segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Nesse fim de mais uma era

O que dizer? O poder simplesmente me fascina. Foi com grande pesar que depositei o meu crachá sobre a mesa, e só o fiz porque me pediram, pois, se tivessem esquecido o protocolo, teria levado comigo para casa, assim como fiz com a caixa de correios e o poste de luz. E, agora que meu peito está nu, sinto-me oco de verdades, as quais tão bem soubera erigir sobre as costas alheias, como quem pendurasse, a cantarolar contente consigo, os enfeites de Natal nos galhos de um pinheiro. Mas sem as medalhinhas assim é melhor, pois até já consigo ver a cor de minha blusa. E eu mesmo não era um pinheiro de Natal? Ah desconsolo... Antes jamais houvesse saído do campo, onde eu arava a terra sem reclamar, tendo como única preocupação a hora do almoço em que, ávido, tomaria de meu pão e de meu café, largados a um canto à sombra de uma árvore e enrolados numa trouxinha de bolinhas vermelhas presa a um cabo de vassoura. Mas agora é tarde, e ter visto e sentido uma única vez bastaram para que eu nunca mais passasse um dia sem voltar os meus olhos para aquela direção.

Quantas e quantas marcas não deixará isso para o resto de minha vida - fico a pensar. Ainda bem velhinho, em uma tarde quente de dezembro, posso imaginar-me ministrando uma pequena palestra em uma sala de um colégio municipal  - as crianças apoiadas em suas carteiras, algumas babando, outras deixando cair sonolentas suas cabeças para trás, a professora encostada a um canto mordiscando uma maçã - E, então, diria que "en dos mily des, dos mily des, en uma amena prrimaverra, eu fui convocado parra trrabalhar como 2ª Mesárrio na seçión 44. Non nos derron água nem sanduhiche, apenas uma dinherro inutil que não podia serr gasto em lugarr algun". E narrar-lhes-ia todos os procedimentos realizados naquela eleição, desde o momento em que ligamos as urnas eletrônicas até a contagem regressiva para as cinco horas, quando, muito emocionados, brindamos o fim em copinhos de plástico, transbordantes do café que a 1ª Mesária havia trazido de casa. Sim, o fim de uma era. Certamente, aos meus olhos nebulosos e contemporâneos, não sou ainda capaz de compreender a extensão de minha perda, e só realmente o saberei quando, sentado em minha cadeira de balanço a ler o Código Eleitoral, estalar-me de súbito e quase desprevenido o entendimento de que o que eu tinha em mãos não eram prerrogativas ou "idéias legais", nem mesmo privilégios ou títulos aleatórios de nobreza. "Eu portava Autoridade", direi eu, enfim, quase num balbucio, deixando cair de minhas mãos trêmulas o pequeno volume.

Eu era feliz e não sabia. As minhas ordens eram prontamente obedecidas, sem hesitação ou questionamento, e esse é o verdadeiro sentido da Autoridade. "Assine aqui", eu dizia, e a pessoa assinava. "Mostre-me seu título de eleitor", e a pessoa seria capaz de fornecer-me até a senha de seu orkut. "Abram passagem para o Segundo Mesário", eu anunciava, dando pancadinhas com minha bengala em suas pernas e forçando-as a abrir um corredor em meio à multidão. "Não lata para um funcionário público, animal tolo", e o cachorro abaixava suas orelhas e retornava a sua casinha sem voltar-me as costas. Ah... a Autoridade: tão doce e ao mesmo tempo tão penosa... Bem é verdade que há sorvetes de nuvens, manjares de cereja e sanduíches de chantilly. Entretanto, meus caros, há responsabilidades de cujas forjas as mãos jamais sairão ilesas, e o peso desse encargo acompanhar-me-á pelo resto de minha vida, até que todos os meus ossos tenham virado pó e até que o meu nome tenha sido apagado de todos os livros e de todos os anais. Em meu túmulo, escreverão o epitáfio: "Aqui jaz o Segundo Mesário, cuja responsabilidade ainda paira sobre as Eleições de 2010". Então, viúvos da Terra e do Céu, dirão consternados ao vento, as lágrimas confundindo-se à chuva, enquanto meu caixão desceria lentamente ao profundo jazigo: "A Autoridade é maior do que os homens que a portam, e senão os esmaga, é porque ela nunca esteve acima de nada ou ninguém, mas era apenas um vínculo forte o sufciente para fazer mover sem sequer tocar". Mas então já seria tarde, e mais um filho assim fenecia, seco e corroído pela ânsia de poder, quando, julgando possui-la, entregara-se à paixão de uma ilusão, perseguindo no horizonte aquilo que a verdadeira Autoridade jamais quisera proporcionar: vaidade e fortuna.

Diderot e D'Alembert: Ficamos imensamente estarrecidos com o seu proeminente esclarecimento a respeito do conceito de Autoridade, e gostaríamos de agraciá-lo com a nossa mais importante solenidade inaugural. Incomodá-lo-íamos se acaso lhe pedíssemos que acendesse esse candelabro?
Sr. 2º Mesário: Oh, mas seria uma honra! Quão lisonjeado não me sinto por sua respeitosíssima consideração. Finalmente me vejo reconhecido pelos meus! [acende o candelabro quase aos prantos].
Voltaire: Bravíssimo! Veja com que maestria não o faz!
Montesquieu: Belíssimo! Os salões de toda a Paris estão encantados!
Benjamin Constant: Ah, vejam como resplandece em suas mãos!
Aristóteles: Desculpem-me. Salão errado. 
Rousseau, com inveja e batendo o leque: Uh...
Sr. 2º Mesário: Obrigado, obrigado...
[Música de fundo. Sr. 2º mesário despede-se de todos após uma longa e exagerada reverência, e encaminha-se até as imensas portas do salão, a passos largos e lentos, puxando a todo instante pela corrente um macaquinho uniformizado: "Mais modos, Alfred".]

Em uma desesperada homenagem a tudo aquilo que eu perdi e simplesmente não compreendo. Deixo, aqui, se ao menos posso fazer desse fim, que é um fim de algo outro, não deste, um terno registro das coisas mais belas que já me ocorreram. E se beleza não é remição... Paciência.

*Fim*

2 comentários:

Nina. disse...

Fiquei tão encantada quanto os salões de Paris...acho que estou sem ar, não sei se por causa maestria da narrativa ou por causa deste espartilho, um mal necessário.

Nina. disse...

Só agora li o texto dos espartilhos...
Ora, gastei tanto tempo vestindo o meu que não pude ler antes seu texto, que me trouxe uma solução muito prática. Meus agradecimentos, cavalheiro.