Eu, aqui, lentamente estirado sobre a mesa de jantar, entre o pudim de leite e o que restou do ensopado de camarão, seguro resignado a vela acesa sobre o meu peito, suando de tédio e tristeza. Os outros riem, parecem mesmo felizes, nunca pensei que uma festa pudesse ser assim... alegre. Mas eu não. Desde que me fizeram sou pesado, carregado demais, duzentos gramas de gordura em cada dobra de meus lábios. O que me conforta é essa bandeja, embora a posição não é das mais agradáveis. Pobre ensopado de camarão... Foi o primeiro a ser dilacerado, vilipendiado, chafurdado no tumulto dos convivas. Pouco restou. Havia algo nele de distinto que me encantava, mas agora jaz irreconhecível em algum lugar, sem que tivesse a chance de nos ser apresentado como se deve. Olho para eles e não vejo nada que justifique isso. Se ao menos fossem mais altos e magros, se ao menos suas maneiras fossem mais altivas e delicadas, talvez fosse compreensível essa sem-cerimônia com que tratam tudo ao seu redor. Não os detesto, por óbvio... Nutrir semelhante sentimento está muito aquém de meu papel. Eu não diria isso de ninguém aqui. Exceto pelas crianças. São inconvenientes, babam, beliscam, não têm pena de mim. Seus olhos têm um quê de leviano, uma ousadia de gente gorda, mais imprudente do que sagaz. São desastradas como galinhas e impertinentes como cabelo no macarrão. Gostaria que parassem de me fitar, pois já está ficando excruciante suportar esses olhos famintos, úmidos de ingenuidade e pouca sensatez. Gostaria que um piano de cauda caísse em cima de seus dedinhos. Uma mulher muito encorpada e coberta de colares tenta mantê-las afastadas e comportadas. Mas que preceptora mais indolente... E que pescoço musculoso. Deveria ter vergonha de vestir um decote tão aberto; poupasse-me de mais uma cena grotesca. E as crianças simplesmente não se contêm. Onde estão seus pais, afinal? Ah, claro... Conversando, naturalmente, atrás da samambaia, escondidos atrás do pilar, refugiados na sala de televisão e fingindo não ouvir o choro que vem pela janela. Gostaria que pianos de cauda caíssem sobre suas cabeças também. Sério, elas estão dando-me aflição. Olhem, vejam! Um delicioso pudim de leite! Não, elas não estão muito interessadas em pudim. Também... Esse jeito pálido e doentio não deve mesmo fascinar mentes selvagens. Selvagens gostam de brilho, explosões, coisas assim que se mostrem por si mesmas sem grandes esforços. Mas sinto que... Sinto... Nem todo o glacê do mundo poderia confortar-me. Tudo é tão breve e confuso. Mal entrei e vi-me cercado de conversas ininteligíveis e descabidas. Eu poderia escrever em meu diário: "Querido diário, hoje assisti inerte o massacre do ensopado de camarão, e descobri que odiar é querer que um piano de cauda caia sobre os dedos de alguém". Mas não tenho tempo. Agora estão todos reunidos ao redor da mesa, apagaram as luzes e entoam vivas ao dono da festa. Olho para o pudim de leite, mas ele mesmo parece estar triste demais para conversar. Um profundo pesar desceu sobre a mesa de jantar, em meio a uma salva de palmas e assobios. Queria ao menos que o fim não fosse esse fim, seco e incoerente, como se mostrassem a nós que os arquivos da memória não passam de documentos de papel, tão frágeis quanto seus autores. Se o mundo fosse maior do que essa toalha lambuzada de molho... Onde poderei encontrá-lo, pudim de leite? Tão distante e incomunicável, assim nos puseram. Creio que devo dizer que em toda a minha vida nunca vi gênero mais belo, como tudo aquilo que porta a debilidade do ser. Adeus, pudim de leite, adeus. Esses lábios, sensuais como a morte, posso já sentir a longa inspiração que se anuncia. Ele fecha os olhos, aproxima-se, eu também fecho os meus e contraio as minhas camadas. Se o seu desejo não é o mesmo que o meu, ao menos que nossos sonhos sejam feitos da mesma matéria. Adeus, pudim de leite. Eu... um bolo... de aniversário. Morrer, enfim.[A vela se apaga]
Um comentário:
"Exceto pelas crianças. São inconvenientes, babam, beliscam, não têm pena de mim. Seus olhos têm um quê de leviano, uma ousadia de gente gorda, mais imprudente do que sagaz."
Eis o trecho em que percebi que este ser simpático que narrava a história se tratava de um bolo.
Ótimo texto! Um dos meus preferidos.
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