sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Preciso

Essa mulher no banco de trás está cutucando-me no ombro, soprando baixinho por minha atenção. O que foi? Sentei em cima do seu gato? "Não é isso" - ela me responde - "é que o seu chapéu está quase tocando nas minhas sobrancelhas e...". Como é que é? Que insolência! Nem respondo. Levanto-me, pois pela janela vejo que chegou a hora de descer do ônibus. Estão cada vez mais ousados: o garçom, o pintor, a atendente de padaria. Dessas afrontas o mundo sempre sai ileso, mas haverá um dia em que eu não descerei assim tão passivo, e pelas ruas correrei a incendiar suas casinhas de cachorro-quente.

Que pensam que sou? Que sou um deles? Acaso eu visto as mesmas roupas? Acaso eu sustenho os mesmos panos, os mesmos meneios? Sequer assisto ao mesmo programa de televisão! Eu nem tenho televisão; mandei penhorar juntamente com o rubi do anel que eu havia herdado, e que agora porta uma pedra de zircônio. Estou falido, é a bancarrota de todos os meus sonhos. Mas isso não importa. Não permitirei que me dirijam a palavra enquanto eu estiver encurralado no elevador, nem aceitarei que me enfiem panfletos nas mãos enquanto eu estiver andando distraído.

Que vão fazer? É isso uma nova moda, injuriar-me ao pressuporem que no mesmo cocho eu devo comer? Pois modas não existem, eu respondo. O que eu carrego é antigo e diverso de qualquer banalidade com que se reencarna um oleado de duas décadas atrás. Ah, não, isso de modo algum é moda. Só os frouxos pensam em termos de moda; algo passageiro, aleatório, avulso, um bilhete de cinema. Estão enchendo as minhas veias como a calha está enchendo o balde da água da chuva: sua origem está muito distante, e no entanto é absolutamente esperada e precisa.

E essas vitrines... Como seria bom estraçalhar esses vidros com uma rajada de raio laser. O que foi? Aumentaram os preços dos sapatos? Dos meus sapatos? Ora, pois verão! E vocês, o que pensam que estão fazendo? Acham mesmo que alguém deva interessar-se por uma camiseta que mais parece um outdoor, uma lona de caminhão? Ah, sim? Pois tomem isso! Mas o quê? Agora eu não posso sair de casa sem parecer que eu esteja entrando em um campo de batalha? Essa cidade está minada! E lá vêm os bombardeiros, lá estão os atiradores de elite! Aqui: toldem-se da noite de meu casaco - eu lhes digo, atirando sobre os aviões meu melhor abrigo.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Este não é um livro de sabedoria II

Estava o mestre com seus quatro discípulos ao redor da mesa para a última refeição. O mobiliário era modesto, e da pequena sala ocupavam apenas um ínfimo canto, espremidos todos numa única sombra. Tomando de uma cesta de pão, falou-lhes o mestre:
- Comei, que tudo é sagrado e substancial ao corpo.
- Até os cogumelos venenosos? - disse um dos discípulos, no que os demais abaixaram a cabeça e engasgaram com o vinho.
O mestre olhou-os como se não compreendesse o motivo do embaraçamento e, dando a cada qual um pão duro e pesado, respondeu-lhe:
- Até os cogumelos venenosos.
- Até a carne dos animais necrófagos? Até mesmo os frutos em estado de decomposição avançada? Até mesmo os vermes? - continuou o discípulo, no que os demais lançaram-lhe um olhar de reproche.
- Sim - disse o mestre fitando seu copo, indiferente.
E nada mais disse. Discípulos e mestre terminaram de mastigar sua modesta refeição em silêncio e apenas podiam-se ouvir os sorvos apressados e os ruídos aflitos de seus dentes rasgando as crostas de pão. Ao terminar, levantaram-se e, após despedirem-se do mestre, dirigiram-se ao quarto de dormir, caminhando austeros e ruflando os panos grossos de suas longas vestes.
- Boa noite - disse Auden, cobrindo-se com o ralo cobertor e tombando seu delgado corpo para a parede.
- Boa noite - disse Tauden, socando seu travesseiro e estendendo-se feito estátua sobre o duro colchão.
- Boa noite - disse Mauden, soprando a vela e fazendo ranger a cama com o seu peso.
- Boa noite, irmãos - disse Faulen que, surpreendido com a escuridão, por um momento quase se esqueceu da direção da parede, mas acabou encontrando-a e virou-lhe as costas como era de seu costume.
No dia seguinte, um dos discípulos havia amanhecido morto por asfixia. O mestre, perguntando então por Faulen, ao notar sua ausência à mesa para a primeira refeição, recebeu em resposta um encolher de ombros dos demais:
- Não quis acordar - disse Mauden, servindo-se de manteiga.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Este não é um livro de sabedoria

Certo dia, atraído pela fama de seu sábio, veio um estranho à aldeia de Wang-Bei, às margens do Wi-Po, a procura de um conselho. Havendo encontrado a sua casa, estava o sábio de cócoras a riscar o chão com um pauzinho enquanto assoviava baixinho em seu idioma de velho. O estranho aproximou-se e, após haver-lhe feito a reverência, perguntou:
- Mestre, sou rico, tenho uma boa esposa, bons filhos, mas não sou feliz. O que devo fazer?
O velho, ainda de cócoras, ergueu-lhe os olhos e disse:
- Deves encontrar o caminho do Norte; quando encontrá-lo, por ele seguir.
- Mas, mestre, que caminho é esse de que me falais?
O sábio, havendo se posto de pé, caminhou pacientemente para o meio da estradinha e, convidando o estranho para que se aproximasse, apontou-lhe o caminho do Norte, o qual seguia sinuosamente para além das últimas casas da aldeia até confundir-se aos montes Quong, limites da província.
- Vês o norte? - indagou-lhe o sábio.
- Sim, mestre, porém ainda não entendo.
- Entenderás, pois.
O velho, então, fincou bruscamente suas mãos no chão e, soltando um urro, fez desprender um enorme bloco de terra. O estranho recuou vários passos, absolutamente atônito, mas antes que pudesse compreender qualquer coisa, o velho golpeou-lhe repetidas vezes até que um fio de sangue começasse a escorrer desde o topo de seu crânio.
- Isto é o caminho do Norte - disse o sábio, abandonando o bloco a um canto e espanando as mãos.
O estranho, havendo limpado o fio de sangue com a manga, fez-lhe a reverência, voltou-lhe as costas e seguiu para as províncias do Sul, onde não era a sua casa, nem havia sábios de que soubesse.