segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Nossa imagem de glória

Antes que outro alguém resolva ter a mesma idéia, deixo já aqui registrado para que no futuro todos reconheçam a grandiosidade e o pioneirismo de meu pensamento. Um pouco que se assiste de Discovery Channel já basta para perceber que a concorrência no campo está crescendo, e cada vez estão mais ousados, e acho que chegou a minha vez de tomar parte. Os projetos vão desde cobrir as geleiras do Pólo Norte com capas de cor branca, a infestar os mares com navios onde se produziria energia solar. Eu, ao meu turno, não decepciono. Bem é verdade que de tanto eu repetir já deve ter ficado enjoativo, porém ainda não há registros sólidos o suficiente que possam resistir à minha morte. No máximo tenho ouvintes esporádicos que, muito provavelmente, não espalharão a minha boa-nova, nem se importarão em mencionar a minha autoria. Sim, uns malditos. Entretanto, eu mesmo já estou trabalhando para enviar essa mensagem em ondas de rádio e fazê-las propagarem através do espaço.

Bom, a questão é: encontrar novas formas de produção de energia que sejam ao mesmo tempo eficientes e limpas. A energia solar e eólica, embora limpas, são muito caras e ineficientes comparadas com, por exemplo, a energia nuclear. Então resolvi olhar um pouco mais para cima, e lá encontrei a Lua, vagando vagabundamente ao redor da Terra. Pensei: por que não fazer de seu inaproveitado movimento orbital uma solução para o problema do aquecimento global? Por óbvio que não estou insinuando painéis que captariam a luz lunar, embora isso seja particularmente interessante. Mas acho que estou me demorando. A minha idéia é bastante simples. Sugiro a construção de uma ferrovia ao redor do planeta, que atravessaria oceanos e continentes inteiros. Uma imensa locomotiva percorreria seus trilhos, fazendo girar milhares de gigantescas turbinas construídas ao seu redor. Pergunta: e qual seria seu combustível? Resposta: Nenhum. Através de um cabo amarrado à Lua, enquanto esta orbitasse naturalmente a Terra, moveria a locomotiva ao longo dos trilhos, em uma velocidade espetacular. Eficiência: total. Conseqüências para a natureza: nenhuma, a não ser a gradual desaceleração de nosso satélite, o que, mesmo assim, demoraria muito tempo para que sofresse uma significativa redução.

O meu projeto possibilitaria, além de uma eficiente e limpa produção de energia, um rápido sistema de transporte ao longo de todo o Equador, conectando populações de diferentes regiões, como África, Brasil, Indonésia e... Bom, se é verdade que o slogan "conectando regiões pobres a regiões pobres" não é muito atrativo, certamente a imensa produção de energia é. Teremos problemas? Nem tudo é perfeito, eu direi. Se haverá certa dificuldade em imaginar como seria o embarque e desembarque desse hipotético trem, uma vez que não há como parar ou sequer freá-lo, penso que se as populações do século passado puderam acostumar-se aos bondes, nós também conseguiremos. Da mesma forma, deve-se levar em conta que este é apenas um esboço, e será fácil imaginar como podemos aperfeiçoar o sistema através de um engenhoso sistema de roldanas, possibilitando não apenas uma locomotiva, mas muitas, que poderiam percorrer diferentes latitudes e, até mesmo, longitudes.

Ademais disso, pense no espetáculo que não será nosso mundo se nós, ao longo dos trilhos e dos cabos, criarmos um sistema de iluminação que poderia ser vista do espaço. As civilizações alienígenas hão de reconhecer que conseguimos transformar nosso planeta no mais divertido do Universo, e que, no final das contas, não somos tão patéticos assim se podemos fazer da Terra um imenso brinquedo (pense nas montanhas-russas, nas rodas-gigantes, tudo movido a energia lunar).

Bom, é isso. Ainda estou hesitante quanto a contactar o Discovery Channel. Minha promessa? Um futuro de energia lunar, muitas luzes e glória sobre trilhos e loopings em alta velocidade.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Fantasma das águas

Atado à cauda em brumas de trêmulo peixe
Sobre as mesmas pedras sibilante circulo
Qual fantasma sem sonhos de lúgubre azul
Que no vazio das órbitas fundas em luto
Sacode-se desfeito em véus sem som ou luz
Dos frios cristais contra o meu peito insepulto.

O meu crânio ardeu ébrio do noturno trago
Os mudos lábios desvanecidos em névoas
Nas bordas em lâminas de um cálice incauto,
E soturnas contornaram as rodas férreas
O périplo das estrelas mortas nos passos
Descarnados do destino fremente em trevas.

Agitam-se as palmas áridas e sem cor
Atrás do vitral partido em vozes sem rosto
Que murmurantes rastejam folhas de sangue
Em vão pelas réstias esquecidas dos rotos
Vórtices de sol acendidos sobre o estanque
Lago onde agora jazem em sombras envoltos.

Antes jamais houvesse em fulgor fustigado
Pelos cabos gotejantes de claros ventos
Tremeluzente íris de tergiverso fado
Sobre o orvalho esvoaçante em meu degredo,
Do que saber-me agora em cinzas transtornado
Dos ásperos anéis de cobre ferrugento.

Fantasma que em pálidos sussurros transpõe
A garganta das escuras águas moventes
Em lentos braços agonizantes em vida,
E os gélidos pés que em desalento dormentes
Vão-se vaporosos pelas rochas esguias
Do cálido seio feito pórtico ausente.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Uma história de lágrimas e panquecas

Eu vivia em uma cidade pequena, no interior da província. Fazia trabalhos com ferro e usava uma banheira para cozinhar a sopa, a mesma que Tom e Fran de vez em quando alugavam para tomar banho. Um dia alguém levantou uma pedra à beira de um regato e descobriu a minha cidade. Não houve manchetes, apenas uma transmissão local de um rádio amador, que nunca foi ouvida, pois a mocinha que costumava ouvir naquela estação tinha se levantado para ir ao banheiro. De todos os habitantes, eu fui o primeiro a saltar, e por isso eles me chamaram de João I. No início isso deixava as pessoas um tanto confusas, e facilmente eu era confundido com alguma espécie de monarca, o que, claro, trazia uma série de regalias gastronômicas, culturais e geológicas. Mas logo eles começaram a perceber que monarca algum andaria vestido em um saco de batatas, e monarca algum ofereceria um balde de madeira para as visitas sentarem. Então, quando eu já não convencia a mais ninguém, fui expulso da Corte e forçado a trabalhar para viver.

Arranjei um trabalho nas minas de ouro e assim permaneci durante anos. Todas as manhãs partia em um vagão e não retornava até que estivesse cheio. Infelizmente não fiquei rico, pois gastava todo o ouro na construção de um navio de madeira. E quando finalmente ficou pronto, chegaram-me notícias de que já não havia mais ouro no oeste americano, e desisti de minha viajem. Era uma tarde de sol e fiquei olhando desconsolado para o meu navio de madeira, que já não serviria para mais nada a não ser atração turística ou ponto de encontro para bêbados. Então o desmontei e construí uma panquecaria. Era a única coisa que eu sabia fazer e precisava ganhar dinheiro. Ao lado ergui uma torre de madeira, que era onde ficaria o meu quarto. Você podia subir por uma corda de cipó e depois descer por um tronco em forma de espiral. Também havia uma escada, mas não era muito eficiente, pois em alguns pontos havia faltado tábua. Tinha uma vista que alcançava toda a baía, e de noite eu recebia astrônomos de todos os cantos do país, pois, diziam, era um lugar muito propício para ver as estrelas. Passei assim a vender panquecas a preços módicos. Tinha de framboesa, chantilly e frango com milho. Também vendia cerveja e mariscos cozidos, que não eram lá essas coisas, mas as pessoas comiam. Elas não conheciam mesmo o que era uma cozinha limpa e por isso não se importavam. Nem eu.

Um dia eu estava passeando pela praia, colhendo mariscos para o jantar, quando vi um velho marinheiro sentado em uma pedra. Olhava para o que restava do sol e voltava a esconder o rosto entre os seus braços, chorando. Ele tinha uma barba muito grande e negra. Aproximei-me e perguntei-lhe se acaso a minha vista era o motivo de seu pranto. Ele então me respondeu algo em norueguês, e voltou a chorar copiosamente. Passei o meu dedo nos cantos de seus olhos e experimentei. Tinha um gosto bom e ao mesmo tempo amargo. Resolvi pôr em minhas panquecas. Foi um sucesso. Todas as noites as pessoas vinham à minha panquecaria, e noutro dia sempre voltavam, querendo mais e mais. Foi então que em menos de uma semana os casos em toda a cidade começaram a ocorrer. Todos os dias centenas de pessoas dirigiam-se à baía e atiravam-se ao mar, convulsionadas de uma estranha querência que não podiam satisfazer ou explicar. Eu tentava impedi-las, mas elas me empurravam, presas em seu profundo e incompreensível delírio. Gatos, mulheres e crianças. Foram-se todos, levados pelas ondas, angustiados de uma saudade que não podiam aplacar, os seus corações apertados e vivos como nunca o foram.

Meu Deus!, eu pensei, olhando a cidade vazia ao meu redor, apenas as casas e as suas portas mudas. Sem saber o que fazer, corri para a capela que ficava no topo de um pedregulho, dependurada em direção ao mar. Abri as portas de madeira, que já estavam velhas e rangeram de um jeito medonho, e entrei, pálido e já sem olhos para o mundo. Minhas pernas estavam bambas como maria-mole, e tombei sobre o chão empoeirado, com a mão apertando um bilhete sem número, sem sorte. Não sei por quantos dias dormi. Acordei com um barulho que vinha do vitral, logo atrás do púlpito, como se alguém quisesse entrar. Havia sombras coloridas mexendo-se atrás do vidro, e por um instante cheguei a pensar que eram as pessoas que voltavam do mar. Mas eram apenas pombos, que levantaram vôo assustados quando abri a janela. Olhei para a brisa e assim permaneci por uma semana ou mais, salgando as minhas narinas. Então despedacei o meu bilhete no vento, que na verdade era onde eu havia escrito o nome de quem havia limpado as minha botas há muito tempo atrás, e voltei para casa, arrastando os meus sapatos de madeira pela noite.

O tempo passou e hoje eu trabalho na cabine da estação de trem. Vendo passagens de ida, ida e volta, e volta. Para Zurique, Milão ou Petrópolis. Pelas catracas eu fico espreitando o senhor de olhar estranho que todos os dias pega o trem das seis para trabalhar. Por um momento pensei que esta manhã estivesse zangado comigo, ou apenas chateado. Eu realmente não sei. Acabo de botar um recado em sua carteira enquanto ele procurava os óculos, como quem arma uma bomba. E quando ele embarcar no trem e sentar-se no lugar de costume, vai conferir a sua identidade e vai ver que há também um papel cuidadosamente embrulhado. E quando ler, vai voltar e devolver-me como se fosse uma dinamite de pavio aceso. De vez em quando, no banheiro, eu olho por aquela janelinha redonda, e fico a observar se aparecem sombras como aquelas que vi no vitral da capela. Antes de dormir, eu ponho uma vela em minha cabeceira e fico escrevendo sob a sua meia-luz os nomes dos que partiram pelo mar. Depois eu sempre acabo esquecendo eles nos bolsos ou devolvendo sem querer junto com as moedas do troco.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Perfunctório cenho

Filosofias utilitaristas são bastante razoáveis. Eu mesmo raramente consigo evitar um pensamento utilitarista, e freqüentemente acho que o útil é sempre o melhor critério para tomar decisões. Mas é uma idéia tão feia que eu prefiro tangê-la só de leve, e quando tento me esquivar, pareço mais como alguém que sustenta bolinhas de Natal no ar. Fútil? Talvez. Mas veja pelo meu ponto de vista. Se tudo está lentamente se deteriorando (tudo, tudo mesmo), então não é lógico concluir que toda utilidade no fim será inútil? Meus valores são muito melhores, ainda mais quando me pego no mais flagrante pensamento acrítico, e não se preocupam em serem úteis, pois sabem que tudo termina e que nenhuma utilidade pode ser útil por muito tempo. Não é difícil imaginar como o útil pode levar a uma conclusão absolutamente absurda, dependendo apenas do ponto de partida que se toma.Se visássemos apenas o útil, restaria saber a que fim.

Por exemplo, o Estado não precisa submeter toda a população a uma cirurgia nos olhos para que vejam tão somente em preto e branco e assim não precisem mais gastar dinheiro com tintas. Mas se o fizesse, não estaria sendo útil? Afinal, gasta-se muito tempo, imaginação e recursos naturais com algo que pode ser dispensado. Da mesma forma, o Estado não precisa ser uma agência bancária onde você pode sacar mensalmente a sua parte nos lucros. E se assim fosse, também aqui não se vê na justificação do Estado como uma utilidade para o indivíduo? Não é isso ser útil? Mas o Estado não é o cocho do povo, nem tampouco é uma espécie de forno que precise ser constantemente alimentado. Não, Estado. Senta aqui que eu lhe explico: você não é apenas uma utilidade, nem é um fim último como é a fabricação de um móvel para um carpinteiro. Você é um fim que, digamos, consuma-se a cada instante. Bom, na verdade nunca se consuma, nem mesmo você é um fim, e o verbo melhor seria: Estado, você se realiza. O Estado não é somente uma utilidade para mim e para você, mas algo que se realiza. Se bem que acaba de ocorrer-me que isso pode não ser mais verdade quando todo o aparato estatal for controlado por robôs, e é bom não duvidar.

De qualquer modo, estarei aqui: "Eu jogo golfe assim. Você joga assim" [dá uma rebolada e finge acertar uma bola com o taco]. Por que mesmo? Porque eu acho que a minha opinião nunca vai ser lá muito fixa, e, no entanto, estarei esperando, nos jardins do monastério, depois do arco de pedra, atrás do carvalho sem rosto.

domingo, 21 de novembro de 2010

Bem melhor

Oh! Por favor, Mr. Bonestell, assim você me comove! Não devemos alimentar nossos sonhos com semelhantes emoções, ainda mais quando a sua realização mostra-se bastante nebulosa. Mas quem sou eu para jogar uma pá de areia em cima? Eu mesmo venderia todas as minhas jóias e... Bom, eu não tenho jóias. Mas eu daria todo o meu ordenado e... Sei que o dinheiro que eu tenho é obviamente insignificante, e mesmo que eu fosse rico eu não poderia fazer volume frente aos recursos exigidos para tal empreitada. Então darei meu sincero e caloroso apoio (o que já vale por si, diga-se de passagem).











E por falar em viagem tripulada a Marte... Fico a pensar quão tolo é opor qualquer objeção a empreendimentos dessa natureza alegando que os recursos exorbitantes de que carecem poderiam ser melhor empregados na solução de problemas urgentes. Sei que resolver a fome na África ou em algum cantão de sua cidade realmente parece de suma importância. E, para ser sincero, eu também acho. Mas ora, a fome sempre é e sempre vai ser um problema de primeira necessidade. Ir ao banheiro também. Pode gastar quanto dinheiro você quiser para abafar tudo isso, mas amanhã isso tornará a ser uma necessidade de igual urgência. Marte pode até esperar, mas a troco de quê acham que existe algum objetivo na vida? A vida pode até ser um bem, mas fim eu tenho certeza que não é, e ninguém que eu saiba age de forma diferente.

Além do que, há tantos outros recursos que poderiam ser mais bem direcionados para garantir a vida de todos (e eu não vou nem falar dos gastos militares) que é uma maldade botar esses olhos de mendigo em cima do orçamento das agências espaciais. Na verdade, a maioria das coisas são inúteis para garantir a vida, a começar pelo seu cachorro e o seu xampu; e olha que estou sendo bonzinho. A vida não é mesmo muito exigente, e poderíamos muito bem sermos condicionados em cápsulas, mergulhados em algum líquido especial, com simuladores ligados ao nosso cérebro. Uma viagem a Marte, ou mesmo a construção de um jardim enorme e suntuoso em nada têm de essencial, não prestam a garantir a sobrevivência, e tanto melhor seria se fossem uma horta. Entretanto, os recursos são igualmente abundantes, e há espaço de sobra para empreendimentos fúteis. Muito mais do que abundante, daria para reproduzirmos à vontade palácios de Versailles, sem que isso implicasse necessariamente em fome.

Mas mesmo que não houvesse recursos o bastante, eu venderia minhas jóias (se eu as tivesse) e passaria meus dias com um sanduíche de manteiga no estômago se isso fosse necessário para permitir uma viagem a Marte. E a conclusão a que eu chego disso é que tanto melhor é um empreendimento quanto mais fútil ele for à vida. A vida, que nem mesmo chega a ser um valor, pode ser de qualquer um, é mesmo invariável, substituível. A vida de hoje será a mesma de amanhã, com algumas leves alterações genéticas conforme o vir das gerações. Mas viver por viver não é bem a nossa especialidade, e a maioria dos seres vivos fazem isso de uma maneira muito mais eficiente. Precisamos de viagens a Marte não porque isso dê algum sentido a tudo, mas porque... é legal.

sábado, 20 de novembro de 2010

Sobre a toalha

Eu, aqui, lentamente estirado sobre a mesa de jantar, entre o pudim de leite e o que restou do ensopado de camarão, seguro resignado a vela acesa sobre o meu peito, suando de tédio e tristeza. Os outros riem, parecem mesmo felizes, nunca pensei que uma festa pudesse ser assim... alegre. Mas eu não. Desde que me fizeram sou pesado, carregado demais, duzentos gramas de gordura em cada dobra de meus lábios. O que me conforta é essa bandeja, embora a posição não é das mais agradáveis. Pobre ensopado de camarão... Foi o primeiro a ser dilacerado, vilipendiado, chafurdado no tumulto dos convivas. Pouco restou. Havia algo nele de distinto que me encantava, mas agora jaz irreconhecível em algum lugar, sem que tivesse a chance de nos ser apresentado como se deve. Olho para eles e não vejo nada que justifique isso. Se ao menos fossem mais altos e magros, se ao menos suas maneiras fossem mais altivas e delicadas, talvez fosse compreensível essa sem-cerimônia com que tratam tudo ao seu redor. Não os detesto, por óbvio... Nutrir semelhante sentimento está muito aquém de meu papel. Eu não diria isso de ninguém aqui. Exceto pelas crianças. São inconvenientes, babam, beliscam, não têm pena de mim. Seus olhos têm um quê de leviano, uma ousadia de gente gorda, mais imprudente do que sagaz. São desastradas como galinhas e impertinentes como cabelo no macarrão. Gostaria que parassem de me fitar, pois já está ficando excruciante suportar esses olhos famintos, úmidos de ingenuidade e pouca sensatez. Gostaria que um piano de cauda caísse em cima de seus dedinhos. Uma mulher muito encorpada e coberta de colares tenta mantê-las afastadas e comportadas. Mas que preceptora mais indolente... E que pescoço musculoso. Deveria ter vergonha de vestir um decote tão aberto; poupasse-me de mais uma cena grotesca. E as crianças simplesmente não se contêm. Onde estão seus pais, afinal? Ah, claro... Conversando, naturalmente, atrás da samambaia, escondidos atrás do pilar, refugiados na sala de televisão e fingindo não ouvir o choro que vem pela janela. Gostaria que pianos de cauda caíssem sobre suas cabeças também. Sério, elas estão dando-me aflição. Olhem, vejam! Um delicioso pudim de leite! Não, elas não estão muito interessadas em pudim. Também... Esse jeito pálido e doentio não deve mesmo fascinar mentes selvagens. Selvagens gostam de brilho, explosões, coisas assim que se mostrem por si mesmas sem grandes esforços. Mas sinto que... Sinto... Nem todo o glacê do mundo poderia confortar-me. Tudo é tão breve e confuso. Mal entrei e vi-me cercado de conversas ininteligíveis e descabidas. Eu poderia escrever em meu diário: "Querido diário, hoje assisti inerte o massacre do ensopado de camarão, e descobri que odiar é querer que um piano de cauda caia sobre os dedos de alguém". Mas não tenho tempo. Agora estão todos reunidos ao redor da mesa, apagaram as luzes e entoam vivas ao dono da festa. Olho para o pudim de leite, mas ele mesmo parece estar triste demais para conversar. Um profundo pesar desceu sobre a mesa de jantar, em meio a uma salva de palmas e assobios. Queria ao menos que o fim não fosse esse fim, seco e incoerente, como se mostrassem a nós que os arquivos da memória não passam de documentos de papel, tão frágeis quanto seus autores. Se o mundo fosse maior do que essa toalha lambuzada de molho... Onde poderei encontrá-lo, pudim de leite? Tão distante e incomunicável, assim nos puseram. Creio que devo dizer que em toda a minha vida nunca vi gênero mais belo, como tudo aquilo que porta a debilidade do ser. Adeus, pudim de leite, adeus. Esses lábios, sensuais como a morte, posso já sentir a longa inspiração que se anuncia. Ele fecha os olhos, aproxima-se, eu também fecho os meus e contraio as minhas camadas. Se o seu desejo não é o mesmo que o meu, ao menos que nossos sonhos sejam feitos da mesma matéria. Adeus, pudim de leite. Eu... um bolo... de aniversário. Morrer, enfim.[A vela se apaga]

sábado, 13 de novembro de 2010

Nós, felizes na soleira,

De braços caídos como os de um chimpanzé. Sei que parece loucura - oh, eu sei! -, mas olhe ao seu redor. Vamos... oooolhe. Não resta muita coisa, vê? Bom, é claro que certamente tem aquela sorveteria ali do outro lado, e - veja só - bibliotecas, museus e um clube de ioga a menos de trinta metros de sua casa. Entretanto, entretanto... Não há nada ali exceto a poeira das eras, e o fluxo causal da história carcome suas já porosas bases. É o que dizem, e eles sabem dizer muitas coisas. Era essa a liberdade que queriam lhe propor, livre como um vento é no campo? Bom, eu até poderia desenhar uma cena muito bonita de você flutuando como um espírito em meio às ruínas, as ruínas de algo que você jamais chegou a tocar e que nem mais venera, e talvez sequer enxergue. Mas eu tenho algo melhor (mesmo porque eu não sei desenhar). Eu, na verdade, iria elaborar tudo em forma de receita - para ir fazendo agora mesmo, nesse instante, mandar você pegar os ingredientes que certamente tem no armário, acompanhar as minhas instruções -, mas penso que o fogão anda um tanto ocupado. Agora mesmo Dona Borboletinha está mexendo o tacho de chocolate, e não vamos atrapalhar-lhe o afazer. Dona Baratinha chega às sete para o desjejum, e a mesa já está posta com a jarrinha de orvalho e o pote de compotas de pólen. Deixemo-la em paz. [Introibo].

Você acorda todas as manhãs de sábado ansiosamente para encontrar o seus amigos, e quando chega no playground, o que encontra? A quadra está alagada. Os balanços estão enroscados de uma maneira inextricável. O salão de festa está alugado para uma conferência presbiteriana. E, para coroar, Sauron novamente ficou preso nos galhos do pé de pitanga - e nós temos medo dele. Então você volta, desanimado, e chama o elevador. No entanto, o elevador demora séculos, pois aparentemente alguém apertou todos os botões, e agora ele descerá lentamente de andar a andar. Você, então, tenta ir de escadas, mas acaba tropeçando em seus cadarços, que estavam misteriosamente amarrados um no outro, e despenca pelos degraus. Você se pergunta: o que é isso, Murilo?

É o seu porteiro. Como todos sabemos, os porteiros pertencem a uma antiga linhagem de nobres que foram destituídos de suas propriedades e de seus títulos nobiliárquicos quando do advento das repúblicas. Tal os deixou em uma situação bastante constrangedora, sendo forçados a abandonarem os salões e a dormirem em caixinhas de fósforos. Só lhes restaram, como um resquício de nostalgia e piedade, as suas xícaras de porcelana e algumas jóias, que levaram consigo em baús de madeira em sua viagem para a América. Todas as manhãs eles revivem sua antiga glória, vestindo suas perucas e seus gibões de musselina, seda ou veludo, dependendo do fetiche. Fazem pôr em suas mesas suas melhores xícaras, desenhadas a ouro ou pintadas a mão em algum país do Oriente. Depõem as jarras de mel, chá e leite, e bebericam fazendo consoantes francesas, vogais italianas e fungadas inglesas.

Porém, as xícaras não são conhecidas por sua durabilidade. Vão-se quebrando ao longo de seu uso. E, infelizmente, esse também é o destino das xícaras dos porteiros. Por mais arabescos que tenham, por mais encantos e prazeres que despertem, tal não impediu que fossem se perdendo, até que todo o armário ficasse vazio. E suas mesas já não podiam ser decoradas, nem a cerimônia podia prosseguir, e o sonho morria, assim, em estilhaços de porcelana. Esse é o motivo do mau-humor de seu porteiro, o que provoca a sua ira e sua irritação, a despeito de jamais ter afetado suas boas maneiras. Eles não porão uma nota de ressentimento embaixo de seu travesseiro, nem farão confidências. Seu jeito de punir o mundo por sua desgraça é sutil e revela-se secretamente, por detrás do retrato de parede e de dentro do relógio.

O que fazer? Comprar um novo jogo de xícaras? Não me faça isso, não seja tão tolo! Aceitariam com toda a amabilidade do mundo, pois são nobres, mas acabariam jogando no lixo ou mostrando mais tarde aos seus companheiros e fazendo piada com as coisas que os plebeus encontram nas lojas. Nem que você tivesse dinheiro o suficiente para encontrar um jogo inteiro feito no séc. XIX. Não é aconselhável. Se sentiriam humilhados por serem presenteados com artigos que, teoricamente, são de primeira necessidade e devem ser adquiridos com seu próprio provento.

O único jeito é dançar. Sim, dançar. Não uma dança qualquer, mas uma dança medieval, aquela que é basicamente um movimento de cortejo. Mostre-se genuinamente interessado em ter a honra de dançar com seu porteiro, e - pelo amor de Deus - finja o máximo possível que vocês estão a pelo menos três séculos atrás. É essencial que você fantasie uma cena da nobreza, digna de um salão, a fim de que ele possa sentir-se deliciado em relembrar seus tempos de glória. Arranjar o figurino é essencial.

Feito isso, é bem provável que ele se sentirá tão enlevado que pegará de seu esfregão e, após ungi-lo com a água do balde, tocará levemente em seus ombros e o nomeará Cavaleiro do Edifício Tibagi. É também provável que amanheça debaixo de sua cama um baú de jóias e um pôster de um castelo da Romênia ou da Síria - tudo dependerá do contexto.

PS: Eu ainda não sei como faz para tirar o Sauron do pé de pitanga. Aparentemente, isso não é obra dos porteiros, mas uma espécie de fenômeno natural que ocorre geralmente após a chuva.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Nesse fim de mais uma era

O que dizer? O poder simplesmente me fascina. Foi com grande pesar que depositei o meu crachá sobre a mesa, e só o fiz porque me pediram, pois, se tivessem esquecido o protocolo, teria levado comigo para casa, assim como fiz com a caixa de correios e o poste de luz. E, agora que meu peito está nu, sinto-me oco de verdades, as quais tão bem soubera erigir sobre as costas alheias, como quem pendurasse, a cantarolar contente consigo, os enfeites de Natal nos galhos de um pinheiro. Mas sem as medalhinhas assim é melhor, pois até já consigo ver a cor de minha blusa. E eu mesmo não era um pinheiro de Natal? Ah desconsolo... Antes jamais houvesse saído do campo, onde eu arava a terra sem reclamar, tendo como única preocupação a hora do almoço em que, ávido, tomaria de meu pão e de meu café, largados a um canto à sombra de uma árvore e enrolados numa trouxinha de bolinhas vermelhas presa a um cabo de vassoura. Mas agora é tarde, e ter visto e sentido uma única vez bastaram para que eu nunca mais passasse um dia sem voltar os meus olhos para aquela direção.

Quantas e quantas marcas não deixará isso para o resto de minha vida - fico a pensar. Ainda bem velhinho, em uma tarde quente de dezembro, posso imaginar-me ministrando uma pequena palestra em uma sala de um colégio municipal  - as crianças apoiadas em suas carteiras, algumas babando, outras deixando cair sonolentas suas cabeças para trás, a professora encostada a um canto mordiscando uma maçã - E, então, diria que "en dos mily des, dos mily des, en uma amena prrimaverra, eu fui convocado parra trrabalhar como 2ª Mesárrio na seçión 44. Non nos derron água nem sanduhiche, apenas uma dinherro inutil que não podia serr gasto em lugarr algun". E narrar-lhes-ia todos os procedimentos realizados naquela eleição, desde o momento em que ligamos as urnas eletrônicas até a contagem regressiva para as cinco horas, quando, muito emocionados, brindamos o fim em copinhos de plástico, transbordantes do café que a 1ª Mesária havia trazido de casa. Sim, o fim de uma era. Certamente, aos meus olhos nebulosos e contemporâneos, não sou ainda capaz de compreender a extensão de minha perda, e só realmente o saberei quando, sentado em minha cadeira de balanço a ler o Código Eleitoral, estalar-me de súbito e quase desprevenido o entendimento de que o que eu tinha em mãos não eram prerrogativas ou "idéias legais", nem mesmo privilégios ou títulos aleatórios de nobreza. "Eu portava Autoridade", direi eu, enfim, quase num balbucio, deixando cair de minhas mãos trêmulas o pequeno volume.

Eu era feliz e não sabia. As minhas ordens eram prontamente obedecidas, sem hesitação ou questionamento, e esse é o verdadeiro sentido da Autoridade. "Assine aqui", eu dizia, e a pessoa assinava. "Mostre-me seu título de eleitor", e a pessoa seria capaz de fornecer-me até a senha de seu orkut. "Abram passagem para o Segundo Mesário", eu anunciava, dando pancadinhas com minha bengala em suas pernas e forçando-as a abrir um corredor em meio à multidão. "Não lata para um funcionário público, animal tolo", e o cachorro abaixava suas orelhas e retornava a sua casinha sem voltar-me as costas. Ah... a Autoridade: tão doce e ao mesmo tempo tão penosa... Bem é verdade que há sorvetes de nuvens, manjares de cereja e sanduíches de chantilly. Entretanto, meus caros, há responsabilidades de cujas forjas as mãos jamais sairão ilesas, e o peso desse encargo acompanhar-me-á pelo resto de minha vida, até que todos os meus ossos tenham virado pó e até que o meu nome tenha sido apagado de todos os livros e de todos os anais. Em meu túmulo, escreverão o epitáfio: "Aqui jaz o Segundo Mesário, cuja responsabilidade ainda paira sobre as Eleições de 2010". Então, viúvos da Terra e do Céu, dirão consternados ao vento, as lágrimas confundindo-se à chuva, enquanto meu caixão desceria lentamente ao profundo jazigo: "A Autoridade é maior do que os homens que a portam, e senão os esmaga, é porque ela nunca esteve acima de nada ou ninguém, mas era apenas um vínculo forte o sufciente para fazer mover sem sequer tocar". Mas então já seria tarde, e mais um filho assim fenecia, seco e corroído pela ânsia de poder, quando, julgando possui-la, entregara-se à paixão de uma ilusão, perseguindo no horizonte aquilo que a verdadeira Autoridade jamais quisera proporcionar: vaidade e fortuna.

Diderot e D'Alembert: Ficamos imensamente estarrecidos com o seu proeminente esclarecimento a respeito do conceito de Autoridade, e gostaríamos de agraciá-lo com a nossa mais importante solenidade inaugural. Incomodá-lo-íamos se acaso lhe pedíssemos que acendesse esse candelabro?
Sr. 2º Mesário: Oh, mas seria uma honra! Quão lisonjeado não me sinto por sua respeitosíssima consideração. Finalmente me vejo reconhecido pelos meus! [acende o candelabro quase aos prantos].
Voltaire: Bravíssimo! Veja com que maestria não o faz!
Montesquieu: Belíssimo! Os salões de toda a Paris estão encantados!
Benjamin Constant: Ah, vejam como resplandece em suas mãos!
Aristóteles: Desculpem-me. Salão errado. 
Rousseau, com inveja e batendo o leque: Uh...
Sr. 2º Mesário: Obrigado, obrigado...
[Música de fundo. Sr. 2º mesário despede-se de todos após uma longa e exagerada reverência, e encaminha-se até as imensas portas do salão, a passos largos e lentos, puxando a todo instante pela corrente um macaquinho uniformizado: "Mais modos, Alfred".]

Em uma desesperada homenagem a tudo aquilo que eu perdi e simplesmente não compreendo. Deixo, aqui, se ao menos posso fazer desse fim, que é um fim de algo outro, não deste, um terno registro das coisas mais belas que já me ocorreram. E se beleza não é remição... Paciência.

*Fim*

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Estudos pragmáticos domésticos, cap. XII

Bem é verdade que a vida civilizada pode proporcionar-nos condições materiais necessárias ao pensar metafísico ou mesmo puramente estético. Entretanto, alguns incômodos são inevitáveis, a não ser que se aprecie viver como um hippie imundo e sem direção, o que, obviamente, não é o nosso caso. Assim o são as regras sociais que, embora possam trazer certo desgaste físico e mental, sua observância é capaz de criar um mundo agradável e prático ao nosso redor, de modo a preservar-nos a intimidade e poupar-nos de ter que criar constantemente maneiras de relacionamento, bastando seguir alguns protocolos comportamentais. Por outro lado, dominar as artimanhas da prática social pode promovê-lo aos mais altos estamentos da sociedade, sem que, para isso, seja necessário possuir algum talento especial, sendo suficiente o pleno domínio dos padrões de comportamento, os quais o ajudarão a abrir brechas no denso emaranhado de interesses conflitantes.

Do mesmo modo, devemos submeter-nos a certos usos e modas correntes na sociedade se realmente queremos participar nela como uma pessoa civilizada, e boa parte das regras começam pelas vestimentas, pois lidam diretamente com a arte de esconder e aparentar. Porém, como nem sempre as vestimentas foram desenvolvidas para serem práticas, faz-se necessário aprender alguns truques que pouparão sacrifícios. A questão a ser abordada neste capítulo é: espartilhos. Quantos e quantos de nós não sacrificamos horas e horas de nossa manhã apenas para ter sua caixa torácica prensada em espartilhos, cujos elásticos estão tão tensos que nem  as leis de Newton logram explicar sua efêmera estabilidade?... Apesar do grande dispêndio de energia, são capazes de manter a massa extravagante em ordem, surrupiando, ao menos temporariamente, alguns quilos dos olhos alheios, de modo que são indispensáveis para uma boa apresentação em sociedade. Acontece, todavia, que o esforço em vesti-los é de tal magnitude e exaustão que se chega a duvidar se realmente seu uso vale a pena, desejando-se intensamente que a moda passe ou que ao menos alguém encontre uma solução que alivie o encargo. Pois a dificuldade em vesti-los chegou a tal monta que o seu uso começa a atrapalhar outros hábitos igualmente importantes, resultando em uma perda que põe sua observância em franca desvantagem. Mas há os que digam: "E daí? Que me importa se eu gasto duas horas com espartilhos... O importante é que eu estou bonita e blá blá blá". Insolente, você devia ser afogado na fonte pública. Essas duas horas deveriam estar sendo gastas lendo Thackeray, e não espremendo-se ofegante na frente do espelho. Nada mais deplorável do que uma esposa iletrada, cuja cabeça é tão oca que o marido tem que atravessar um salão enorme ladeado com os bustos de todos os imperadores de Roma para chegar até a sua mulher. É exatamente o que acontece com os espartilhos, cujo prejuízo de tempo compromete outras atividades mais frutíferas e úteis no meio social como a leitura, haja vista o tempo que se leva para vesti-los, tempo este que poderia ser bem melhor aproveitado.

E o que fazer para continuar usando-os sem que isso comprometa tempo e força física? Muitas mulheres tentaram suprimir essa penosa rotina dormindo com os espartilhos, de modo que, quando acordassem, não precisariam chamar Beth, Liza e Mary. O problema, porém, é que pela manhã elas simplesmente não acordavam mais. Muitas foram as que morreram durante a noite, sufocadas debaixo dos lençóis, levando ao túmulo horríveis caretas. Essa não é, certamente, a solução. Mas o momento da rendição chegou. Após muitas experiências e catástrofes científicas, encontrei o mecanismo ideal, que não só eliminará tempo e esforço, como também dor. É, contudo, muito simples, e pode ser realizado por qualquer um, não exigindo grandes custos ou inteligência. Você precisará:
  • um espartilho (dã);
  • 2 pregos
  • 2 ímãs;
  • cola.
Imagino que não será difícil obter esses objetos. Acaso tenha dificuldade, repita essas palavras (mas para a sua empregada, e não para as paredes - não vá dar uma de tonta): "Beth, vá até a caixa de ferramentas de meu marido e arranje-me pregos, cola e ímãs". Em um passe de mágica, estarão devidamente em cima de sua cama. Em seguida, estique o seu espartilho de maneira que fique bem amarrado entre o armário e a penteadeira. Pregue as extremidades em ditos móveis. Feito isso, e certificando-se de que o espartilho encontra-se bem esticado, cole (usando a cola) os ímãs nas pontas do espartilho. Imprima seu corpo com os braços levantados contra o espartilho, de modo a fazer um brando "v". Chame Liza e Mary. Liza e Mary deverão despregar os pregos ao mesmo tempo. Essa regra deverá ser cuidadosamente observada pois, caso contrário, os acidentes poderão ser drásticos. Retirados os pregos, as extremidades do espartilho serão impelidas uma em direção a outra, atraídas pelo ímã e impulsionadas pela tensão física, de forma a envolver o seu corpo, deixando seu tórax firmemente preso e comprimido. Como pode ver, tal sistema não leva mais do que alguns minutos: sem dor, sem esforço, sem delongas. E agora você pode gastar a manhã inteira lendo Thackeray, ou qualquer outra coisa que preste, e as suas criadas, claro, poderão dedicar-se a fazer uma deliciosa torta de amora. No final, todos saem ganhando.

domingo, 24 de outubro de 2010

Por que nós não precisamos de carros?

Ontem notei que eu não tinha um carro, quero dizer, não um que seja propriamente meu, o que foi, obviamente, uma surpresa, pois eu sempre tive a impressão de que eu estava indo para algum lugar. Então todos aqueles carros, limusines e ônibus não eram meus? Estou estarrecido e acabo de despejar a água do vaso em minhas costas, pois, francamente, eu realmente tinha a impressão de nunca precisar pedir ou implorar para que o carro começasse a andar. Eu embarcava, fechava os olhos, e... voilà! Lá eu estava. No começo achei que fosse alguma espécie de teletransporte acionado pela força do pensamento, ou algo como uma irresistível obediência à simples presença de minha autoridade. Mas agora sei que eu estava apenas pegando uma carona. Entretanto, após muito pensar, acabei concluindo que nós não precisamos de carros. Isso é o que tentam nos convencer, mas a verdade é que veículos motorizados são simplesmente dispensáveis, e nós podemos chegar a qualquer lugar em que queiramos ir, não importa a distância, porque:
  1. Nós, seres humanos, somos portadores de um dom que recebemos muito antes de nascer, e os contos de fadas estão repletos de relatos que comprovam que esse dom sempre esteve presente entre nós, a despeito de todo ceticismo. Não precisamos de carros porque, simplesmente, os pássaros podem nos carregar, bastando chamá-los e dizer-lhes o destino pretendido. Branca de Neve não foi a primeira nem a última a utilizá-los. Rápidos e singelos, os pássaros não requerem mais do que um punhado de alpiste para levá-lo a qualquer lugar além das colinas.
  2. Mesmo que você não tenha uma voz angelical para chamar os pássaros, há sempre a opção de virar um monge. Como todos sabemos, os monges adquirem, após muito treinamento, a capacidade de viajar através da luz dos vitrais, bastando para isso algumas horas de meditação e jejum. Há um amplo sistema de monastérios integrados ao redor de todo o mundo à disposição dos monges, de modo que todo monastério - não há erro - acabará dando em outro monastério, e isso pode tornar-se uma oportunidade única para conhecer toda a Cristandade.
  3. Entretanto, caso não haja monastérios em sua cidade, ainda pode-se contar com um sistema descoberto na Inglaterra vitoriana, que, embora haja controvérsias a respeito de sua moralidade, não há dúvida de que funcionou muito bem. Consiste em dar pancadinhas com a bengala nas juntas das pernas, quero dizer, na parte anterior dos joelhos, entre a coxa e a panturrilha. Uma pequena pancadinha nas pernas de uma criança proletária é capaz de transportá-lo de sua suíte até o teatro. Uma pancadinha nas pernas de um estivador o fará atravessar o Atlântico, proporcionando-lhe uma viagem de negócios até Boston rápida e sem enjôos. Nunca foi tão fácil apostar na bolsa de Nova York.
Como podem ver, não precisamos de carros. Nosso sistema de transporte é sem dúvida poluidor, caro e de dúbia comodidade, e não hesito em dizer que em breve estará moral e economicamente defasado quando souberem disso.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Roldanas, apenas

Vim aqui apenas para conciliar-me. Gostaria de mostrar que, por trás dessa máscara de pó-de-arroz e debaixo desse chapéu de plumas, esconde-se um humilde ser humano pronto a montar na frente de sua propriedade uma fila do sopão, acendendo nos tambores de lixo dos necessitados uma ardorosa chama da caridade e dando a todos, sem olhar a quem, uma bela caneca de legumes e carne. Deixo a frente de combate e assumo meu lugar no mundo mais uma vez, para dizer a todos sobre "as terras por onde andei, e os amigos que lá deixei". Abro então um grosso volume da estante - não que precise estar algo escrito, mas apenas enquanto uma maneira de abrir um livro suspirando e relaxando a musculatura das costas no estofado - e chamo para mais perto minha caneca de chocolate-quente. É preciso deixar os rosnados de lado, ao menos por um tempo, e esquecer o olhar nas fagulhas que ascendem em estrépitos da lareira, pois o mundo - eu sei, vai ser um choque - não é aquilo que eu disse. Bem é verdade que o mundo supra-sensível tem seus encantos, e que deixar-se seduzir pela plano das estruturas lógico-normativas é tão fácil quando não se tem que preocupar-se com o objeto de carne e osso que ficou para trás no processo objetivo de intelecção. Porém, meus irmãos, é como se o real morresse um pouco cada vez que se avança nessa pureza de pensar, e morrendo o mundo, perece o pensamento, e todas as terras que ele busca atingir afundam-se igualmente no horizonte das categorias abstratas.

Eu havia dito que nada mais inútil que a caridade. Sim, em certo sentido, mas nada mais vivo e belo que os pequenos gestos que tentam manter estáveis os pilares de nossa civilização, como se fossem úteis roldanas a tirar a sobrecarga por alguns instantes. Pois, embora meras roldanas, são roldanas, e fazem mover benfazejas os corações daqueles privados de todo o esplendor do Ocidente, quando então uma pequena parte de suas sombrias figuras são resgatadas da lama e trazidas à tona [para depois novamente naufragarem mal viram os voluntários as costas]. Roldanas podem parecer insignificantes diante de toda a enorme engrenagem. Mas é verdade que roldanas, apesar de meras roldanas, são muito bonitas e úteis, pois distribuem peso e aliviam a dor do trabalho. Lembro-me agora de um cenário do jogo do Pato Donald (que por sinal era em vários pontos aterrorizador, sombrio, místico e instigante), onde você tinha que conduzir o personagem através de varais, apoiando-se em roldanas e deslizando até o lado oposto. Ao fundo havia um cenário perturbante de uma cidade de tijolos alaranjados em um entardecer. Era muito bonito e ao mesmo tempo... qual é a palavra? Desolador, como todo fim de tarde. Enfim, roldanas são belas em aspecto e função, assim como pode a caridade ser, pois bondade também é beleza e razão, quero dizer, senão ao menos conversíveis entre si, apóiam-se como condições de existência. Pois certas coisas não são possíveis de valorar-se pelos seus efetivos resultados, mas aquilo que lhes deu origem já vale por si mesmo, e indica que as coisas existem e acontecem não importa o aproveitamento que se lhes possa tirar. Caridade já vale por aquilo que é, independentemente de quão fútil e efêmero seja seu resultado.

Dentre outras mentiras e veleidades que me esqueci enquanto lia esse livro imaginário que eu tirei, mas que, sem dúvida, mancham igualmente meu semblante. Apenas para dizer que eu deposito mais confiança no que os outros falam do que em minhas próprias palrações. Bom, na verdade somente em alguns, evidentemente, nos quais deponho o dever de corrigir-me, pois sei que detêm a tão desejável ilustração pela qual exponho o meu pensamento. Mas o que estou a dizer! Não devo satisfações de meus negócios! [joga a a caneca de chocolate-quente na cara da anfitriã e começa a dançar ao som de Gipsy. Na verdade, todos começam a dançar].

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Coração de areia

Nos pálidos nodos das espáduas desliza
O negro manto de súbito despertado
Sobre o silêncio da torre de brilhante hulha
Onde de trás sequiosas esconsas polias
Erguem pesados anéis do velo de sombras
E vestem-me a opalina pedra erigida.

Marcham os úmidos pés sobre o promontório
Emerso dos braços de estrelas esgarçadas
Nas rochas da noite, e no cinzento zimbório
Das nuvens finco-me o gume de rouca ânsia
Vertida das pulmonares bolsas inchadas
Das notas contorcendo-se em amarelo óleo.

Espraio-me nas douradas trompas do abismo
E deixo levar-me o vento a inútil espuma
Dos cabelos cobertos em sinos de sal,
Como se o silvo me arrefecesse aos ouvidos
O sentido de meu rastro pelo ermo gelo
Onde estremece a aurora em semblante esquecido.

Pairo lúcido espectro sobre a vela ardente
De uma insone memória que em luz de cinábrio
Rasga-me o odre de ferro como a um ventre,
E em febre nas trevas em asas de quitina
Arrasto-me extinto de todo o antigo anelo
Perdido em roxas brumas dos olhos pungentes.

Revolvem no lodo as rodas o frágil vulto
Que submerso decanta seus veios de cálcio
Pelo pântano como um coração de areia,
E nas dragas de lúrida fronte convulso
Enfim descubro a mais dura pedra colhida
Vazar em lama de ervas dos punhos oclusos.

sábado, 9 de outubro de 2010

Ao pé de uma macieira

Ao expor a minha dúvida quanto à possibilidade de haver a multiplicação de riquezas diante de um mundo natural que apenas se reproduz através de si mesmo, sem que isso signifique qualquer espécie de aumento quantitativo de matéria, fui acusado, e bem justamente, de portar uma concepção medieval da economia. Eu reconheço a minha ingenuidade, mas, embora eu não devesse, senti-me orgulhoso disso. É como se eu me visualizasse encostado em uma macieira, a escrever um tratado sobre a agricultura em latim, cunhando sentenças de tom moral, mas solidamente calcadas na antiga lógica aristotélica. E, volta e meia, eu volveria meu olhar para a vista do campo, dominado por um castelo erguido no sopé de uma pequena colina, onde os servos semeiam as valas abertas e empurram o arado pelo solo, um tanto duro, mas que logo vai cedendo ao instrumento puxado por dois bois de olhar brejeiro. E então, suspendendo a pena por esses longos momentos de contemplação, iria compondo lentamente sobre a verdadeira origem da riqueza de um país.

É que as idéias dos antigos parecem-me muito mais simpáticas e pacíficas, como se a sua manifesta ignorância, que só agora nos parece manifesta ignorância, não fosse senão a revelação de um mundo mais terno e calmo, de ritmo lento como as passadas de um boi. Tão diferente dos modernos moralistas, que parecem gritar em meus ouvidos, conclamando o céu e o inferno para que venham às suas fileiras e marchem em direção a um destino hipotético e pseudocientífico. Parecem ter perdido a capacidade de falar em um tom sereno e sério, como se o discurso não pudesse fazer efeito nos ouvintes senão através de expressões de violência e dados assustadores, como se o nosso sono não pudesse ser despertado senão através do medo e de mentiras, engenhosamente disfarçadas para servir a sua boa-causa. Porque a verdade, para eles, não passa de uma concepção parcial da realidade, amoldada por interesses de grupo ou classe, e a sua busca objetiva é uma ilusão, da qual estão cansados e agora tomam as ruas queimando pneus e fazendo chantagens.

Eles tocam o meu interfone e começam a falar uma série de coisas, que eu não entendo bem, pois há muito barulho de buzina no fundo. Eu até tento discernir algum sentido racional em seus discursos de palanque, mas só consigo escutar aqui e acolá "hipocrisia", "nova ordem", "pró-ação", "tira essa bunda do sofá". Eu vou, mas é para colher maçãs e para pôr essa bonita fotografia.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Eu aqui, polindo os meus óculos

Muitas vezes a conveniência faz com que conceitos fundam-se um aos outros, como se não fossem mais do que digressões de um mesmo ser, e como se cada fragmento do vitral pudesse ser tomado como a origem primeira e o destino último dos demais. E assim torna-se possível a criação de um monopólio de um conceito sobre todos os outros, forçando-os a comprimirem-se em uma mesma moeda, na qual não é mais possível manter intactos os antigos limites que os circunscreviam. Então a posição do observador passa a ser não apenas o início de toda especulação, mas o denominador comum, que não somente paira sobre os conceitos como uma sombra, mas envolve-os e imiscui-se em suas essências, confundindo-os em um mesmo plano artificialmente ampliado. É o que muitas vezes acontece quando algumas pessoas resolvem enxergar as coisas pelo "prisma social", pretendendo interpor entre o sujeito e o objeto uma teoria científica e, ao mesmo tempo, "desmascarar" a realidade, sem que isso implique em qualquer contra-senso em seu discurso, como se as máscaras caíssem automaticamente sob a luz dessa teoria, que já não é mais mero discurso hipotético, mas verdade revelada. Porém, enxergar as coisas por outro prisma é algo curioso para mim, pois eu mesmo penso os prismas como a metáfora perfeita para os seres imutáveis, sólidos e exatos, e não como transparências diante das quais tudo parece relativizar-se em miríades de posições. Da mesma forma, não consigo entender como e quando foi que a universidade passou a ser entendida como instituição social, nem entendo em que sentido poderia realizar qualquer espécie de função junto à sociedade, como tão fastidiosamente tem-se comentado.

Quando ouço falar em universidade, o que me vem à mente - e não só à minha, mas imagino que à de muitos ainda – é aquele velho conceito de universidade, construído pelos séculos e levada até os nossos dias pela tradição, que nos fala de um lugar voltado para o ensino e pesquisa científicos, preocupado na formação profissional de técnicos e na transmissão da cultura. Mas parece que os fins que persegue já não são suficientes para justificar a sua existência, e agora urge que adote uma postura mais ativa no meio social, desenvolvendo programas que beneficiem diretamente a sociedade como um todo, e não agindo como se fosse uma nave alienígena, voltada para si e alheia às mazelas de nosso sistema. Afinal, ela recebe recursos públicos provindos da contribuição de todos, de modo que a universidade não é mais do que uma servidora, cuja principal preocupação deveria estar centrada nas necessidades de seu meio, e não em perseguição a fins esdrúxulos e fúteis, sem utilidade imediata que possa ser aproveitada por toda a população. Não pode ser mais vista, portanto, como uma mera instituição de ensino e pesquisa, mas um agente social, calcado nos valores da justiça e da igualdade, como mesmo convém a uma verdadeira democracia. E então ela segura na barra da saia e faz uma leve flexão com os joelhos, pois não é justo que tão-somente uma pequena parcela da população se beneficie de todo o seu aparato, pois aquilo que todos ajudaram, de uma forma ou de outra, a construir, deverá ser por todos acessível, e aqueles que, devido a condições sócio-econômicas desfavoráveis, mantiveram-se afastados de sua instituição deverão ser incluídos, numa entediante tentativa de aliviar em seus quadros as desigualdades econômicas, raciais, étnicas, etc.

Ocorre, entretanto, que a universidade nada tem a ver com tais condições sócio-econômicas, e pouco lhe importa que camadas inteiras da população sejam sistematicamente eliminadas de suas carteiras e laboratórios. Os valores que constituem a sua natureza institucional não são o da justiça e da igualdade, pois o espaço em que se desenvolvem as pesquisas e o ensino não é um espaço social, muito menos um espaço político, pois a maneira como promove suas ações não se dá baseada em necessidades econômicas ou em interesses comuns que atinjam a todos, nem mesmo pretende ser um espaço de decisão ou determinado por regras comportamentais. Os valores que regem o ambiente universitário são o do mérito pelo conhecimento e o da iniciativa científica, de modo que constitui-se não em uma estrutura eminentemente democrática, mas em uma hierarquia entre aqueles que sabem e aqueles que querem saber. O que promove suas relações é o conhecimento, e só em torno deste é que se promove o debate, não no sentido em que se dá em um ambiente político, pois não almeja nenhuma tomada de decisão, mas apenas no sentido da promoção da ciência, no aprimoramento da técnica e do conhecimento. É por isso que um professor não pode esperar aprender muito com seus alunos, a não ser que se esteja diante de um claro déficit de formação acadêmica, pois não são iguais que se encontram no ambiente universitário, mas indivíduos hierarquizados pelo conhecimento. É claro que semelhante hierarquia não é a mesma que se dá em um espaço social, pois é muito mais volátil e relativa, e os pólos entre aquele que sabe e aquele que quer saber podem facilmente inverter-se conforme a situação.

O que se quer dizer é que a universidade não pode vincular-se à subsistência da sociedade, pois visa à produção de conhecimentos de forma livre, e semelhante intromissão só tem a atrapalhar toda a iniciativa científica. Do mesmo modo, a formação profissional e a promoção cultural que desenvolve não pode transformar-se em mero serviço público, pois não se trata de extensão de um departamento da administração. É importantíssimo que mantenha autonomia face à política e à sociedade, pois os fins que estas perseguem são absolutamente impróprios na consecução de um de seus principais objetivos: a busca pela verdade. Quando se atrela as iniciativas científicas da universidade às necessidades sociais ou aos interesses políticos, a pesquisa está fadada ao condicionamento, e a produção do conhecimento perderá o seu tão essencial caráter objetivo e neutro. Os interesses, sejam sociais ou políticos, amoldam a produção dos fatos, vinculam os objetivos e tecem verdades falsas e parciais, que nada têm de científico, mas, ao contrário, constroem ideologias, contra as quais não parece haver verificabilidade ou provas em contrário que possam desmenti-las ou iluminá-las. Mesmo as promoções culturais, que talvez sejam as atividades que mais se aproximem a um conteúdo político ou social, não podem sobreviver durante muito tempo como ação autônoma e espontânea quando começam a perseguir algum tipo de finalidade que não a própria produção cultural. Pois se a universidade em vários momentos pretende a transmissão e cultivo de idéias, tradições, filosofias, o faz no sentido de manter o conhecimento vivo e livre, e sua liberdade cessa exatamente quando passa a perseguir fins alheios à sua natureza institucional.

Do mesmo modo, transportar artificialmente valores de justiça e igualdade para um lugar que é tradicionalmente formatado pela hierarquia do conhecimento não é fazer mais do que a anfitriã que encobre os móveis de sua casa com lençóis floridos. A universidade não é lugar para justiça ou igualdade social, pois tal deve ser feito muito antes, em sua verdadeira origem. Tentar mascarar problemas sérios de ensino sob a égide de um pretenso valor social que deve buscar a universidade, assemelha-se mais à ação caritativa do que a um ato de justiça, e nada mais inútil do que a caridade. Esta se parece com uma espécie de um mal necessário, como uma ultima ratio, quando nada mais é possível de ser feito e quando tudo parece já não adiantar. Então temos a caridade, que apenas consegue sustentar, manter em movimento as pás de um moinho, mas nunca construir um outro moinho. Assemelha-se mais ao trabalho solitário e recôndito do burrinho, que faz girar as engrenagens enquanto se move em círculos lentos, como se o seu próprio trabalho não fosse senão um mudo sofrimento. Caridade morre em si mesma. Quando a ação caritativa cessa, nada além dela sobrevive. Pois é um ciclo, não uma reta projetada para o futuro, como é a acumulação do conhecimento e a ação política.

E eu digo isso (e aqui me dispo de qualquer conteúdo para atingir o neutralmente polido, o discurso de plumas e pó-de-arroz, pois mesmo não acho que semelhantes idéias sejam fáceis de virem desacompanhadas de ódio e preconceitos) tomando meu chá de erva-cidreira, e não dando surras com pão-bengala em suas costas.

domingo, 12 de setembro de 2010

Não adorarás falsos deuses

É nessas horas aqui, sentado em minha poltroninha, que uma certa presença em mim, ao pensar nessas criaturinhas saltitantes e tolas que desfilam diante de meus olhos exaustos a fazer toda sorte de obscenidades e selvagerias, sussurra com uma voz grave em meus ouvidos dizendo: "Capture-os e os conduza ao laboratório, onde seus corpos e mentes serão robotizados e assim controlados por um computador central, que passará a reger suas vidas hipossuficientes e daninhas ao nosso sistema de valores". Mas eu sei o quanto essa idéia é errada e absurda, e também sei que não devemos confiar em vozes em nossa cabeça, e por isso logo afasto essa maligna voz e continuo com o meu tricô. Aconselho: além de relaxante, trará a você aquela aura de bondade e paciência tão rara em pessoas de nossa idade.

Mas se mesmo assim o Senador Palpatine continuar a resmungar debaixo do seu assento (coisas como "a força é intensa em você" ou " eu posso sentir o seu ódio, e ele o guia"), não se sinta envergonhado de recorrer à velha e eficiente vassoura, e expulse-o dali com umas boas surras nas costas. Verá que não é difícil afugentá-lo. Entretanto, se ele algum dia esteve ali, não há dúvida de que voltará mais cedo ou tarde. Então, espalhe ratoeiras atrás do sofá e cerque-se de tudo aquilo que a Civilização produziu espelhada na Ordem e na Bondade. E jamais - eu disse jamais - deixe que a decrepitude alheia faça com que você perca a fé no esplendor do Ocidente.
Pintura de Sarah Watts
Está ouvindo esse chiado? É o som da chaleira. Ou melhor, é bem mais do que isso. É o sinal de que a tradição mantém-se ainda viva em pequenos gestos domésticos, pois nossas casas são como baluartes e nossos livros potentes canhões. E não importa o quanto tentem expugnar seus altos muros, resistiremos ao cerco das bestas e elas provarão de nossos rijos punhos de rendas. E nem mesmo que o próprio Dark Lord of the Sith bata em nossas portas oferecendo os mais magníficos Sonhos de Ordem e Pureza, não o deixaremos seduzir-nos e assim esmagar-nos a Liberdade sob seus pés. Pois se há alguma coisa que aprendemos com o destino de Anakin Skywalker é que o Lado Negro da Força não pode criar outra coisa senão trevas.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

A Velha Louca do Pântano

Há certas criaturas diante das quais me sinto impotente, como se Lothlórien perdesse realidade a medida que se aproximassem com seus costumeiros grasnados e arrastar de trapos, que é a maneira como geralmente vêm ao nosso mundo e assim tornam-se conhecidas para nosso espanto e horror. São espécimes pestilentas encerradas em seus primitivos modos de pensar, cuja vista faz com que eu perca o meu chão e seja arrastado em direção a suas profundezas lodosas e incultas. Em vão aponto-lhes os meus anéis do poder, e os prismas incandescentes que o cravejam vão se apagando um a um ante sua estéril escuridão. E, então, esqueço-me de todas as razões para crer nas medidas exatas e imutáveis com que insistia em trabalhar.

Certa vez, e é por pudor e não por bondade que não revelo sua localização, nome, estatura e idade, uma senhora proferiu, transcrevo palavra por palavra, como se fosse da própria natureza da natureza mastigar o que há de mais belo com sua língua coberta de areia, essa estranha sentença: "Detesto flor!". Mas o que há de mais, nisso? - perguntam-me. Afinal, dizer por dizer em nada ofende de concreto, revelando, no máximo, sua pobreza de espírito ao rejeitar a aparência terrena da Beleza. Acontece, entretanto, que isso foi dito logo após ter matado uma árvore através da aplicação de veneno diretamente em sua raiz. A árvore era daquelas muito comuns na cidade que dão flores amarelas e miúdas, e, volta e meia, são assunto do jornal local, pois, naturalmente, nada mais interessante do que árvores que derramam folhas e flores pela calçada. A árvore secou e agora o sol atravessa inexoravelmente escaldante a sua copa sem folhas. Em compensação, sua calçada permanece, desde então, limpa (e feia - ou vocês esperam que alguém assim tem alguma idéia do que é um lar bonito e agradável?), e ela não precisa mais arquear as suas costas para varrer.

Não, esse ser não é meu igual, e vejo-a com muita preocupação. Alguém que é incapaz de distinguir aquilo que é seu daquilo que é comum aos outros merece, no mínimo, atenta vigilância, da mesma forma como se age para com crianças. E, mais, alguém que é incapaz de compreender que no mundo coexistem valores que exigem sua observância, e um deles é o Belo, coloca em risco a própria preservação da realidade humana, pois é como se o mundo morresse no espaço em que ocupa, através de sua ignorância e aridez de pensamento. Não acho que representem de modo algum uma espécie de natural diversidade de pensamento a qual somos freqüentemente confrontados e tentamos nos conciliar. São antes ausência e elas estão erradas na maneira como respondem ao cotidiano. Suas ações estão calcadas em um terreno que é para mim absolutamente incompreensível, e não consigo encontrar uma razão que explique seu estado de incompletude cultural, carentes de uma base civilizatória mínima.

Entretanto, enquanto fico a tentar entendê-las, passo muitas horas imaginando maneiras de retirá-las de nosso mundo sem que isso resulte em qualquer violência. A melhor delas, a meu ver, seria embarcá-las em um expresso para o Sítio do Pica-Pau Amarelo, onde, tenho certeza, dar-se-iam muito bem. Iriam para longe, assim, do alcance de nossos olhos, partindo suavemente em um lindo trem vermelho em algum terno entardecer, subindo os morros verdejantes e, logo em seguida, descendo-os a todo vapor, até que, finalmente, desaparecesse atrás do horizonte, deixando no ar uma coluna de fumacinha que igualmente esvanecer-se-ia em uma confusão de espaço e tempo. Para longe, longe... E, uma vez lá, poderiam fazer parte de toda sorte de aventuras de Pedrinho e Narizinho, habitando os cantos escuros da floresta, adormecidos sob pedras lodosas ou resmungando dentro de algum tronco podre. Eu, particularmente, enterneço-me em imaginar essa senhora perambulando pelos arredores do Sítio, a palrar coisas sem sentido e, certamente, engraçadas: "Nhag. Detesto flor. Nhag". Seria chamada carinhosamente por Emília de "a velha louca do pântano", aprontando travessuras e eventualmente servindo de antagonista nas historinhas. Tramaria maldades com a Cuca e Tia Nastácia as expulsaria com vassouradas em suas costas, que é para aprenderem a ficar longe de sua cozinha e pararem de roubar os deliciosos bolinhos. Sim, eu tenho um sonho.

Mas - oh, não! -, não pensem que se apagariam completamente de nossa memória. Seriam constantemente revividas através dos livros, produzidas fantasmagoricamente entre páginas amareladas pelo tempo e pelo desgastar das lembranças. Chegariam a nós como uma distante e impalpável história, como se fossem personagens de folclore, quando somente a partir de então essas criaturas das mais extraordinárias e grotescas poderiam fazer algum sentido. E, assim inofensivas, feitas de imaginação e vaguidão, aqueceriam nossos corações durante as noites, quando então ouviríamos sobre a Velha Louca do Pântano que tacara veneno em uma árvore, mas que foi logo salva com a ajuda dos preciosos conhecimentos do Visconde de Sabugosa.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Em tempos pretéritos, meu nome impunha respeito!

A sala estava repleta de cavalheiros altos e respeitáveis, estirados em seus pufes e em visível estado de tensão diante do senhor que deslizava pelo piano. Profundamente emocionado com sua música, ele agitava-se no banquinho como um desses indigentes quando mergulhados em uma lata de lixo, sem notar o choque que causava aos demais presentes. Os ponteiros do relógio pareciam amolecer por trás do vidro, e eu via horrorizado alguns senhores remexerem-se desconfortáveis nos estofados - mas isso era devido, depois ponderei, às migalhas de torradas que eles comeram pela tarde. Chevalier Camille Saint-Saëns, pressionando e fazendo girar constantemente uma moedinha entre os dedos, deixou-a escapar. A moedinha rolou ruidosamente pelo piso de madeira até os sapatos do pianista, os quais se contorciam a cada nota mais alta que se fazia estalar. Deus, alguém tinha escondido uma criança dentro do piano e ninguém me contou? - pensava com meus botões, que eram muitos e brilhavam de um jeito especialmente bonito. O que era até provável, pois não via Henry desde o dia anterior. Mas, enfim, após um último estrépito de teclas e pedais, terminava, finalmente, sua série, voltando-se para os demais presentes em ingênua expectativa do acolhimento de seus companheiros: “Então?...”, disse girando o banquinho e esfregando as mãos suadas uma sobre a outra; os olhos úmidos fixando de um rosto a outro, que o miravam mudos e cheios de náusea. Ora, o que espera ainda esse parvo? - pensei, olhando-o de cima a baixo e cuidando para que eu parasse de tremer de ódio daquela patética cena que... "Uh!", deixei escapar um tanto alto. Em vão tentei conter a minha exclamação pondo a mão sobre a boca. Notei, então, que usava uma gravata enorme e amarela. Até isso? - pensei escandalizado. Piotr Ilitch Tchaikóvsky coçou seu crânio calvo e deslizou os olhos até a janela. O silêncio aprofundava-se cada vez mais, e nem mesmo Johann Strauss II, outrora alegre e fazendo zombarias com os cachinhos de Wolfgang Amadeus Mozart, conseguia dizer uma palavra sequer para descontrair. Wagner deu umas tossidinhas secas, fazendo saltar uns centímetros a sua xícara sobre o pires. Mas isso não importa, pois ele sempre foi um pouco tísico - ou seria Vivaldi? Alguns pareciam ter se esquecido de que a pouco comiam empadinhas, e olhavam estarrecidos para o pianista, com a comida mastigada derretendo na boca e as taças firmemente presas nos dedos; ninguém ousava levá-las aos lábios ou fazer um movimento sequer com os maxilares. Haydn mirava constantemente para a porta de saída, contraindo os músculos das pernas como quem, ao menor sinal, dispararia correndo dali. Mas ninguém portava uma pistola, e ele permaneceu ali mesmo onde estava. Enfim, estava tudo acabado. Era o fim da reunião que eu, com tanto esforço, havia conseguido conduzir tão bem, e que agora terminava daquela forma tão desagradável. Vergonha, vergonha, murmurava escondendo o rosto em minhas palmas. Olhei, então, para Beethoven, sentado ao meu lado e tendo estranhos espasmos com as pernas, procurando dizer mudamente o quanto eu estava envergonhado com aquilo.  Mas a mesinha de centro e os copinhos de licor de cereja começaram a tremer mais forte com seus espasmos, e temi que a tragédia piorasse ainda mais. Preciso terminar isto da forma mais rápida e digna possível, pensei eu, fixando profundamente meu olhar no retrato de vovô que, vestido em um casaco de zibelina e botas altas ao lado de um cavalo, encarava-me severamente do alto de seu título de visconde. Meu constrangimento era absoluto, e, se não fosse pelo nome que portava, ter-me-ia arrebatado para cima dele naquele momento. Mas controlei meus impulsos e levantei-me, então, com estudada polidez, limpando os restos de patê dos lábios e armando um sorriso. Disse o que eu tinha para lhe dizer:
"- Oh, creio que o cavalheiro concluiu sua peça... Vamos, senhores, aplausos! – disse eu, batendo teatralmente três palmas de maneira esparsa e espalhafatosa, olhando para os demais que permaneciam sentados e imóveis. – Adorável, deveras. Certamente enlevado com a sua prodigiosa demonstração do funcionamento de uma garganta de um gato sendo esganado. Oh, quão agradecido não estou por transportar-me ao fantástico interior de uma fornalha ou máquina-de-lavar-roupa, seja lá como costuma chamar esses modernismos. Oh, não, para quê o fastio dos jardins geométricos franceses, os espaçosos salões, as escadarias livres e intermináveis por onde deslizam donzelas a sorrir, os vinhedos, os vitrais de místicas catedrais, os castelos dependurados em penhascos? Tsc! Oh, não! Você, não, Schoenberg, você é diferente. Você sabe o que é música... Agora, se não se importa, creio que tem outros afazeres a cumprir pela noite, e, se quiser, eu o acompanho até a porta de saída onde o cocheiro já deve estar esperando-o e... Oh! O que foi? Vai chorar? Hum? Vai chorar, vai?"

Desculpe se estou chocando, mas fato é que não suportei quando vi aquele rosto seboso pronto a desmanchar-se em pranto, e o que restava em mim de calma e honra desfez-se no ar com a rapidez de um relâmpago. Talvez a champanha tenha me subido demais à cabeça, eu não sei. Aquilo deixou-me fora de mim, e, em meu rompante de fúria, tomei o coquetel de camarões das mãos de Debussy e comecei a jogar os crustáceos contra Schoenberg, que, vagamente, tentava defender-se pondo os braços em escudo ante o rosto e corpo.
"- O que você acha disso agora, hum? Heim? Heim, seu chorão? – dizia eu atingindo-lhe um camarão bem no olho esquerdo. – “Música inovadora”, você disse! Que diabos foi isso!? E agora? Como fico eu? Eu contei a todos que tinha descoberto algo, e agora? Heim? Heim? Quer que eu fique com pena de você? Expressionismo alemão... Pfff!"

Foi então que, quando eu estava prestes a atirar uma cadeira, fui atingido na nuca por um golpe de garrafa, fazendo-me tombar sobre o tapete – sei disso porque me lembro de ouvir os cacos estilhaçando-se. Creio ter desmaiado a partir daí. Oh, não! Não me orgulho nem um pouco disso; sei que me excedi. Mas ter ouvido Schoenberg tocando aquilo bem no momento mais importante de minha vida social tirou-me do sério, entende?

- Você está pondo em dúvida a música de um dos maiores compositores do séc. XX?
- Oh, não, meu caro! Longe de mim! Afinal, quem sou eu? Eu apenas sei cara-crachá-cara-crachá...
- Espero que o senhor esteja ciente de que...
- Cara-crachá-cara-crachá...
- Eu já entendi, senhor... Agora se me permite...
- Onde está o meu tutor? Alguém pagou a minha fiança?
- Não exatamente... Mas lhe trouxeram bolo de frutas!
- Esplêndido!

*em prol de finais felizes.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Um piano quando desatina

Bom, não se nega que as experiências presenciadas neste  laboratório com buracos-negros foi um portentoso êxito da Ciência ao demonstrar que, sim, a deformação da malha espaço-temporal, através da concentração de matéria em um ponto infinitesimal, possibilita a viagem através do tempo e do espaço, a que eu chamo peculiarmente de "viagem espaço-temporal[faz aspas com os dedos]. Mas, também, conseguimos com que a viagem dê-se somente através do espaço, ou somente através do tempo, conforme o desejo do viajante ou conforme melhor atenda aos fins desta Instituição de Pesquisa. É claro, é claro...

Entretanto, não se pode dizer que o mesmo sucesso deu-se no plano dimensional do comércio (debalde eu explicasse aos patrocinadores do projeto as infinitas oportunidades de tráfico de artefatos históricos, exploração de minas na Lusitânia, captação de ventos do fluxo do portal dimensional na forma de energia eólica...), e por isso tivemos que recorrer a soluções inteligentes que ao mesmo tempo atendessem à Ciência e aos interesses de nossos empresários. E, para a nossa salvação (de nossos postos de trabalho e de nossas pesquisas com buracos-negros), a solução veio, graças aos nossos incessantes e frutíferos trabalhos no porão (ah, o porão!...).

Por isso, é com muita alegria que eu lhes apresento o inovador *FaZedoR de EsPaguEte HiperDiMenSioNal*. Não, não precisam fazer essas carinhas. É muito simples, e sei que estão aptos a compreender. Como sabem, os buracos-negros fazem com que a malha espaço-temporal dobre-se sobre si mesma como uma manta, devido à enorme força gravitacional gerada pela concentração de massa em um espaço muito pequeno. Pensem da seguinte forma [os alunos fazem cara de quem está pensando, pondo os lápis nas bocas e acenando as cabeças afirmativamente]: ao trespassar uma bexiga com uma agulha, necessitamos de um determinado tamanho de linha, a que eu chamo de "x". Porém, se essa bexiga tem suas extremidades comprimidas até se encostarem uma na outra, o comprimento da linha necessário será de "y", sendo que y > x, e x = ycm... hum... Bom, o importante é que a agulha atravessará ambas as paredes sem necessitar de comprimento de linha algum, de modo que a passagem é praticamente instantânea. Sendo assim, quando se pára de comprimir as paredes da bexiga, essas voltam ao seu lugar, fazendo com que novamente o comprimento de linha seja "x".

E, observando esse curioso fenômeno, nós nos indagávamos: o que aconteceria se puséssemos massa de farinha de trigo dentro do portal e desligássemos intermitentemente o buraco-negro, como os fantasmas fazem a um interruptor de luz? Chegamos, então, em nossos caderninhos, à mesma equação: sp = b.58+farinha+worm(hole)/m.c2. Interessante, não? Mas as respostas obtidas a partir daí divergiam drasticamente, sendo que algumas apontavam para a construção de uma nova Atlântida em Açores, e outras deduziam que o nosso Universo não era verdadeiro, mas uma mentira induzida em nosssos cérebros por Sauron. Transferimos, então, os dados em nosso computador, para que decifrasse para nós a verdade tão unanimemente expressa que, porém, chegava a tão diversos resultados. Mas, infelizmente, a resposta obtida pelo computador foi 42, e tivemos que ameaçá-lo com a fogueira para que parasse de fazer-nos pilhérias e dissesse de uma vez o resultado verdadeiro. E, para nossa supresa, a resposta foi espaguete. Mas é claro!, eu pensei. Tão óbvia! Bem debaixo de nossos narizes e nós não a vimos, o que nos deixou bastante surpresos porque sempre estávamos a olhar para os buços um do outro. Era assim, então, que funcionava: ao jogarmos a massa dentro do wormhole, e desligando o portal com ela ainda lá dentro, a massa estica até tomar a forma de um fio de espaguete muito fino e comprido. Brilhante, não?

E é assim que inauguramos a nossa própria fábrica de espaguete em nosso laboratório, cuja comercialização auxiliou-nos a adquirir esses galantes jalecos que brilham no escuro. Entretanto, devo dizer, o aproveitamento da massa posta no portal é apenas de 56%, que pretendemos melhorar com o passar do tempo. Acredita-se que o restante é perdido para outras dimensões conectadas involuntariamente pelo buraco-negro. Mas, em minha opinião, estamos diante de um clássico caso de pirataria intergaláctica. Quanto a isso, já estou encaminhando uma petição à Rainha para que bloqueie os portos dos mundos coniventes com esse vil contrabando que tanto nos onera. Agora, se me permitem, vou conduzi-los ao nosso refeitório, onde poderão provar nosso delicioso espaguete. Aliás, já colocamos, como nossa especial cortesia, pacotes de macarrão em suas mochilas enquanto anotavam o que eu falava.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Perto de um final feliz

- Ei! Psiu!
- Ahn? Que foi?
- Eu não posso ficar assim... Não estou apresentável. O que o Fiscal das Minas dirá se me ver vestido como uma sirigaita saturniana? Não estou digno! Faça alguma coisa!
- Como é que é?
- É... Você sabia que eu obtive licença para explorar os recursos minerais de Titã? Pois então! Ele está vindo aí, e eu aqui vestido como uma mulher impudica! Morro de vergonha!
- Titã!?
- É... Eu vendo gelo de etano para os drinques cósmicos dos astronautas, lembra?
- ...
- É sério! Então, não vai redesenhar o meu corpo? É urgente! Trajes espaciais decentes, por favor!
- Hum... Acho que não será possível. Estou sem tempo e está chovendo lá fora. Além do que, é como se o desenho já não me pertencesse mais...
- Bleh! Deixe de bobagens! Você sabe muito bem que essas filosofias baratas não resistem a um gesto seu. Vamos lá... Cabelos alaranjados e um nariz azul. E botas, também! Quem tem rabo vai a Roma. Muito fala quem cochich...
- Pára com isso!
- ...não se quebra omeletes sem queimar ovos. Onde tem fumaça tem tijolo. Água fria em pedra mole tanto fala até que...
- ...

terça-feira, 27 de julho de 2010

Vossa vil impertinência

Agora, eu vou dizer... Se há uma coisa que me irrita (e olha que eu não sou de me irritar!!!) é a fascinação dos autores de nosso século (e do século anterior também, ora) pelas notas de rodapé. Eu compreendo muito bem a sua utilidade; eu mesmo as uso com muito gosto, não tenho problemas quanto a isso, não sou hipócrita. Mas quando esses santos resolvem que as notas de rodapé são muito legais para serem utilizadas só de vez em quando... Daí eu quebro a taça, os pratos, derrubo a estante! Daí eu fecho o piano na mão das crianças-que-têm-fome! Queimo mesmo! Porque... Quem gosta quando o bendito põe metade do livro nessas desconcertantes notas, fazendo da sua concentração uma febre intermitente de leitura, quando muito bem aquelas nada concisas palavras poderiam ser inseridas no texto sem maiores problemas? E, por mais estranho que isso seja, constata-se que, quanto mais renome tem o autor, quanto maior é o seu conhecimento, precisão terminológica, finura de estilo, maiores são as notas de rodapé. E é por isso que eu nem me irrito tanto, afinal, o meu respeito e admiração se fazem de bigornas sobre a minha insana fúria de um ocioso estudante. Entretanto, há entidades pelas quais não alimento respeito ou admiração, nas quais posso deixar escorrer o meu ódio livremente, sem preocupar-me em estar apontando o canhão de blasfêmias contra alguém que não as mereça em virtude de seu talento.

Acontece, então, que algumas editoras simplesmente resolveram, a despeito de eu jamais haver manifestado a minha opinião, seja através de plebiscitos, seja através de manifestações pela paz social (ao gosto da OIT), que as notas de rodapé são um estorvo inútil quando localizadas no rodapé da página, e que os leitores, esses parvos ciclopes devoradores de suntuosos e profanos banquetes regados a muito vinho e brutalidade, simplesmente não se importam com elas. Quer dizer, para que sua existência se eles não as lêem de qualquer modo? Cabeças-de-vento, paradigmas da gelatina branca, lambedores de carimbo, os leitores só querem mesmo que a leitura flua o mais rápido possível sem a incômoda preocupação de estar deixando algo para trás. "Ora, tive uma brilhante idéia! - disse o editor com a camisa lambuzada de molho enquanto meneava entre o dedão e o mindinho uma coxa de frango. Por que não pôr as notas de roda pé, esses textos tão desnecessários aos nobres desígnios de nossos leitores, NO FINAL DO LIVRO, ONDE SUA VONTADE EM APURAR MELHOR AS IDÉIAS SEJA CONSTANTEMENTE ENFRAQUECIDA PELO DISPÊNDIO DE ENERGIA EM VASCULHÁ-LAS AO LONGO DE PÁGINAS?".

Se já era um incômodo ter que interromper o fluxo do texto para consultar a nota de rodapé, que estava ali mesmo, no final da página, bastando deslizar um tanto os olhos, imagine o tormento que é procurá-las lá no final do livro ou de um capítulo, nas remotas e inóspitas regiões guarnecidas por cães infernais e aves de rapina, circundadas por altos muros cobertos de urzes e outros espinheiros, onde o cantil de seu cérebro acabará esgotando-se antes de chegar ao seu objetivo, fazendo com que pereça na metade do percurso? Quer dizer, o autor transfere metade de suas idéias para as notas de roda pé, e a editora faz o quê? Põe-nas inacessíveis. Esconde. O que outrora eram vergéis acessíveis com um leve empurrão de seus portões, algumas editoras conseguiram transformar em verdadeiras terras ocultas, sobre as quais cantam-se lendas e recitam-se mitos. Deve ser vergonhoso fazer da nota de rodapé uma nota de rodapé, eu não sei... Enfim, é revoltante quando alguém toma as rédeas da situação sem você pedir, e ainda gruda um selo na sua testa com a degenerada intenção de facilitar a sua vida hipossuficiente. Eu disse: hipossuficiente.

PS: A Organização Internacional do Trabalho - OIT - tem como um de seus objetivos fundamentais a conquista da paz social.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Vilania

Eu, aqui, na décima taça de um vinho que eu nem sei o gosto, enquanto luto já débil e quase desfalecido para preservar as dilatadas e arruinadas pupilas dos primeiros raios de um sol que desflora vilmente o horizonte impudico de Veneza, fazendo um enorme esforço para abafar da mente aguda os pobres versos de um esteta que a pouco insistia em fazer-me vibrar tanto quanto ele os prazeres de uma vida que eu nem sei se algum dia foi possível, pergunto: já não basta? Não, eu não sou a vítima que você quer fazer de mim; eu mesmo degolo cordeiros e nem acho isso muito correto, mas cumpro fielmente um dever e um prazer em mim ensinado, com o qual vou  alimentando esse interminável cerimonial em que as pessoas pagam para ver e serem ouvidas, quando o melhor seria atirarem-se de vez em uma lata de lixo e fazer um favor a essa maltratada cidade. Quero dizer, já não é o suficiente aquilo que eu mesmo me faço passar, pousando de consorte em carros cujo funcionamento mecânico sequer me interessa, quanto mais me fascina, testemunhando sorrisos de gente feia, mas que por algum motivo acham-se importantes e indispensáveis para o movimento rotacional do planeta, tendo que relatar pela centésima vez o esplendor de viajar-se às terras insossas da Escandinávia, como se houvesse algo de glorioso ou heróico em encher a boca de dinheiro de alguns funcionários quando se está enjoado do verão meridional? Por favor... Vem cá, você acha mesmo que existe outra maneira de conjugar-se o verbo "humilhar" sem ser na voz reflexiva? Ninguém banca a ração diária de jornalistas medíocres para chegar em segundo lugar... Entenda, não há novidade que possa sair de uma moita que já não tenha me vindo o cheiro às narinas, tampouco existe algum chapéu ridículo que eu mesmo não o tenha tomado das mãos da estilista e desfilado pelas ruas infestadas de gente preguiçosa e agônica do próximo prato de sopão como se fosse o arauto de algum deus cômico. Quem traiu, com quem traiu, como, onde... Pouco me importa do chiclete grudado na sola de meu sapato se eu sei muito bem que aonde quer que eu flane com meus mais nobres pensamentos e emoções a barbárie me acompanhará arrastando seus trapos ranhentos pela lama da calçada a despeito de minhas tentativas em desvencilhar-me dessa maltrapilha atirando-lhe alguns centavos e um sanduíche de presunto. O que você quer pela sua história? Risadas eu não as tenho; há muito as empurrei em um vagão para dentro de uma mina abandonada, e, francamente, não sei dizer se já chegaram a algum tipo de fundo... Compaixão? A pouca que eu tenho eu guardo para mim e para o pianista do restaurante que, tenho de reconhecer, faz o que pode por não deslizar os dedos pelo teclado mais rápido do que podem acompanhar os cérebros abotoados da comida gordurosa que ali se engole. Só não arremesso moedas porque não quero fazer mais um símio. Mas não precisa ir embora. Fique aqui comigo. Tome dessa taça e aprecie - porque não há nada na sua vida que valha uma precipitação - a cidade acordar já empanturrada de uma faina que sequer começou e não tendo melhor panegírico sobre seus canais sinuosos e avermelhados do amanhecer do que o de gordos e velhos turistas atraídos pelos pacotes promocionais.

PS: É pra ler na voz e entonação de um vilão do nível de Odete Roitman, pufavô!

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Experimento com buracos-negros I

Agora eu lhes pergunto: o que acontece quando dobramos a malha espaço-tempo sobre si mesma? Acreditamos que a curiosidade humana desconhece barreiras, e, por tal, não devemos criar-lhe empecilhos. Muita literatura já foi gasta tentando imaginar as fantásticas experiências que tal fenômeno poderia proporcionar. Mas, hoje, estamos prestes a dar um passo mais além. Da mera hipótese, da vaga nuvem em que se deliciam os fãs de ficção científica, faremos brotar esse antigo sonho em uma realidade concreta e palpável bem ali, naquela área central de nosso laboratório, cuidadosamente preparada para suportar os terríveis efeitos de nosso experimento. Isso mesmo! Nós conseguimos e estamos prontos para testar o BurAcO-NeGro. Após meses de intenso estudo e trabalho, conseguimos criar uma máquina capaz de gerar, de forma artificial, pequenos buracos-negros que poderão conectar nossa realidade espaço-temporal a uma outra inimaginável, perdida em algum longínquo ponto do universo. Aviso, desde já, que o que faremos aqui não é nenhuma brincadeira, mas um experimento científico muito - mas muito mesmo - caro [risadas sacanas]. Portanto, tenham cuidado, leigos, e mantenham-se atrás da linha vermelha, pois os resultados podem ser catastróficos.

Em primeiro lugar, informo que o fato de trabalharmos com buracos-negros é devido ao nosso desconhecimento de outra maneira de deformar-se drasticamente a malha espaço-tempo de forma a fazê-la dobrar-se sobre si mesma como uma toalha qualquer. Sua espetacular concentração de massa em um ponto infinitesimal provocará o que chamamos de wormhole [ele quis dizer "buraco-de-minhoca"], fazendo com que a matéria viaje de um lugar ao outro em um curto espaço de tempo e... Bom, todos nós sabemos como os buracos-negros são **mágicos**, e temos absoluta certeza de que, quando ligarmos nossos geradores de energia citoplasmática (quântica, cibernética, como era mesmo?), o buraco-negro criará um portal autônomo e tangente à nossa dimensão, onde haverá simultaneamente a ocorrência de um fenômeno do passado e um do presente. Eu chamo isso de "dimensão passado-presente". Acho que maiores explicações serão desnecessárias. Peço apenas que apreciem o que deverá ser uma das mais fascinantes experiências que o ser humano já teve. Observem: vou ajustar os dispositivos de maneira que se crie um wormhole entre o ano de 75 d.C., na província romana da Judéia, e o centro comercial de Nova York. Ah! - sim -, queiram saudar a nossa convidada e voluntária especial, que conduzirá as relações da melhor forma com quem quer que surja no portal. Todos prontos? Sim? Então... ligar!

[Os geradores começam a funcionar espalhafatosamente, produzindo muitos ruídos, faíscas e fumaça. Uma enorme esfera é criada no centro do laboratório; inicialmente de intenso negro, começa a variar em muitas cores, até que começa a tomar definição, dando a ver a um mundo de coloração verde e de excêntricas formas. Surge, então, um gato alienígena de aspecto monstruoso no portal, lutando por escapar do campo magnético do wormhole aberto: "Huhuhumumamumamua! - gargalha o estranho felino de olhos cruéis e famintos de maldade. Finaaaalmente localizaaaaamos a posição da Teeeeerrrrra!!! Huhuhuhmuamua! Deixem-me saiiiirrrr! Deixem-me saiiiiiirrrrr! Preparem-se terráqueos, pois o seu fim está próóóóximo! Nossas trooop...Fiiiiisht! Miaaaaaar". O wormhole se fecha bruscamente sobre seu corpo delgado, provavelmente transformando-o em um espaguete de comprimento quase infinito].

Desculpem-me, deve ter havido algum erro. Vejamos... Ah! - sim -, sem querer a chave do painel havia escorregado para "mundos alienígenas hostis". Não se preocupem. Logo estará tudo resolvido. Um ajuste aqui, outro lá... Ahá! Pronto! Interligados o centro comercial de Nova York e a província de Judéia. Observem, meus pequenos! Observem!

[Os geradores começam a funcionar novamente. O portal se abre e por ele aparece um soldado romano caminhando calmamente ao longo de uma via orlada de oliveiras. Formas fantasmagóricas de nova-iorquinos começam a aparecer e caminham em sua direção: sem o ver. Ele, então, estaca assombrado com aquelas estranhas miragens, aprumando sua espada e escudo em posição de alerta. A voluntária, cheio de expectativas e retomando tudo aquilo que havia decorado, prende a respiração e adentra no portal:

- Ave, romano! Eu vim do fut...
- Tome isso, demônio! - grita chutando a terra e fazendo arremeçar uma nuvem de poeira contra o rosto da cientista. O romano larga a espada e o escudo no ar e lança-se aos tropeços colina abaixo.
- Aaaaah! Meus olhos! Meus olhos! Eles doem! Eu não enxergo a luz! Tirem-me daqui! Tirem-me daqui! Aaaaah!

O portal se fecha novamente. A cientista volta esfregando os olhos empanados de terra com as costas das mãos. Vários médicos acercam-se e levam-na às pressas para a ala hospitalar. O diretor abana a cabeça e volta-se novamente para o grupo de alunos, aliviando um longo suspiro pelas narinas].

Bom, acho que posso chamar isso de... incidente diplomático. Nossas técnicas, é claro, estão em fase de experimento. Talvez se tentássemos em uma época mais próxima, como os anos 60... De qualquer modo, deixo já avisado que todos os envolvidos com este projeto sabem dos riscos envolvidos, e assinaram, para tanto, um contrato onde declaram estar cientes e de acordo com as conseqüências que podem advir. Talvez tenhamos subestimado a capacidade dos antigos povos em lidar com o desconhecido e com o fabuloso. Apesar do ocorrido, não devemos desistir. Isso, é claro, são apenas algumas deficiências de nosso experimento que, aos poucos, iremos superar conforme formos aprendendo sobre a interessante reação das pessoas do pretérito. Como medida cautelar, todos vocês deverão permanecer de quarentena nos subterrâneos do laboratório, até que possamos certificar-nos de que estão saudáveis e livres de qualquer contaminação radioativa dos cosmos. Obrigado pela visita.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Luto

23 de Junho de 2010. É essa a data. Um dia alegre em algum lugar do mundo, onde risadas infantis ecoam em ambientes mal iluminados e smurfs cantam a sua labuta... Talvez.  Mas não para Magda Fantonelle. Magda era uma nobre senhora, com seus já 65 anos de idade, mas com cara de 40 (o segredo, dizia, eram camadas generosas de protetor solar todos os dias). De vida pacata, viúva, filhos crescidos e muitos gatos, passava as tardes a tomar chá nas casas das amigas, jogando baralho, predizendo o futuro e fazendo doce de abóbora. Excelente criatura. Aos domingos, ajudava as crianças pobres da periferia de Petrópolis, dando aulas de música e invocando os mortos. Mas a sua candura não pôde fazer frente a isso. A pobre não teve voz, não teve espírito, não teve tempo. Foi tudo tão rápido e confuso que ainda é difícil perceber a falta que faz. Não dá para entender.  Três anos de existência e de muita luta por continuar a ser bem vista na comunidade (nunca ninguém recebeu mais convites de meadd do que ela) para terminar assim, no vácuo, no esquecimento... Qual o sentido de tudo isso? Vidas vão e vêm, mas dessa vez ela simplesmente se apagou. De tudo, restou somente essa gravação minutos antes de ser hackeada:

YLoveJesus: Me paça a çua sehna, burxa dos enpherrrrno!!!
Magda: Nunca! O meu segredo é a minha vida. Um sonho não se entrega, se faz e se conquista! O que o gênio cria, não se perde nem se escraviza!
YLoveJesus: Ah eh??? huashuahsuah!!!1! Tah achadno ki tem mais poder qui Jesus?? hushsuhusha! Para tras, pagã increhdula, ki eu vou temostar!!!!
Magda: Não! Jamais! O que guardo é um instante que lampeja! Um olhar mais alto do que as próprias estrelas! Sou fruto, sou obra, sou dom, a senha ninguém me tira e pode ir abaixando o tom!
YLoveJesus: Huhuahauahushua! Soh jesus reina, meu bem. Agora toma iso satanikkaaaa!!! Unlimited powerrrrrrr!!!!!! [ruídos misteriosos].
Magda: Não! Por favor, pare! Aceite esses biscoitos felizes da amizade, estão quentinh... Aaaaaaaah! [som de um corpo tombando pesadamente no chão].
YLoveJesus: Huhuhaushuahu! Biscoito? [arranca um biscoito da mão de Magda, já morta no chão; dá uma mordida e cospe com rancor para o lado]. Com jesus naum se bargahna naum, é intransigivele! Huahuahauashua! Toma isso, sua impia! Cade os seus poder agora eim? Huahuahauaahua!

Só pude chegar horas depois de ocorrido o crime. Na cena, não encontrei nenhum vestígio de sangue, briga ou qualquer contenda que pudesse ter havido. As portas e janelas estavam todas trancadas, e tive que entrar secretamente pela chaminé. A casa estava silenciosa e arrumada, com a diferença de que aquela já não era mais a casa de Magda Fantonelle: estava tudo mudado. Era como se ela jamais houvesse existido. Nem sinal de Lilieth, sua gata que sabia indicar com as patinhas a presença de espíritos de suicidas. Toda a sua memória havia sido varrida dali. Em busca de algo que me explicasse seu sumiço, encontrei sobre a cadeira em que costumava sentar a misteriosa mensagem: "JESUUUUSS .. TE AMA :) SABIA .. NÃO SE PREOCÚPE NÃO A BRUXA DAKI, FOI RAKEADA.. QUE JESUS ILUMINE SEU DIA." Enojado, saí de lá correndo, e nunca mais voltei.

Magda, sentiremos falta da dança das xícaras, de seu chá alucinógeno e de sua poltrona flutuante. As partidas de tarot nunca mais serão as mesmas. De você, só nos resta, agora, a lembrança das tardes ensolaradas em que jogávamos peteca enquanto a brisa cochichava em nossas ouvidos a alegria de um mundo melhor mas secreto. Sim, ainda corisca em minha mente as raquetes altas deslizando sobre os últimos raios, quando então borrifávamos o ar com suor e saliva de satisfação. Sim, ainda consigo ouvi-la dizendo como se fosse hoje: "NÃO DEIXA A PETECA CAIR". Não, não deixaremos.