sexta-feira, 13 de maio de 2011

Presépio

Voltando para casa em meu carro-forte, de volta ao meu sobrado geminado, parei na loja para escolher os personagens de meu presépio. Todos teriam um lugar na história, inclusive eu, que não gostava de luzes. O seu papel seria o dos Reis Magos, indissociáveis em sua busca. Perdidos na estação rodoviária, mendigando informações a respeito dos portões de embarque para que uma a uma fossem formando o caminho. E uma vez de bilhetes nas mãos, partiriam, cegos e seguros. Jurando, porém, que a sua longa jornada era na verdade a sua própria busca, se dispersariam no meio do caminho, distribuindo olhares pelas vitrines, pelas escadas rolantes, pelas praças de alimentação, até que, um dia, se cansassem de seu desejo. E eu, já elencado em um cenário brejeiro e religioso, apagar-me-ia sob o monte de feno enquanto os Reis Magos,já sem suas posses e já sem suas iniciais vestimentas, confundiam-se à multidão, sem elo.

No entanto, não conseguia vislumbrar mais ninguém para os papéis restantes, nem mesmo um para mim. Na verdade, o elenco já estava completo. Acabei saindo da loja com apenas três bonequinhos. O presépio ficaria, assim, vazio, de modo que, quando enfim chegassem os Reis Magos, não encontrariam ninguém na manjedoura. Um preço que teriam que necessariamente pagar. Plantando, assim, a ilusão em seus peitos, eu dava-lhes cordas para que buscassem até que o mundo se acabasse. Confesso que a mim próprio causava-me estranheza, e, dirigindo absorto, não percebia que me perdia pelas ruas, cruzando semáforos sem olhar e assustando pedestres carregados de sacolas. "Quantos sapatos vermelhos você tinha que comprar?", eu gritei pela janela. Seria realmente excêntrico.

Mesmo assim montei o presépio na sala. Abri uma garrafa de champagne e esperei. No relógio, os ponteiros marcaram meia-noite em ponto, e, mesmo sem badalo, soou a noite. Abri a escotilha do porão e busquei mais provisões de vinho e pão. Não sabia quantos magos seriam, nem se sendo três reis magos não seriam na verdade já seis. Desabotoei o casaco que eu sempre quis ter e sentei. Enquanto esperava, fiz de mim peru assado, mingau de ervilha, arroz temperado. Tudo o que eu imaginava que alguém pudesse gostar. Deitei na manjedoura e cochilei. Se eu não conseguisse acordar, os convidados tocariam a campanhia e ninguém viria lhes abrir a porta. Ninguém comeria o jantar e ninguém entregaria os presentes. Pelas janelas fehadas do sobrado veriam que as luzes estavam apagadas e assim iriam embora. Era um risco que eu corria.

Mas era no ponto de ônibus que eu me encontrava, sozinho, olhando para um cachorro vagabundo que se abrigava debaixo de uma marquise. O presépio emudecia, vazio, no canto da sala, sobre o aparador. O que existia era a espera do último ônibus do dia. Fechei a jaqueta de tactel para mais perto do corpo, pois que fazia frio. Meu tênis impermeável não podia, contudo, evitar que a chuva molhasse o cano da meia que a barra curta das calças expunha. Os Reis Magos eu já tinha, embrulhados no fundo dos meus bolsos, e eu faria de tudo para que chegassem ao seu destino. Ao cobrador do ônibus ofereceria a minha alma e o meus antepassados. E se isso não funcionasse, lhe daria o relógio de pulso. E se não houvesse a trajetória, seria necessário entregar os próprios Reis Magos. Mas então de nada adiantaria chegar.

Entrei no ônibus, arrastando os calçados úmidos pelo chão metálico como se patinasse. Tentei abrir a janela, mas estava trancada, e embora eu tentasse desembaçar o vidro, conforme avançávamos, menos podia ver lá fora. Sentei os Três Reis Magos nos bancos da frente e um ao meu lado. Perguntei a um deles se esse era mesmo o ônibus certo, pois eu não conseguia ver o caminho. "Disfarça", ele disse, "que tem gente olhando pra você". Achei deveras tolo, pois no ônibus não havia quase ninguém, e, estando as luzes apagadas, não haveria como me reconhecer. "Presta atenção você", retruquei, "que da última vez você não conseguiu achar nem o endereço. E vê se faz bonito, porque não vai ter ninguém lá para lhe corrigir". E, de fato, quando enfim chegássemos, não haveria ninguém no presépio esperando.

Um comentário:

Nina. disse...

olha...eu gostei muito!