Oh, maravilhoso! Mandarei construir uma réplica de seu banheiro em meu quarto! 

Despedi-me na porta, deslizando para fora antes mesmo que a houvesse aberto totalmente. Tinha permanecido pouco tempo dentro do box, não esfregara os cabelos e nem atrás das orelhas, apenas deixara-me estar debaixo da água quente, incomodado com aquela posição forçada em pé. Havia trazido meus sais de banho, porém não havia banheira, o que motivou minha saída afoita, fazendo-me esquecer o relógio no ralo da pia. Alfredo ainda permaneceu na soleira, acompanhando-me com o olhar, as mãos nos bolsos, talvez desconfiado. Emprestara-me o banheiro por aquela noite, deveras, e certamente eu deveria retribuir o favor. Mas com o quê? Um presente. Um lindo chapéu de bruxo, encimado com plumas de corvo. Não, sua esposa detestaria. Talvez, então... Cerâmica! Todos adoram, enfeita a casa, põem-se flores, as crianças derrubam, há de se criar encantadoras epopéias em seu entorno. Um belo presente, um belo presente... Virei a esquina e comecei a subir para casa, os postes pouco iluminando a via. Era noite, pessoas já haviam voltado do trabalho, as ruas, enfim, pouco a pouco se esvaziavam. 

O calor do banho logo ia se desfazendo de minha pele conforme eu atravessava o ar frio. Murchei as orelhas e me cerrei mais perto de meu casaco, o qual se estirava levemente para trás com os passos rápidos, embora trêmulos e incertos em minha ineficiência em reter o calor interno. Mais dez minutos apenas e logo estaria em casa, ao abrigo do aquecedor. Um pouco mais de convicção e num instante todo o frio se findaria desde a soleira de meu lar. Margot poria mais carvão nas fornalhas, e toda a casa se levantaria em meio aos vapores quentes e macios. Essa amálgama orgânica de folhas e umidade sobre a qual pisava abandonaria meus sapatos, e um brando sopor acolheria meus pés, agora gelados e rijos como tábuas. Minha casa ficava realmente muito perto da de Alfredo, e, embora eu habitasse a parte superior da colina, não via nisso qualquer relação de superioridade, da mesma forma que não me sinto inferior aos seres que habitam a Lua. Meus pensamentos alongavam-se, a calmaria abatia-se sobre a noite e nem mesmo o vento agitava a neblina que se formara. 

Já no segundo quarteirão, no entanto, o calmo silêncio que me acompanhava parecia esmaecer-se aos poucos, e, agora, era possível ouvir o ruflar das asas dos morcegos, encapuzados em seu negrume, sobrevoando a poucos metros do chão. Parece mais frio agora, eu me espantei. A altitude é um fator determinante da temperatura, mas isso não é suficiente, não explica, e deve-se, certamente ao fato de que o banho não foi quente o bastante, eu calculava. Ao longe, um longo silvo deslizava por sobre as copas, um chamado soturno estendendo-se juntamente com as névoas, enrolando-se em volutas ao redor de minhas pernas, de minha cintura. Qualquer outro já teria visto nisso terrível presságio. Eu, porém, nunca dera importância a fantasias. Que bobagem, eu pensei. Isso é o que dá conviver com gente inferior. Isso me faz lembrar tia Rita e seus vaticínios, que, no máximo, eram versos graciosos, embora por vezes macabros. Genaro, igualmente, com seus corvos e sua corujas, abutres e negros cães. Jamais pensaria em extrair qualquer fundo de verdade de suas repetitivas histórias. Monstros, bruxas, todos macaqueiam a troco de nada. Não fazem sentido senão para entreter tolos e crianças, eu repetia. O silvo, então, foi-se apagando, diminuindo, até que cessou, incógnito tal qual havia surgido. Nem mesmo os morcegos voltaram a esvoaçar acima de minha cabeça. O frio, porém, parecia cada vez mais intenso. Acalmei-me, ervilhas fresquinhas haviam de me esperar, Dona Ana ligaria o rádio e Cláudio Eleonor passaria meu terno. 

No entanto, mal havia se instalado o silêncio, o silvo voltava a tocar, bruxuleando desta vez pelas minhas costas, fatal e misterioso. Olhei para trás, receoso. Um vulto moveu-se rápido detrás de um tronco ao outro, pálido. Não lhe pude adivinhar a matéria, talvez... Minhas espinhas eriçaram-se, mas não me dignei a relançar qualquer olhar em sua direção. Continuei caminhando, dessa vez mais rápido, sem me importar com o frio. Mera impressão, certamente, eu divagava, respirando de modo acelerado e já empunhando o guarda-chuva à minha frente. Homem-pássaro, fantasma, vampiro, todos eles têm de alguma forma aparecer primeiro para só então atacar, não é? Nenhum protagonista é vítima do nada. Isso só acontece com os outros personagens, e essa voz íntima é prova de que o que acontecerá comigo de algum modo revelará antes seu semblante. Tentei me tranqüilizar, imaginando iniciar mais um plano para pôr-me em forma assim que chegasse. A escuridão, contudo, me envolvia cada vez mais profundamente, enquanto a umidade das árvores e todo o resto iam se perdendo distantes além da neblina. É noite como qualquer outra noite, e tendo eu saído, retornarei tal como sempre fiz, eu dizia. Arcanos, eu murmurei, não esvoaçam em uma simples noite de banho. Nada, no entanto, mexia-se. 

De repente, um insólito peso improvisou-se sobre a minha coluna, fazendo-me tombar sobre o chão, e, embora sua dureza e realidade mostrassem-se a mim com a dor, minha mente consumia-se atônita em espirais de terror e incompreensão. Caído sobre as folhas úmidas, senti um forte cheiro pútrido, exalando de todos os lados. Um fraco sussurro jazia em meus lábios e meu corpo tremia arfante. Em pânico, girei o corpo para cima, meus olhos desesperados por enxergar o motivo, mas, diluídos no ataque, nada viam e nada percebiam, a não ser as névoas e o frio quase material ao meu redor. Não era possível, eu pensava. Talvez tenha sido um galho, ou um animal grande... como um cavalo. Despencando de alguma árvore? Não faz sent... Foi então que senti algo envolvendo-me os tornozelos, gélido como o ar das catacumbas. Olhei então para baixo e vi. Um esqueleto agarrava-se a mim, os ossos brancos e reluzentes, a olhar-me de suas órbitas vazias e a entreabrir seu maxilar sem que som algum proferisse. Aproximava-se, acendendo-se sobre mim, enquanto meus músculos esmoreciam com o medo. Como em um sonho ruim, ao meu redor a paisagem ruía, meus membros não obedeciam e as árvores ao redor eram sombras cúmplices. 

Larga-me, larga-me - eu repetia, roufenho, indefeso. Sua caveira, no entanto, impassível, tremeluzia de um fúnebre alvor. Arrastando-se sobre mim, deitou sequiosa uma de suas garras sobre meu peito, e, com a outra, envolveu-me o pescoço, possuindo-o em suas descarnadas falanges. Sequer me debati. Meu cérebro sufocava e meus pulmões padeciam de um inane desespero. A caveira aproximou suas órbitas de meus pasmados olhos, assomando sua estranha face em sombrio plenilúnio, a desfazer-me os sonhos e as horas presentes. Um vago estrídulo começou a ecoar em meu crânio, o mesmo silvo que havia ouvido antes, mas agora vindo de dentro. Como um esquecido sentimento, um passado inteiro a pungir-me o corpo, o terrível grito inumano perseguia-me nos mais esconsos recantos de minha alma. Abismos inteiros, crateras, mundos outrora habitados, mas agora em completa desolação, saltavam e giravam em convulsos vórtices. “Dá-me, dá-me!”, eu ouvia murmurar-se em minha mente. A despeito do frio, minhas vestes encharcavam-se de suor. Sentia suas costelas deslizando por sobre mim, arrefecendo-me qualquer esperança, suas mãos agora pressionando forte meu pescoço e meu peito. “Arranca-o e dá-me, arranca-o e dá-me”, dizia a voz, febril. A caveira aproximou-se, então, ainda mais, e meus olhos cerraram-se e meu coração desfaleceu, sucumbido sob a terrível mortalha de ossos. 

Acordei na manhã seguinte, estendido sobre a calçada. Tênues raios de luz chegavam-me à face, e todo um cansaço dominava meus membros. De início, nada entendi. Lembrava-me somente de ter me dirigido a minha casa após ter tomado banho. Depois disso, apenas névoas, um silvo e uma espécie de sonho, um pesadelo ruim. Levantei o tronco, procurando nos bolsos minha carteira, minhas chaves - sabe Deus o que poderiam ter feito comigo naquele estado. Ao deslizar, porém, minha mão, notei que havia um rasgo no casaco, na altura do coração. O pano encontrava-se todo esgarçado, e a lembrança daquela noite voltou. O silvo, a caveira, a dor. Então não era um sonho. Levantei a camisa, tomado de pavor, apalpando minhas costelas, meu esterno, algum indício. Nada. Não havia qualquer sinal de violência, nenhum arranhão, nenhum sangue manchava as vestimentas. Agora, no entanto, tudo retornava. O sentir de suas mãos esqueléticas sobre o meu peito, apertando-me o pescoço, infligia-se novamente sobre mim, como se sua presença não houvesse desaparecido com a chegada do dia. O que teria sido aquilo? Como era possível? Que sortilégio? Talvez Alfredo... Sim, eu pensava. Ele teria entendido a fina ironia em minhas palavras e decidiu vingar-se mandando um esqueleto e... Bom, certamente que não. 

Pus-me de pé, ainda um tanto trêmulo, absolutamente confuso e um tanto terrificado. A aurora já despontava no horizonte, e nenhuma neblina mais turvava minha visão. Certifiquei-me o pulso. Ainda havia um coração, certamente. Pensará que é bobagem minha, porém era o que parecia tão convulsivamente querer extrair. Até então nunca havia ouvido falar de nenhum relato a respeito de esqueletos que atacavam transeuntes durante a noite, e bem que poderia não ter passado de um devaneio. A sensação, no entanto, perdurava, e mesmo agora não estou certo se de fato me livrei de seu terrível peso, ou se, em sempre o trazendo, acostumei-me a ele. De qualquer modo, é uma rua que evito desde então, e hoje mesmo, ao ir comprar pastéis - e eu adoro pastéis -, utilizei um trecho bem mais longo, tamanho o medo, a terrível lembrança e esse peso que não cessa.

2 comentários:

Nina. disse...

eu nunca pensaria que algo é "gélido como diamantes"...sou da plebe.

Murilo Munoz disse...

é, ficou uma merda
mas eu adoro a idéia de ser agarrado por um esqueleto e depois... MORRER