segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Ifigênia

E eu pergunto: quem nunca teve vontade de perambular entre os corredores de uma biblioteca durante a noite, sem iluminação alguma? Ora, é o sonho de todos. E a Biblioteca San Martín vem a presentear-nos com essa tocante fantasia, convidando pequenos grupos a fazer excursões pela madrugada, em meio a atores que podem ser poetas, meros leitores notívagos ou heróis da independência argentina. 

No entanto, nem todos estão preparados para agir em um ambiente assim. Por mais que eu tentasse, era impossível não me incomodar com a moça que disparava flashes na cara dos atores, relançando na escuridão a lembrança de que aquilo tudo não passava de mais um espetáculo dentre tantos na cidade. A cada flash era a mesma biblioteca de todos os dias que emergia das trevas. Ainda bem que não era pago, pois então o colapso teria sido total.

Se eu pudesse voltar no tempo, tocaria de leve no ombro da moça, e lhe pediria gentilmente para que "Com licença". E tomaria a máquina fotográfica de suas mãos e jogaria com força contra o chão. Mal teria tempo de olhar seu rosto de espanto, rapidamente encoberto pelo breu da biblioteca. Eu venci, todos vencemos, um continente selvagem salvou-se e eras inteiras não seriam suficientes para redescobri-lo.

Para que se lhe explique que, às vezes, em situações assim, é necessário esquecer que, lá fora, há um mundo a esperar: pais, marido, filhos, colegas de trabalho. Explicar que essas paredes que defendo são muito mais frágeis do que qualquer parede de papel de um pavilhão japonês. O exterior ameaça-as a todo instante, é necessário um esforço enorme para concentrar-se e não se deixar arrastar pelos fachos de luz intermitentes dos carros. Não que o exterior também não seja constantemente ameaçado, também ele é frágil, mas a fantasia é muito mais. 

Bom, por enquanto, só posso sugerir que, ao invés de um grupo de doze pessoas, um grupo de, não sei, quatro. Ou, melhor, de apenas duas pessoas. Um único companheiro que sirva de garantia de que haverá um retorno ao mundo e de que não nos perderemos entre as estantes da biblioteca, permanentemente presos na escuridão.

4 comentários:

João Paulo Rabelo disse...

O problema de frequentar bibliotecas é, em meio ao excesso, perder o senso de prioridade. De necessidade. De realidade. Talvez no escuro o contato com os livros se dê da forma mais ideal, ainda que utopicamente. A biblioteca no escuro faz os livros terem as lombadas para dentro! Gostei muito.

gabriel disse...

Não sei se você já ouviu falar de um autor polonês chamado Bruno Schulz. Ele tem um conto "Lojas de Canela", que tem uma temática parecida. A essência da cidadezinha dele na escuridão (resumi muito mal), mas é bem interessante, eu achei bonito.

Se você tiver tempo e não ligar de ser em inglês: http://www.schulzian.net/translation/shops/shops.htm (tem toda a obra dele nesse site, que não é muito extensa - ele foi assassinado na segunda guerra)

Murilo Munoz disse...

eu já me senti assim em uma biblioteca, com a sensação de impotência porque, fazendo as contas, eu jamais conseguiria ler todos aqueles livros. mas depois eu fui perdendo essa sensação ruim e hoje é só felicidade na nossa relação.
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valeu, gabba's, vou ler, sim. não conhecia esse polonês. interessou-me

Nina. disse...

Eu achei o texto lindo.