sábado, 28 de maio de 2011

"Antes te houvesse roto na batalha"

Porque é assim: espero meses pela resposta, em dúvidas agonizantes, vendo brumas em meu destino, a cada momento checando a caixa de correio, que quando finalmente chega, já não há surpresa nem ansiedade que me prema o peito. Se sequer houvesse chegado, acho que nem me importaria. Respostas tardias não adiantam de nada - talvez de consolo em saber que não fui ignorado. Mas, mesmo assim, só é consolo se de alguma forma ainda se espera pela resposta. Quando nem isso, é só um "humpf" que me resta.

De qualquer forma, ali está a água, ali na terceira porta do armário está o alpiste. Alimente esse corvo cansado que me entregou a resposta e deixe que parta. Para essa terra misteriosa de negras torres e vazios guardiões, que talvez seja o limbo, no fim do mundo, onde de tudo se esquece, até mesmo do cansaço. Onde a sua carta tremula desolada presa nos galhos secos de uma árvore morta, e onde seres encapuzados caminham em silêncio pela amurada, sem anseios e sem qualquer interesse pelo horizonte que os espreita.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Venham, venham ver

No episódio de hoje (levando-se em conta que, para o bem ou para o mal, eu vivo no Brasil), Sheldon Cooper lançou o seguinte problema:
  1. Em um contrato entre duas pessoas, que chamaremos singelamente apenas para fins didáticos de A e B, B propõe a seguinte cláusula, que deverá ser necessariamente avaliada por ambos antes de encerrado o contrato: "em havendo desacordo entre A e B, de modo que um diga "sim" e outro "não", B decidirá como instância última;
  2. Sendo assim, A, analisando essa cláusula, diz que não concorda. B, ao seu turno, diz que concorda. Desta forma, temos um empate: B diz sim à cláusula e A diz não;
  3. Tendo havido empate, B, então, assume a posição, conforme a cláusula descrita, de árbitro, e decide por sim.
  4. Em decorrência disso, a cláusula é validada e regerá todo o restante do contrato. Basicamente, temos que a única vontade válida é de B.
Acho que, procedendo dessa maneira, a falta de lógica do problema fica bastante evidente. Porém, em defesa de Sheldon Cooper, eu alego que isso só prova que ele é tão humano quanto os demais, não porque seu raciocínio falhou, mas simplesmente porque ele apenas é ilógico quando o interessa ser. Nos demais casos, é infalível e imparcial (talvez atue em defesa do Universo como um todo indissociável, ainda não sabemos).

E é assim que eu salvo a série e dou-me permissão para divertir-me com ela. Não porque eu saiba identificar erros propositais de Sheldon Cooper, nem porque eu digo sim para tudo o que ele faz, mas porque me interessa interpretar dessa forma, e assim vou vivendo. Por exemplo, David Bowie pode fingir dar um chute no traseiro de seu guitarrista que eu tolero. Há todo um contexto ao seu redor que será necessário ele dar muitos chutes para destruir a imagem que faço dele. O que não significa que eu ache essa atitude digna, mas simplesmente porque: todo mundo erra, comete gafes.

Mas talvez ele possa fazer muitas outras bobagens que eu não me importarei. Tudo isso, gostar e não gostar é bastante arbitrário. Nem cotas as pessoas têm: mesmo que a barrinha de vergonha delas extravase, nossos motivos são unidades absolutas, e não funcionam com regras de aritmética. Não é possível subtrair nem somar pontos, e não deixarão de existir enquanto houver razão de ser que os sustente. Eu sei muito bem os motivos que me levam a gostar de Sheldon Cooper, e estão tão dissociados do quão não-engraçado sejam suas piadas que não me importarei.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Albatroz visitante

Foi assim que tudo começou. Ele veio se debatendo na nossa janela. Era um dia frio e tempestuoso. O mar estava agitado, as ondas chegavam a vários metros de altura e alguns barcos morriam despedaçados. "Um albatroz!", gritou Durvalina. Fraco, desengonçado, o mal tempo fizera ruína de suas asas. Abrimos a janela e ele entrou, desesperado. "Comam-me, vim do céu", foram suas últimas palavras. Seu corpo desabava no chão da cozinha. Cortamos a sua carne em cubos. Pusemos pimentões, batatas e cebola. Fervemos tudo até engrossar o caldo. O relógio soava meia-noite e os pratos fumegavam em cima da mesa. Foi a sopa mais gostosa que já havíamos tomado.

Presépio

Voltando para casa em meu carro-forte, de volta ao meu sobrado geminado, parei na loja para escolher os personagens de meu presépio. Todos teriam um lugar na história, inclusive eu, que não gostava de luzes. O seu papel seria o dos Reis Magos, indissociáveis em sua busca. Perdidos na estação rodoviária, mendigando informações a respeito dos portões de embarque para que uma a uma fossem formando o caminho. E uma vez de bilhetes nas mãos, partiriam, cegos e seguros. Jurando, porém, que a sua longa jornada era na verdade a sua própria busca, se dispersariam no meio do caminho, distribuindo olhares pelas vitrines, pelas escadas rolantes, pelas praças de alimentação, até que, um dia, se cansassem de seu desejo. E eu, já elencado em um cenário brejeiro e religioso, apagar-me-ia sob o monte de feno enquanto os Reis Magos,já sem suas posses e já sem suas iniciais vestimentas, confundiam-se à multidão, sem elo.

No entanto, não conseguia vislumbrar mais ninguém para os papéis restantes, nem mesmo um para mim. Na verdade, o elenco já estava completo. Acabei saindo da loja com apenas três bonequinhos. O presépio ficaria, assim, vazio, de modo que, quando enfim chegassem os Reis Magos, não encontrariam ninguém na manjedoura. Um preço que teriam que necessariamente pagar. Plantando, assim, a ilusão em seus peitos, eu dava-lhes cordas para que buscassem até que o mundo se acabasse. Confesso que a mim próprio causava-me estranheza, e, dirigindo absorto, não percebia que me perdia pelas ruas, cruzando semáforos sem olhar e assustando pedestres carregados de sacolas. "Quantos sapatos vermelhos você tinha que comprar?", eu gritei pela janela. Seria realmente excêntrico.

Mesmo assim montei o presépio na sala. Abri uma garrafa de champagne e esperei. No relógio, os ponteiros marcaram meia-noite em ponto, e, mesmo sem badalo, soou a noite. Abri a escotilha do porão e busquei mais provisões de vinho e pão. Não sabia quantos magos seriam, nem se sendo três reis magos não seriam na verdade já seis. Desabotoei o casaco que eu sempre quis ter e sentei. Enquanto esperava, fiz de mim peru assado, mingau de ervilha, arroz temperado. Tudo o que eu imaginava que alguém pudesse gostar. Deitei na manjedoura e cochilei. Se eu não conseguisse acordar, os convidados tocariam a campanhia e ninguém viria lhes abrir a porta. Ninguém comeria o jantar e ninguém entregaria os presentes. Pelas janelas fehadas do sobrado veriam que as luzes estavam apagadas e assim iriam embora. Era um risco que eu corria.

Mas era no ponto de ônibus que eu me encontrava, sozinho, olhando para um cachorro vagabundo que se abrigava debaixo de uma marquise. O presépio emudecia, vazio, no canto da sala, sobre o aparador. O que existia era a espera do último ônibus do dia. Fechei a jaqueta de tactel para mais perto do corpo, pois que fazia frio. Meu tênis impermeável não podia, contudo, evitar que a chuva molhasse o cano da meia que a barra curta das calças expunha. Os Reis Magos eu já tinha, embrulhados no fundo dos meus bolsos, e eu faria de tudo para que chegassem ao seu destino. Ao cobrador do ônibus ofereceria a minha alma e o meus antepassados. E se isso não funcionasse, lhe daria o relógio de pulso. E se não houvesse a trajetória, seria necessário entregar os próprios Reis Magos. Mas então de nada adiantaria chegar.

Entrei no ônibus, arrastando os calçados úmidos pelo chão metálico como se patinasse. Tentei abrir a janela, mas estava trancada, e embora eu tentasse desembaçar o vidro, conforme avançávamos, menos podia ver lá fora. Sentei os Três Reis Magos nos bancos da frente e um ao meu lado. Perguntei a um deles se esse era mesmo o ônibus certo, pois eu não conseguia ver o caminho. "Disfarça", ele disse, "que tem gente olhando pra você". Achei deveras tolo, pois no ônibus não havia quase ninguém, e, estando as luzes apagadas, não haveria como me reconhecer. "Presta atenção você", retruquei, "que da última vez você não conseguiu achar nem o endereço. E vê se faz bonito, porque não vai ter ninguém lá para lhe corrigir". E, de fato, quando enfim chegássemos, não haveria ninguém no presépio esperando.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Desertor porque desertor

Algumas situações me pegam pelo braço com a força de quem quer me ver famoso, fazendo sucesso como um artista de filme americano. Há outras, porém, que igualmente me pegam pelo braço. Sim, mas é para arrastar-me ao armário de limpeza, confundindo o meu lindo terno amarelo com pregas que o meu alfaiate levou semanas fazendo com o uniforme de algum agente da faxina; ou simplesmente porque eu estava parecendo um esfregão. Essa coisa de vestir peruca com tiras de pano retangulares e andar como se estivesse com as juntas das pernas imobilizadas; não funciona, como empiricamente comprovei.

Eu não sirvo para o papel de quem distribui o bolo. Eu nasci para comentar mal do bolo e fazer beicinho com o copo, para ornar a samambaia com os meus braços e jogar-me no chão aos berros: "Derrubaram suco na toalha! E molho também!". Meu coração se fatia quando é obrigado a dar sem amor verdadeiro. Eu digo para ele: "Coração, não se estrangule, não se mate". Mas ele está muito além de mim, e inevitavelmente se suicida para o escândalo dos demais órgãos vitais.

Quando me pediram para que eu distribuísse os copinhos de refrigerante tive vontade de ser a Shadowcat e ir-me lentamente afundando pelo chão até o térreo. Mas, como a gente é gente, e como tal nos sujeitamos a leis físicas e morais que não controlamos, tive de aceitar o encargo e comecei a distribuir. Após o quarto copinho, já estava com vontade de entorná-lo no conviva. Sinceramente, o refrigerante estava ali, sem zona de proibição ou de segurança, sem alarmes e atiradores de elite. Quem quisesse que atingisse a autonomia de pegar. Saí de fininho e não voltei, para longe desses seres prestativos e nocivos ao meu espírito.

Por quê? Porque o Murilo é um moço excelente que descobriu muito cedo que existe o nosso mundo e esse mundinho aí no qual vocês vivem. E lutou bastante para conseguir passar para o lado de cá. E passou. Porque o Murilo não é moço de ficar distribuindo bolinho, copinho de refrigerante... Nasci para ser uma ponte, um rio e só, enrolado em zibelina e fazendo barquinhos de dinheiro. Quanto ao resto, que se limite a  pagar o meu táxi, ou, se preferir, a minha passagem de ônibus, que não sou assim tão ruim que não consiga sustentar ares de paciência e benignidade.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Eu vos apresent... Ei!

Aforismas do Dr. Cebola:
I - "Nas gôndolas não hesitar, no sol não bobear"
II - "Para um bom caldo, coração não basta"
III - "Doença de alma se arranca pelo nariz"
IV - "Eu não sei, não, mas terra boa mesmo é só da nossa hortinha"
V - "Cebolinha, por que tão caprichosa se é teu o meu tempero?"

Agendinha do Dr. Cebola:
Segunda-feira: Dia Feliz - não trabalhar
Terça-feira: Insurgir-se contra o sistema
Quarta-feira: Feira do produtor com a Dona Marta
Quinta-feira: Olhar a chuva
Sexta-feira: Dormir na terra
Sábado: Sopa no jantar, tempero na carne, rodelas na salada
Domingo: Renascer da mãe-terra

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Florença

Eu estava aqui pensando em como enciclopédias e livros de história abusam da expressão "cidade florescente". Né? Qualquer vilarejo com quinhentos habitantes torna-se "cidade florescente" se está às margens do Mediterrâneo e vende azeite ou cerâmica. Como é que pode? Toda cidade com que me deparo e lá está: florescente cidade ou expressão equivalente. Qual é o critério afinal? Repentino inchaço populacional? Mas daí, iluminando-me mais um pouco, eu pensei: mas é claro, né, Murilo. Você esperava o quê? Que os livros mencionassem as cidades medíocres? "Mitzbeu'h Am-Zalam: surgida no ano de 2.000 a.C às margens do Pirapó. Criavam ovelhas. Submeteram-se a toda e qualquer potência regional. Nunca se rebelaram. Inicialmente com cerca de 15 edifícios, hoje conta com 13. Sem expressão política ou cultural. Uma vez tentaram construir uma biblioteca mas o projeto não chegou a ser votado pois a população havia se recolhido nas cavernas durante as enchentes ocorridas naquela época". Não, né? Der... O que fica nos registros históricos são as cidades florescentes, e mesmo as decadentes pressupõem esplendor em algum momento de sua história. As medíocres, as inexpressivas só servem mesmo como curiosidade arqueológica, e poucos se ocuparão delas.

Conclusão: Há que se esperar o ato de molhar o bico.