sábado, 13 de novembro de 2010

Nós, felizes na soleira,

De braços caídos como os de um chimpanzé. Sei que parece loucura - oh, eu sei! -, mas olhe ao seu redor. Vamos... oooolhe. Não resta muita coisa, vê? Bom, é claro que certamente tem aquela sorveteria ali do outro lado, e - veja só - bibliotecas, museus e um clube de ioga a menos de trinta metros de sua casa. Entretanto, entretanto... Não há nada ali exceto a poeira das eras, e o fluxo causal da história carcome suas já porosas bases. É o que dizem, e eles sabem dizer muitas coisas. Era essa a liberdade que queriam lhe propor, livre como um vento é no campo? Bom, eu até poderia desenhar uma cena muito bonita de você flutuando como um espírito em meio às ruínas, as ruínas de algo que você jamais chegou a tocar e que nem mais venera, e talvez sequer enxergue. Mas eu tenho algo melhor (mesmo porque eu não sei desenhar). Eu, na verdade, iria elaborar tudo em forma de receita - para ir fazendo agora mesmo, nesse instante, mandar você pegar os ingredientes que certamente tem no armário, acompanhar as minhas instruções -, mas penso que o fogão anda um tanto ocupado. Agora mesmo Dona Borboletinha está mexendo o tacho de chocolate, e não vamos atrapalhar-lhe o afazer. Dona Baratinha chega às sete para o desjejum, e a mesa já está posta com a jarrinha de orvalho e o pote de compotas de pólen. Deixemo-la em paz. [Introibo].

Você acorda todas as manhãs de sábado ansiosamente para encontrar o seus amigos, e quando chega no playground, o que encontra? A quadra está alagada. Os balanços estão enroscados de uma maneira inextricável. O salão de festa está alugado para uma conferência presbiteriana. E, para coroar, Sauron novamente ficou preso nos galhos do pé de pitanga - e nós temos medo dele. Então você volta, desanimado, e chama o elevador. No entanto, o elevador demora séculos, pois aparentemente alguém apertou todos os botões, e agora ele descerá lentamente de andar a andar. Você, então, tenta ir de escadas, mas acaba tropeçando em seus cadarços, que estavam misteriosamente amarrados um no outro, e despenca pelos degraus. Você se pergunta: o que é isso, Murilo?

É o seu porteiro. Como todos sabemos, os porteiros pertencem a uma antiga linhagem de nobres que foram destituídos de suas propriedades e de seus títulos nobiliárquicos quando do advento das repúblicas. Tal os deixou em uma situação bastante constrangedora, sendo forçados a abandonarem os salões e a dormirem em caixinhas de fósforos. Só lhes restaram, como um resquício de nostalgia e piedade, as suas xícaras de porcelana e algumas jóias, que levaram consigo em baús de madeira em sua viagem para a América. Todas as manhãs eles revivem sua antiga glória, vestindo suas perucas e seus gibões de musselina, seda ou veludo, dependendo do fetiche. Fazem pôr em suas mesas suas melhores xícaras, desenhadas a ouro ou pintadas a mão em algum país do Oriente. Depõem as jarras de mel, chá e leite, e bebericam fazendo consoantes francesas, vogais italianas e fungadas inglesas.

Porém, as xícaras não são conhecidas por sua durabilidade. Vão-se quebrando ao longo de seu uso. E, infelizmente, esse também é o destino das xícaras dos porteiros. Por mais arabescos que tenham, por mais encantos e prazeres que despertem, tal não impediu que fossem se perdendo, até que todo o armário ficasse vazio. E suas mesas já não podiam ser decoradas, nem a cerimônia podia prosseguir, e o sonho morria, assim, em estilhaços de porcelana. Esse é o motivo do mau-humor de seu porteiro, o que provoca a sua ira e sua irritação, a despeito de jamais ter afetado suas boas maneiras. Eles não porão uma nota de ressentimento embaixo de seu travesseiro, nem farão confidências. Seu jeito de punir o mundo por sua desgraça é sutil e revela-se secretamente, por detrás do retrato de parede e de dentro do relógio.

O que fazer? Comprar um novo jogo de xícaras? Não me faça isso, não seja tão tolo! Aceitariam com toda a amabilidade do mundo, pois são nobres, mas acabariam jogando no lixo ou mostrando mais tarde aos seus companheiros e fazendo piada com as coisas que os plebeus encontram nas lojas. Nem que você tivesse dinheiro o suficiente para encontrar um jogo inteiro feito no séc. XIX. Não é aconselhável. Se sentiriam humilhados por serem presenteados com artigos que, teoricamente, são de primeira necessidade e devem ser adquiridos com seu próprio provento.

O único jeito é dançar. Sim, dançar. Não uma dança qualquer, mas uma dança medieval, aquela que é basicamente um movimento de cortejo. Mostre-se genuinamente interessado em ter a honra de dançar com seu porteiro, e - pelo amor de Deus - finja o máximo possível que vocês estão a pelo menos três séculos atrás. É essencial que você fantasie uma cena da nobreza, digna de um salão, a fim de que ele possa sentir-se deliciado em relembrar seus tempos de glória. Arranjar o figurino é essencial.

Feito isso, é bem provável que ele se sentirá tão enlevado que pegará de seu esfregão e, após ungi-lo com a água do balde, tocará levemente em seus ombros e o nomeará Cavaleiro do Edifício Tibagi. É também provável que amanheça debaixo de sua cama um baú de jóias e um pôster de um castelo da Romênia ou da Síria - tudo dependerá do contexto.

PS: Eu ainda não sei como faz para tirar o Sauron do pé de pitanga. Aparentemente, isso não é obra dos porteiros, mas uma espécie de fenômeno natural que ocorre geralmente após a chuva.

2 comentários:

Nina. disse...

É horrível admitir minha desgraça...mas no edifício onde resido não há porteiro!

Murilo Munoz disse...

Mas nem no meu!